A Crise é Cognitiva

Ansiedade. Depressão. Hiperatividade. Demência. O cérebro humano está em apuros. A tecnologia é uma causa — e uma solução.

Renato Pincelli
19 min readSep 28, 2022
Ilustração de Maria Medem

Por Adam Gazzaley, no Elemental (Julho de 2018).
Tradução de Renato Pincelli.

NOSSAS VIDAS NESSE MUNDO melhoraram de maneiras incríveis ao longo do último século. Em média, somos, atualmente, mais saudáveis, mais ricos e alfabetizados, menos violentos e temos uma vida mais longa. Apesar dessas mudanças positivas e sem precedentes, existem sinais claros de que estamos no meio de uma crise emergente — que ainda não foi reconhecida em toda a sua amplitude, mesmo que se esconda logo abaixo da superfície de nossas conversas casuais, nadando nas correntezas de nossos feeds de notícias. Esta não é a bem conhecida crise que induzimos sobre o clima da Terra, mas uma que é igualmente ameaçadora para o nosso futuro. Esta é uma crise de nossas mentes. Uma crise de cognição.

Uma crise de cognição não se define pela falta de informação, conhecimento ou habilidades. Fizemos um bom trabalho em acumulá-los e transmiti-los ao longo de milênios. Em vez disso, esta é uma crise no cerne do que nos torna humanos: a interação dinâmica entre nosso cérebro e nosso ambiente — o ciclo sempre presente entre como percebemos nosso entorno, integramos essa informação e agimos de acordo com ela.

Este antigo ciclo de percepção-ação garantiu nossa sobrevivência mais antiga, permitindo que nossos ancestrais primitivos pudessem buscar nutrientes e evitar toxinas. É a partir dessas origens humildes que o cérebro humano evoluiu para buscar recursos mais diversos e evitar ameaças mais inventivas. Foi daí que a cognição humana surgiu para apoiar nosso sucesso em um ambiente cada vez mais complexo e competitivo: atenção, memória, percepção, criatividade, imaginação, raciocínio, tomada de decisão, regulação da emoção e agressão, empatia, compaixão e sabedoria. É daí que aparece nossa crise.

Hoje, centenas de milhões de pessoas em todo o mundo procuram assistência médica para deficiências graves em sua cognição: transtorno depressivo maior, ansiedade, esquizofrenia, autismo, transtorno de estresse pós-traumático, dislexia, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno bipolar, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), dependência, demência e muito mais. Somente nos Estados Unidos, a depressão afeta 16,2 milhões de adultos, a ansiedade 18,7 milhões e a demência 5,7 milhões — números que devem quase triplicar nas próximas décadas

[No Brasil, o índice de deprimidos equivale a 11,3% da população, segundo a pesquisa Vigitel, do Ministério da Saúde. Realizado em 2021 e divulgado pelo UOL, o levantamento permite-nos estimar que quase 24 milhões de brasileiros são afetados pela depressão. Dados da OMS (2020), reportados pelo Fantástico, indicam que o Brasil é recordista nos números de ansiedade, com cerca de 19 milhões de brasileiros ansiosos. Quanto à demência, os dados são menos claros, inclusive pela subnotificação, mas segundo o site GHZ, estima-se que sua incidência pode aumentar 200% até 2050]

Os adolescentes americanos experimentaram um aumento de 33% nos sintomas depressivos, com um aumento de 31% de suicídio entre 2010 e 2015.

O imenso impacto pessoal, social e econômico da disfunção cognitiva merece maior atenção porque a crise está se aprofundando em vez de se resolver. Apesar do investimento substancial em pesquisas e tratamentos por parte de governos, fundações e empresas em todo o mundo, a prevalência e o impacto dessas condições estão aumentando. Entre 2005 e 2015, o número de pessoas em todo o mundo com depressão e ansiedade aumentou 18,4% e 14,9%, respectivamente, enquanto os indivíduos com demência tiveram um aumento de 93% nesses mesmos anos.

Até certo ponto, essas tendências refletem o crescimento geral e o envelhecimento da população mundial. Isso só continuará a aumentar no futuro: prevê-se que a população global de idosos chegue a 1,5 bilhão até 2050. Embora existam benefícios claros para uma longevidade maior, uma consequência negativa e infeliz é o fardo que ela coloca em muitos aspectos da cognição.

Existem, ainda, sinais de que algo mais está acontecendo. Nas últimas décadas, manchas preocupantes apareceram no tecido cognitivo de nossa juventude, principalmente em termos de regulação emocional e da atenção. Os adolescentes americanos experimentaram um aumento de 33% nos sintomas depressivos, com um aumento de 31% de suicídio entre 2010 e 2015. Os diagnósticos de TDAH também aumentaram dramaticamente. Embora uma consciência crescente dessas condições — e com ela, diagnósticos mais frequentes — seja um fator provável, não parece que essa seja o quadro geral. A magnitude dessa escalada aponta para um problema mais profundo.

Isso foi estudado melhor nos EUA do que no exterior, mas é claro que essa crise é verdadeiramente global, pois o número de pessoas que sofrem deficiências debilitantes na cognição passa de meio bilhão em todo o mundo. Some-se a isso os custos financeiros de trilhões de dólares em perda de produtividade, despesas de saúde e muito mais.

Nossos cérebros simplesmente não acompanharam as mudanças dramáticas e rápidas em nosso ambiente — especificamente a introdução e onipresença da tecnologia da informação.

Mesmo que os problemas de cognição de um indivíduo não resultem em um diagnóstico médico, descobriu-se que déficits subclínicos de atenção, regulação emocional e memória geram um risco real. O pensamento criativo e a sensibilidade empática também parecem estar diminuindo em crianças e adolescentes. Mesmo o chamado Efeito Flynn, que se refere a um aumento mundial da inteligência no último século, agora mostra sinais de estagnação — e às vezes reversão — nos países desenvolvidos.

Ainda que sejam múltiplas as fontes que fraturam nossa cognição, somos confrontados com a percepção de que nossos cérebros simplesmente não acompanharam as rápidas mudanças em nosso ambiente — especificamente a introdução e onipresença da tecnologia da informação. Em essência, nós, humanos, somos criaturas em incessante busca de informações. Como resultado, uma mudança profunda no fluxo de informações inevitavelmente terá efeitos importantes; e, como vimos, muitos deles são negativos.

Uma Mente

Muitos aspectos da cognição — como memória, atenção, percepção e regulação emocional — podem parecer distintos à primeira vista. Mas existem pontos em comum que sugerem que sua disfunção é a manifestação de uma crise maior e mais fundamental. O córtex pré-frontal, por exemplo, é a região mais evoluída do cérebro humano, e serviu como base a toda a amplitude de nossa cognição. Sua disfunção tem sido associada a sintomas de praticamente todas as condições neuropsiquiátricas, da depressão ao TDAH. Simplificando: o que afeta o córtex pré-frontal pode afetar a cognição de forma mais ampla.

É um desserviço construir cercas em torno de cada aspecto da cognição e sua disfunção acompanhante. Temos que enxergar não só as árvores, mas a floresta.

Os neurocientistas e os líderes do mundo médico agora sabem que há muito mais coisas unindo os aspectos aparentemente díspares da cognição do as coisas que os dividem. Por exemplo, os déficits de atenção são agora reconhecidos como uma característica proeminente do transtorno depressivo maior e estão incluídos nos Critérios Diagnósticos mais recentes — a Bíblia usada por especialistas em saúde mental — como uma “diminuição da capacidade de concentração.” A realidade é que cada um de nós tem uma mente, e reconhecer isso promoverá nossa capacidade de cultivá-la.

Há também, como eu disse, um agravante comum e subjacente, que exerceu um impacto em todos os domínios da cognição: nosso mergulho dramático na era da informação por trás da revolução digital. Todas as maneiras pelas quais interagimos com nosso ambiente, bem como uns com os outros e com nós mesmos, foram radicalmente transformadas pelas tecnologias.

O velho ambiente, onde nossa cognição evoluiu, já não existe há muito tempo. O novo ambiente, onde a informação multidimensional flui como água (jorrando de uma mangueira de incêndio!), desafia nosso cérebro e nosso comportamento em um nível fundamental.

Isso foi demonstrado em laboratório, onde os cientistas registraram a influência da sobrecarga de informações na atenção, na percepção, na memória, na tomada de decisão e na regulação emocional. E também tem sido comprovado no mundo real, onde vemos fortes associações entre o uso da tecnologia e o aumento das taxas de depressão, ansiedade, suicídio e déficits de atenção, especialmente em crianças.

Existe um agravante comum e subjacente que exerceu um impacto em todos os domínios da cognição: a era da informação.

Embora o mecanismo exato ainda esteja em investigação, o que está surgindo é um quadro complexo. O que estamos vendo é a aceleração dos ciclos de recompensa, associados com a intolerância à gratificação atrasada e ao sustento da atenção. A exposição excessiva à informação está ligada ao estresse, depressão e ansiedade (como o medo de perder uma novidade ou de não ser produtivo). E, claro, a multitarefa tem sido acompanhada por problemas de segurança (como usar o celular ao dirigir) e falta de concentração (com impactos nos relacionamentos, estudos e trabalho).

Além disso, nosso envolvimento constante com a tecnologia interfere na busca de outros comportamentos críticos para manter uma mente saudável, como exposição à natureza, movimento físico, contato face a face e sono restaurador. Suas influências negativas na empatia, compaixão, cooperação e vínculo social estão apenas começando a ser compreendidas.

O movimento de bem-estar, relativamente jovem, com objetivos ambiciosos de promover e manter a cognição ao longo de nossas vidas, parece entender isso. Infelizmente, tal movimento foi amplamente marginalizado como algo “alternativo” e não teve o benefício da atenção dominante.

Há motivo para preocupação, mas nem tudo é desgraça. Como nunca antes, a era da informação nos ofereceu uma tremenda oportunidade para expandir nossa consciência e nos conectarmos uns com os outros. Ajudou a reduzir as desigualdades decorrentes da falta de recursos, fornecendo treinamento e educação para pessoas que podem não ter acesso a professores ou instituições de alta qualidade.

Felizmente, as consequências negativas das tecnologias da informação estão sendo cada vez mais reconhecidas tanto pelos empreendedores que as criaram quanto pelos consumidores que as devoram com vontade. Surgiram novas ideias sobre como podemos modificar nosso comportamento para promover hábitos mais saudáveis de engajamento com softwares e dispositivos para que sejamos nós os que estamos no comando e não o contrário.

Devemos encarar o consumo de informações de maneira semelhante à forma como vemos o consumo de alimentos. Ainda assim, a mudança comportamental por si só não será suficiente, porque os riscos só aumentarão no futuro. Poderemos muito bem nos encontrar imersos em realidades virtuais e aumentadas, com nossas interações sendo guiadas pela inteligência artificial.

Nós não vamos empurrar o gênio da tecnologia para dentro da lâmpada.

Estamos nos dando conta de que precisamos sair nos antecipar, projetando novas tecnologias de uma maneira que seja baseada numa compreensão mais profunda de como nosso cérebro funciona — com suas limitações e vulnerabilidades.

Nós não vamos empurrar o gênio da tecnologia para dentro da lâmpada. Mas a tecnologia da Informação da próxima geração, mesmo que seja cuidadosamente projetada e bem-intencionada, provavelmente vai continuar estressando nossos cérebros. É por isso que precisamos reconhecer toda a extensão de sua influência — e explorar abordagens criativas para lidar com ela.

Então, o que vamos fazer? Também temos que melhorar a própria cognição em si.

O Desafio da Cognição

Precisamos de cérebros melhores para gerenciar o dilúvio de informações que consumimos hoje na internet, nas mídias sociais, em nossos smartphones — bem como para as novas tecnologias que certamente encontraremos amanhã. Para prosperar neste novo ambiente, precisamos aumentar a maturidade de nossa consciência coletiva.

Isso exige algo enorme: um esforço coordenado de grandes agentes, da Casa Branca e dos Institutos Nacionais de Saúde [dos EUA] às Nações Unidas e aos poderosos em Davos. De fato, abordar a crise cognitiva deve ser encarado como um grande desafio, a par com outras prioridades globais urgentes, como erradicar doenças infecciosas e distribuir água limpa.

O sucesso na resolução desses desafios globais depende de termos a capacidade mental de realmente resolvê-los. Mais do que nunca, são necessários atenção de alto nível, raciocínio, criatividade, tomada de decisão, compaixão e sabedoria. Se não conseguirmos concentrar nossa atenção e tomar decisões criativas, sábias e mais orientadas para o futuro, nunca lidaremos efetivamente com crises complexas e duradouras como a que afeta nosso clima, não importa quanta informação tenhamos à disposição.

A ideia de uma iniciativa global destinada ao nosso autoaperfeiçoamento não deveria parecer estranha. Nós, humanos, sempre fomos obcecados pela auto-otimização biológica. Quando se trata de nossos corpos físicos, habilidades como força, resistência, potência, velocidade, equilíbrio, flexibilidade e coordenação têm sido alvo de melhorias com tecnologias especializadas e programas coordenados por profissionais treinados.

Desenvolvemos essas abordagens para produzir melhorias físicas com benefícios voltados para entretenimento, atletismo, esportes e reabilitação. Mas estamos tragicamente atrasados quando se trata de aperfeiçoar nossa cognição. É difícil exagerar o preço dessa negligência.

Para ter um impacto consequente e duradouro, um grande desafio de aprimoramento cognitivo precisa ser posicionado como um objetivo em larga escala, direcionado a melhorar a cognição tanto nos que são saudáveis, como naqueles que sofrem de déficits de cognição incapacitantes. No limite, ambos os grupos se confundem. Felizmente, temos duas grandes instituições — nossos sistemas educacionais e de saúde — que analisam a população dessa maneira e parecem estar bem-posicionadas para enfrentar um desafio como este.

Desenvolver e melhorar a cognição para cérebros saudáveis deve ser uma missão central de nossas instituições educacionais, e remediar os déficits cognitivos deve ser um dos principais objetivos de nosso sistema de saúde. Por enquanto, nenhum desses responsáveis está efetivamente fazendo o que deve. De professores a terapeutas, psiquiatras e neurologistas, nossos funcionários da cognição simplesmente não estão equipados com as ferramentas ou com o treinamento necessários para enfrentar os desafios que nossos cérebros enfrentam agora.

Status Quo

Para entender por que não estamos equipados para enfrentar a crise neste momento, é bom analisar cinco fatores em nossos sistemas educacionais e médicos que a perpetuam: 1) avaliações inadequadas das habilidades e desafios cognitivos das pessoas; 2) tratamentos mal direcionados para problemas cognitivos, como déficits de atenção e memória ou depressão e ansiedade; 3) falta de tratamentos personalizados; 4) disciplinas médicas e educacionais que não se comunicam e trabalham em cercadinhos; e 5) sistemas de circuito aberto (definidos como a ausência de feedback quantitativo em tempo real para orientar os ajustes dinâmicos de uma intervenção).

Vamos pensar num exemplo prático:

Sarah é uma mulher de 65 anos que procura um médico pois está preocupada com sua atenção. Ela se sente muito distraída e fica assustada com “momentos velhinha” cada vez mais frequentes. Após um teste com papel e lápis, desatualizado e inadequado, o primeiro que ela já fez, sem acompanhamento por imagens cerebrais funcionais (avaliações inadequadas), ela recebe a receita de um medicamento usado para tratar a demência — um inibidor da acetilcolinesterase (tratamento mal direcionado) — cuja dose inicial foi baseada em dados populacionais de um grande ensaio clínico (o que não é personalizado), e prescrito a ela isoladamente, sem o apoio de exercício físico, apesar da grande quantidade de pesquisas que dão essa recomendação (disciplinas que não se comunicam). Vários meses mais tarde, com um monitoramento meramente subjetivo de seus efeitos positivos e colaterais, ela retorna para ver seu médico para uma nova consulta. Mais uma vez exames inadequados, mais uma vez em um ambiente clínico estressante, o que leva a um ajuste da dose sem considerar as consequências sobre ela, terminando em uma nova rodada de tentativa e erro (sistema de circuito aberto).

Sarah pode ter a sorte de ter consultado um médico de alto nível, que reconhece as falhas no status quo e melhorá-lo, oferecendo extensos testes neuropsicológicos, e um tratamento que é um pouco mais personalizado — talvez começando com uma dose menor, por causa de uma suspeita de intolerância. Esse médico também adotaria uma abordagem multimodal, incentivando o exercício físico, e não a deixaria passar tanto tempo sem verificar seus efeitos colaterais antes fazer ajustes de dosagem. Mesmo essa abordagem, que é tão boa quanto possível atualmente, ainda fica tragicamente aquém dos cuidados transformadores que deveríamos oferecer.

Esta é a realidade desanimadora enfrentada por todos os pacientes que sofrem de condições neurológicas e psiquiátricas. Os avanços no imageamento funcional do cérebro, que foram usados com sucesso para entender o cérebro e a cognição em laboratório, não saíram do lugar quando se trata de informar as clínicas do mundo real com uma compreensão do cérebro de cada pessoa. Quando um provedor clínico diagnostica um paciente com deficiências cognitivas, prescreve medicamentos para tratar seus sintomas. Infelizmente, todos os remédios disponíveis no kit de ferramentas de um médico são instrumentos contundentes, que influenciam os sistemas de neurotransmissores de maneira muito ampla e não alcançam as redes cerebrais subjacentes de modo específico.

Para alguns casos, esses medicamentos podem ser salva-vidas. Porém, enquanto não atingem a especificidade das redes cerebrais ou alteram diretamente a patologia de uma doença, nossos tratamentos continuam altamente imprecisos e, portanto, carregados de efeitos colaterais. Conceitualmente, não há nada de errado com a ideia de usar uma pequena molécula para melhorar a cognição. Mas os tratamentos farmacêuticos não mostram grandes avanços neste domínio há décadas.

Predomina no mundo da saúde mental o uso de avaliações da cognição que são imprecisas, inacessíveis e desatualizadas. Some-se a isso os tratamentos mal direcionados, em cercadinhos, não personalizados e de circuito aberto que se estendem por toda a gama de distúrbios: depressão maior, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, autismo, dislexia, lesão cerebral traumática, doença de Alzheimer, Doença de Parkinson — todos eles.

O cenário se torna ainda mais grave quando surgem desafios cognitivos em crianças devido às mesmas limitações em nossa abordagem da educação:

Peter é um menino de 11 anos e seus pais temem que ele esteja com problemas de atenção. Ele vai muito bem na escola, mantendo uma média B, mas seu comportamento é descrito como selvagem. Seus professores compartilhem algumas dessas preocupações, mas ele nunca recebeu uma avaliação cognitiva (avaliações inadequadas) nem qualquer tipo de intervenção direcionada para melhorar sua atenção. O que ninguém sabe é que as habilidades de atenção sustentada de Peter estão significativamente abaixo da média para sua idade. Uma avaliação cognitiva detalhada neste momento teria deixado isso claro, e também teria revelado que ele estava acima da média em outras áreas cognitivas, o que lhe permitiria compensar sua pouca atenção de maneira eficaz. Esse conhecimento poderia levá-lo a receber uma intervenção direcionada, personalizada e de circuito fechado para melhorar suas habilidades de atenção sustentada — mas não é isso que acontece.

As crianças fazem exames que avaliam sua capacidade de regurgitar informações recém-consumidas, mas o o modo como elas sustentam sua atenção e regulam suas emoções raramente é levado em consideração, a menos que se suspeite de uma deficiência de aprendizagem. Voltando ao Peter. Suponha que seus pais ou professores se convençam de que os problemas de atenção de Peter são, na verdade, sintomas de uma condição “clínica”. Sua transição do sistema de educação para o sistema de saúde seria igualmente problemática.

Quando Peter completa 12 anos, começa o ensino médio, que é um turbilhão desnorteante e desafia ainda mais suas frágeis capacidades de atenção sustentada. Suas notas são penosas e seu comportamento se degrada. À medida que seu funcionamento social fica prejudicado, ele passa mais tempo com colegas desviantes, o que o leva ao seu primeiro contato com o uso de substâncias. Seus professores, insatisfeitos, o mandam para um exame na enfermeira da escola. Isso leva a uma consulta psiquiátrica e ao seu primeiro diagnóstico formal. No entanto, tal diagnóstico não inclui qualquer medida de cognição real (avaliações inadequadas). A consulta lhe dá o diagnóstico de TDAH e um tratamento diário com a dose-padrão de Adderall (não-personalizada).

Assim, ele deixou de ser um estudante para ser um paciente. Após o início do tratamento, ele fica mais dócil e tem menos problemas na aula, mas suas notas não melhoram (mau direcionamento). A falta de uma intervenção comportamental complementar torna impossível para ele desenvolver as habilidades complexas necessárias para dominar atividades acadêmicas mais desafiadoras (cercadinhos). Ele e seus pais também estão cada vez mais preocupados com o fato de sua personalidade deixou de ser exploratória para parecer suprimida, mas os ajustes infrequentes e desinformados da dosagem do medicamento nunca corrigem esse problema (circuito aberto).

Avaliações inadequadas, direcionamento deficiente, falta de personalização, intervenções isoladas e sistemas de circuito aberto são as principais questões que impedem nossas instituições educacionais e médicas de fornecer tratamentos eficazes que melhoram, ou pelo menos mantêm, nossa cognição em alto nível. Não se trata apenas de pequenas peças que precisam de um pouco de lubrificação e ajustes. Essas são falhas críticas em áreas fundamentais dos sistemas de aperfeiçoamento cognitivo da humanidade.

O Futuro

Temos uma oportunidade perfeita para que as mesmas tecnologias que são fonte da crise da cognição passem a ter um papel positivo no aprimoramento e não uma diminuição do que nos torna humanos.

As tecnologias móveis que estão em desenvolvimento incluem um amplo espectro de sensores sofisticados. Telas sensíveis ao toque, acelerômetros, GPS, reconhecimento de voz, monitores de frequência cardíaca, detectores de expressão facial, sensores de movimento ocular e gravadores de atividade cerebral (como o EEG) podem ser utilizados para coletar e interpretar dados passivos e ativos sobre nós. Esta tecnologia está em plenas condições de servir como base para a próxima geração dos analistas de cognição, permitindo-nos entender melhor e mais profundamente a nós mesmos no mundo real, em tempo real.

Avaliações mais tecnológicas podem ser melhoradas a fim de produzir uma perspectiva muito mais matizada de nossas habilidades, para entender como algumas facetas da cognição são características estáveis, enquanto outras como fluidos que mudam dinamicamente de acordo com nosso ambiente e nossa fisiologia (intoxicação, fadiga e estresse, por exemplo). Esses exames poderiam nos permitir explorar os altos e baixos de nossa cognição durante a jornada da infância à terceira idade, e em resposta às alegrias e traumas imprevisíveis da vida.

Obviamente, essa abordagem precisa avançar com especial atenção e cuidados para proteger dados confidenciais, bem como considerações éticas para entender e evitar seu abuso. A obtenção desse conhecimento sobre nós mesmos também será associada a uma inevitável obrigação de superar os preconceitos profundamente arraigados que existem em torno da cognição. Para alguns, haverá uma preocupação inquietante sobre o rastreamento de atenção, memória e tomada de decisão, o que não se aplica aos exames de colesterol, glicose e pressão arterial. Esta questão é paralela ao grande estigma que existe para transtornos de saúde mental, que são vistos não como uma condição médica, mas como sinais da qualidade de uma pessoa.

Mais do que outros aspectos do nosso funcionamento biológico, parece haver uma inclinação natural para encarar a cognição como um reflexo de “quem somos”. Podemos nos referir a alguém que é desatento e tem hipertensão. Aquele é algo que os define como uma pessoa, muitas vezes acompanhada de julgamento moral, enquanto este é algo do qual sofrem e visto como um simples “fato biológico”. Esses preconceitos precisam acabar.

As mesmas tecnologias que são uma fonte da crise da cognição podem desempenhar um papel positivo no aprimoramento do que nos torna humanos.

Uma vez que tenhamos uma compreensão mais precisa de nossa cognição, o próximo objetivo é aprimorá-la. Antes de mergulhar na oportunidade para usar a tecnologia para fazer isso, é importante reconhecer que há muito que podemos fazer ao melhorar nossas atividades diárias. Um grande corpo de pesquisas revelou que decisões mais bem-informadas sobre exercício físico, desafio cognitivo, interações sociais, sono, nutrição, música, dança e tempo na natureza trazem benefícios à cognição.

Algumas das práticas mais antigas e ritualizadas em que nos envolvemos estão no núcleo das técnicas de aprimoramento da cognição: os exercícios de atenção plena e as tradições contemplativas. Pesquisas promissoras sustentam os efeitos benéficos da meditação no humor, atenção, compaixão e gerenciamento do estresse.

Por muito tempo, o bem-estar e a medicina foram considerados disciplinas separadas, e os cuidados de saúde foram essencialmente cuidados com a doença. Uma base científica que dê um apoio mais sólido aos benefícios dessas abordagens nos permitirá finalmente quebrar as barreiras que impedem os avanços nos tratamentos preventivos. Evidências empíricas que apoiam essas técnicas precisam se tornar indistintas daquelas geradas para soluções convencionais já regulamentadas.

Nosso desafio, agora, é descobrir como podemos usar a tecnologia para criar experiências poderosas, que aproveitem ao máximo a plasticidade do nosso cérebro para melhorar nossa cognição, refinar nosso comportamento e, finalmente, elevar nossas mentes. Claramente, nem todas as experiências são iguais. O tipo mais eficaz de experiência que pode atingir esse tipo de objetivo de alto nível é a experiência de circuito fechado.

Os sistemas de circuito fechado são usados atualmente em muitas aplicações físicas: até nossos eletrodomésticos, como termostatos e secadoras, usam projetos de circuito fechado para detectar temperatura e umidade e determinar o que fazer. Mas seu uso para aplicações biológicas é quase inexistente. Como observamos, tanto a nossa educação e quanto a medicina utilizam sistemas de circuito aberto.

Nosso desafio é descobrir como usar a tecnologia para criar experiências poderosas que elevem nossas mentes.

Uma abordagem de circuito fechado, baseada em tecnologia, pode ser usada para gerar uma experiência que ativa as redes cerebrais de maneira seletiva (é assim que o cérebro funciona). Em seguida, pode-se aplicar uma pressão constante à rede por meio de desafios interativos que impulsionam a plasticidade do cérebro a fim de otimizar seu funcionamento ao longo do tempo.

Imagine jogar um videogame onde os dados sobre você estão sendo coletados em tempo real por meio de sensores — métricas de desempenho, respostas emocionais, movimentos corporais, atividade cerebral — e isso é usado ao mesmo tempo para orientar o ambiente que você está vivenciando, personalizando desafios e recompensas para melhorar sua cognição. Seria como treinar com o melhor treinador de cognição pessoal.

Muitos laboratórios e empresas em todo o mundo estão buscando ativamente essa possibilidade agora. Isso inclui meus próprios esforços em incubação de tecnologia e na pesquisa científica sobre como os videogames de circuito fechado podem servir como ferramentas de aprimoramento cognitivo, que promovem uma nova abordagem: medicina digital e educação digital. Essa re-imaginação de tecnologia não-invasiva, barata, segura e acessível — smartphones, tablets, dispositivos fisiológicos vestíveis, captura de movimento e mídia interativa — como instrumentos para entender melhor e melhorar nossas mentes tem um grande potencial como forma de enfrentar a crise da cognição.

Leve tudo isso ao próximo passo no futuro e imagine o papel que as inovações nas tecnologias de Inteligência artificial (IA) e Realidade virtual (RV) podem oferecer aqui. Agora imagine estar profundamente imerso em um ambiente virtual e multissensorial, onde sua interatividade de corpo inteiro é coordenada por uma IA que o conhece melhor e mais profundamente naquele momento do que qualquer ser humano seria capaz, talvez até você mesmo. Isso criaria, para você, uma experiência de circuito fechado perfeitamente direcionada, destinada a melhorar e manter todos os aspectos de sua cognição em alto nível ao longo de sua vida — e captando mudanças sutis na percepção, humor, agressividade, atenção e memória para fortalecer o funcionamento do seu cérebro, impulsionando sua plasticidade natural. Isso não seria projetado para controlá-lo, mas sim para lhe dar controle sobre sua própria mente e prevenir (ou pelo menos atrasar) a lenta recaída em depressão maior, ansiedade, TDAH e demência.

Que melhor uso existe para a IA do que para melhorar a IH — inteligência humana? Se formos criativos e dotados de visão de futuro, podemos alcançar o que pode ser a promessa final da tecnologia, o estabelecimento de um ambiente que promova a próxima fase da evolução da mente humana.

Que melhor uso existe para a IA do que para melhorar a IH — inteligência humana?

Nos últimos cem anos, os avanços na medicina resultaram em uma elevação da saúde geral da humanidade que está muito além do que já foi alcançado no passado. Boa parte desse sucesso se deve à tecnologia. Mas para que nossa espécie continue a prosperar e florescer neste mundo cada vez mais complexo, devemos nos envolver na difícil tarefa de virar nossas lentes para dentro e olhar cuidadosa e honestamente para rachaduras no espelho.

Uma crise é um momento de dificuldade em que decisões importantes devem ser tomadas para evitar desastres futuros. Quando se trata do funcionamento de nossos cérebros e mentes, chegou a hora de tomar decisões. O status de nossa cognição em escala global está problemático — e piorando, especialmente para nossos filhos. Por muito tempo mantivemos a ilusão de que estamos separados do nosso ambiente. Agora é a hora de fazer um balanço do que realmente valorizamos no ato de ser humano, é hora de abraçar e consertar nossas mentes quebradas.

Adam Gazzaley (natural de Brooklyn, Nova York, 1968) é neurocientista e inventor americano. Professor de Neurologia, Fisiologia e Psiquiatria na Universidade da Califórnia em São Francisco, ele inventou o “EndeavorRx”, primeiro videogame a ser aprovado pela FDA como tratamento terapêutico para crianças com hiperatividade (2020). Além de escrever mais de uma centena de artigos científicos, Gazzaley é autor de “The Distracted Mind: ancient brains in a high tech world” (2016) e já apareceu em diversos podcasts e eventos de divulgação científica.

--

--

Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.