A Beleza da Arte Desgastada

Por que gostamos tanto de discos riscados, filmes manchados, VHS distorcido e outras imperfeições analógicas?

Renato Pincelli
3 min readNov 5, 2019

Por Colin Marshall, no Open Culture. Tradução de Renato Pincelli.

“QUALQUER COISA que você considere estranha, feia ou desagradável sobre uma mídia certamente vai se tornar sua marca de identidade”, escreveu Brian Eno em seu diário, publicado como A Year with Swollen Appendices [Um Ano com Apêndices Inchados]. “A distorção do CD, o tremular do vídeo digital, o som de merda do 8-bit — tudo isso vai ser apreciado assim que puder ser evitado”.

Eno escreveu isso em 1995, quando o áudio e o vídeo digitais eram tecnologias de ponta, cujo som e aparência ainda não pareciam muito certos. Mas pouco depois, quando os aparelhos de DVD chegaram ao mercado, tornando possível ver filmes numa clareza digital impecável, poucos consumidores hesitaram em deixar o VHS de lado. Como alguém podia imaginar que um dia olharíamos para aquelas fitas volumosas e suas imagens instáveis e embaçadas com nostalgia?

Se você já teve a experiência de assistir o YouTube, já percebeu como seus criadores se esforçam para introduzir deliberadamente em seus vídeos os artefatos sonoros e visuais da era pré-digital — da mistura de cores do VHS e dos riscos da superfície dos filmes à rouquidão dos discos de vinil e o chiado das fitas cassete.

“Por que somos atraídos pelas falhas que passamos mais de um século tentando remover de nossas mídias?”, pergunta Noah Lefevre, criador do canal do YouTube Polyphonic num vídeo-ensaio intitulado “The Beauty of Degraded Media [A Beleza da Mídia Degradada]”. Ele encontra exemplos em qualquer lugar online, mesmo que longe de sua plataforma: os inúmeros filtros pseudo-analógicos do Instagram, um app “construído sobre a adição artificial de defeitos e descolorações que desapareceram com a transição para a fotografia digital.”

Lefevre vai até mais longe e encontra o amor da humanidade pela mídia degradada em obras e formas de arte muito mais antigas que a internet. Um exemplo são as antigas estátuas gregas, hoje monocromáticas, que

“eram originalmente pintadas com cores brilhantes e fortes, mas à medida que a tinta foi se perdendo, a arte ganhou um novo sentido. O branco puro parece carregar uma beleza imaculada que reforça nossa percepção dos mitos e filosofias gregas depois de séculos.”

Lefrevre considera o que ele e outros criadores de mídia digital fazem hoje como uma espécie de kintsugi às avessas. Nesta tradicional arte japonesa, peças de cerâmica quebrada são reformadas com ligas visíveis de ouro e prata. “Em vez de preencher as falhas de objetos imperfeitos, estamos criando falhas artificiais em objetos perfeitos.” Não importa se estamos assistindo vídeo-ensaios e mixes vaporwave ou vendo fitas VHS e escutando discos de vinil, “nós desejamos que nossa mídia tenha um quê de desgaste”. Ou, como Eno definiu, queremos ouvir “o som do fracasso”. Sempre quisemos ouvi-lo:

“A guitarra distorcida é o som de algo barulhento demais para o meio que deve carregá-lo. O cantor de blues com a voz rachada é o som de uma emoção poderosa demais para a garganta que a emite. A emoção do filme granulado, do preto-e-branco descorado, é a emoção de ver algo momentoso demais para a mídia em que se registra.”

Isso leva a um conselho para os artistas, algo que Eno — que fez uso deliberado da imperfeição tanto como produtor do U2 e David Bowie quanto de suas próprias artes visuais e musicais — sempre fez muito bem: “Quando a mídia falha de modo notável, especialmente se falha de novas maneiras, o espectador acredita que está acontecendo alguma coisa além de seus limites.” Isso era verdade para a arte dos anos 1990 e ainda mais verdadeiro para a arte de hoje.

Escritor e radialista estabelecido em Seul, Colin Marshall costuma fazer ensaios sobre urbanismo, línguas e culturas para títulos como “Guardian Cities”, “Los Angeles Review of Books”, “Boing Boing” e “Open Culture”, do qual é colaborador assíduo. Além de palestras em universidades de diversos países e participações mensais no “Koreascape” (programa de urbanismo da rádio sul-coreana TBS), Marshall também produz a vídeo-série “The City in Cinema”, onde examina como as cidades aparecem nos filmes. O presente artigo sobre o apelo da mídia desgastada foi publicado originalmente pelo “Open Culture” em 29/10/2019.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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