A família nuclear foi um erro
A estrutura familiar tida como ideal durante meio século foi catastrófica em muitos casos. É hora de encontrar maneiras melhores de convivência.

Por David Brooks, na Atlantic em Março de 2020.
Tradução de Renato Pincelli.
A CENA JÁ ACONTECEU com muitos de nós em nossas vidas familiares: dezenas de pessoas festejando a Ação de Graças ou qualquer outro feriado em torno de uma longa mesa improvisada — irmãos, primos, tias, tios, avós. Os velhos contam a mesma história pela 37ª. vez. “Era o lugar mais bonito desta vida”, diz um, relembrando seu primeiro dia na América. “As luzes estavam por toda parte, era uma festa de luzes! Achei que eram por mim…”
Os idosos começam a discutir sobre a exatidão de suas memórias. “Estava frio naquele dia”, diz um sobre um acontecimento distante. “Do que é que você está falando? Foi em Maio, no fim de Maio”, replica outro. As crianças sentam-se de olhos bem abertos, absorvendo o folclore familiar e tentando seguir o fio da meada entre as gerações.
Depois da refeição, os pratos se acumulam na pia, as crianças formam bandos que conspiram bagunça no porão. Os jovens pais se juntam num canto, fazendo planos. Na poltrona, o vovô cai no sono enquanto espera a sobremesa. Eis uma família extensa em toda a sua glória amável, emaranhada, cansativa.
Esta família é a que Barry Levinson mostrou no filme Avalon (1990) e baseia-se em sua infância em Baltimore. Partindo do Leste Europeu, cinco irmãos chegaram à América na época da I Guerra Mundial e levantaram um negócio de papel de parede. Durante algum tempo, fizeram tido juntos, como no antigo país. Mas, à medida que o filme avança, a família extensa começa a se despedaçar. Alguns membros mudam-se para os subúrbios em busca de espaço e privacidade. Outro muda-se por causa de um emprego em outro estado. A gota d’água vem por algo que parece trivial mas não é: o irmão mais velho chega atrasado para o Thanksgiving e percebe que a família começou a ceia sem ele.
“Vocês fatiaram o peru sem eu?”, chora ele, indignado. “Sangue do seu sangue!… E vocês fatiaram o peru?” O ritmo do cotidiano se acelera. A conveniência, a privacidade e a mobilidade tornam-se mais importantes que a lealdade à família. “A ideia de comer antes da chegada do irmão era um sinal de desrespeito”, contou Levinson quando lhe perguntei a respeito dessa cena. “Foi a pá de cal na família. Ao violar o protocolo, toda a estrutura familiar entra em colapso.”
No filme, com o passar dos anos, a família extensa aparece cada vez menos. Nos anos 1960, não há mais família grande na Ação de Graças. São apenas um pai e uma mãe jovens, com filho e filha, comendo peru em bandejas diante da televisão. Na cena final, o protagonista mora sozinho num asilo e se pergunta como isso aconteceu: “No fim, você gasta tudo o que economizou, vende tudo o que teve só para existir num lugar desses.”
“Na minha infância”, conta Levinson, “nos juntávamos ao redor dos avós, que contavam histórias da família… Hoje, as pessoas sentam-se diante da TV para ver histórias de outras famílias.” Segundo o diretor, o tema de Avalon é “a descentralização da família. E isso se aprofundou ainda mais hoje em dia. Antes, ao menos as famílias se reuniam em torno da TV. Hoje cada um tem sua própria telinha.”
Esta é a narrativa de nosso tempo — a história da família, outrora um aglomerado denso, cheio de irmãos e agregados, fragmentando em formas cada vez menores e mais frágeis. O resultado inicial da fragmentação, a família nuclear, não parecia tão ruim. Mas, como a família nuclear é bastante quebradiça. a fragmentação continua. Em largos setores da sociedade, as famílias nucleares fragmentaram-se em famílias monoparentais e as monoparentais em unidades familiares caóticas ou inexistentes.
Caso queira resumir as mudanças na estrutura familiar ao longo do último século, o melhor a fazer é dizer isto: tornamos a vida mais livre para os indivíduos e mais instável para as famílias. Melhoramos a vida dos adultos mas pioramos a das crianças. Passamos de famílias grandes, inter-relacionadas e estendidas, que ajudavam a proteger os mais vulneráveis dos choques da vida a famílias isoladas, menores, nucleares (casal mais filhos), o que permitiu que os mais privilegiados pudessem maximizar seus talentos e expandir suas oportunidades. O salto de famílias grandes e extensas para menores e nucleares terminou levando a um sistema familial que libera os ricos e explora a classe trabalhadora e os pobres.
Este é um artigo sobre esse processo, sobre a devastação que ele trouxe — e sobre como os americanos estão se unindo para criar novos tipos de família e encontrar melhores maneiras de viver.
Parte I
A Era dos Clãs
DESDE OS PRIMÓRDIOS da História dos EUA, a maioria das pessoas viviam no que, pelos padrões de hoje, eram lares de grande porte. Em 1800, três quartos dos trabalhadores americanos eram fazendeiros. A maioria do restante trabalhava em negócios familiares, como armazéns de secos e molhados. Era necessários ter muitas pessoas para tocar esses negócios e não era incomum que casais tivessem seis ou sete filhos. Além disso havia as tias e tios solteiros, primos, bem como agregados como serviçais, aprendizes e faz-tudo (em algumas fazendas sulistas, claro, os afro-americanos escravizados também eram parte integral da vida produtiva e doméstica).
Steven Ruggles, professor de História e Estudos Populacionais na Universidade de Minnesota, chama essas famílias de “corporativas” — são unidades sociais organizadas em torno de um empreendimento familiar. Segundo Ruggles, em 1800, 90% das famílias americanas eram deste tipo. Até 1850, cerca de 3 em cada 4 americanos acima de 65 anos viviam com os filhos e os netos. Famílias nucleares existiam, mas estavam no interior de famílias corporativas ou extensas.
As famílias extensas tem duas grandes vantagens. A primeira é a resiliência. Uma família estendida é formada por um ou dois núcleos familiares numa rede de apoio. Seu cônjuge e os filhos vêm primeiro, mas também existem os primos, os sogros, os avós — uma teia complexa de relações que liga, digamos, 10 ou 20 pessoas. Se a mãe morre, os irmãos, os tios, as tias e os avós assumem seu lugar. Se há rompimento na relação entre pai e filho, outros servem como ponte. Famílias extensas têm mais pessoas para compartilhar os problemas inesperados — quando uma criança fica doente de repente ou um adulto perde um emprego.
Uma família nuclear, por contraste, é um intenso jogo de relações entre umas quatro pessoas. Se uma relação for rompida, não existe amortecimento. Numa família nuclear, o fim do casamento é o fim da família como se conhece.
A segunda grande vantagem das famílias extensas é sua força socializadora. Vários adultos ensinam às crianças o certo e o errado, como se comportar, como ser gentil. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a industrialização e as mudanças culturais passaram a ameaçar os modos de vida tradicionais. No Reino Unido e nos EUA, muitas pessoas apostaram na família extensa como forma de criar um oásis moral num mundo frio e sem coração. Segundo Ruggles, a prevalência de famílias extensas vivendo juntas quase dobrou entre 1750 e 1900 e este período foi o auge deste modo de vida, sem paralelos antes ou depois.
Na Era Vitoriana, a noção de “hearth and home [lareira e lar]” tornou-se o ideal. O lar, para John Ruskin, crítico social vitoriano, é “um lugar sagrado, um templo vestal, templo da lareira vigiado pelos Deuses Domésticos, diante dos quais ninguém chega a não ser com amor”. A mudança foi puxada pela classe média-alta, que passou a ver a família mais como unidade moral e emocional, como molde para a formação de corações e mentes, e menos como negócio econômico.
Embora tenham suas vantagens, as famílias extensas também podem ser exaustivas e paralisantes. Dentro delas, há pouca privacidade: você é forçado a estar em contato íntimo e diário com gente que não escolheu. Há mais estabilidade, porém menos mobilidade. Os laços familiares são mais fortes, mas as escolhas individuais são diminuídas. Você tem menos espaço para abrir seu caminho na vida. As famílias da Era Vitoriana eram patriarcais, favorecendo os homens em geral e os primogênitos em particular.
Com a abertura de fábricas nas grandes cidades norte-americanas, entre o fim do século XIX e o início do XX, moços e moças deixaram suas famílias para correr atrás do sonho americano. Os jovens se casavam tão cedo quanto possível. Numa fazenda, um rapaz poderia esperar até os 26 anos para se casar; na solidão urbana, os rapazes se casavam aos 22, 23. Entre 1890 e 1960, a média de idade para o primeiro casamento caiu 3,6 anos (para homens) e 2,2 (para mulheres).
As famílias que esses jovens formaram eram nucleares. O declínio das famílias multigeracionais, em coabitação, anda de mãos dadas com o declínio da força de trabalho na agricultura. As crianças já não eram criadas para cumprir papeis econômicos — eram criadas para chegar à adolescência, sair do ninho, ser independente e buscar seu par. Não eram criadas para a intimidade mas para a autonomia. Nos anos 1920, a família nuclear com o homem ganha-pão era a forma predominante de família. Por volta de 1960, 77,5% das crianças viviam com dois pais, casados e longe da família extensa.
A Curta Felicidade da Família Nuclear
POR ALGUM TEMPO, tudo deu certo. Entre 1950 e 1965, os índices de divórcio caíram, a taxa de natalidade subiu e a família nuclear americana parecia estar em excelente forma. As pessoas pareciam mais felizes, mais prósperas. Foi nesse período que se formou um culto ao redor deste modelo familiar — o que a McCall’s, principal revista feminina da época, chamava de “togetherness”. As pessoas saudáveis viviam em famílias biparentais: numa enquete feita em 1957, mais da metade dos participantes classificaram os não-casados como “doentes”, “imorais” ou “neuróticos”.
Naquele período, o ideal de família certa foi gravado em nossas mentes: casal com 2,5 filhos. Quando pensamos na família americana, muitos ainda recorrem a este ideal. Quando debatemos como fortalecer a família, estamos falando da família nuclear biparental, com uma ou duas crianças, que provavelmente mora em alguma casa de subúrbio. Tomamos isto como normal, mesmo que não tenha sido assim para a maioria dos humanos que viveram durante dezenas de milhares de anos antes de 1950 e que não seja assim para a maioria dos humanos nos 55 anos desde 1965.
Atualmente, só uma minoria de lares americanos é formada por famílias tradicionais, nucleares, biparentais. Só um terço dos indivíduos americanos vive nesse arranjo. A janela entre 1950–65 não foi normal, foi um momento histórico bizarro, quando toda a sociedade conspirou, conscientemente ou não, para esconder a fragilidade essencial da família nuclear.
Em primeiro lugar, a maioria das mulheres foi relegada a dona-de-casa. Muitas empresas, ainda em meados do século XX, barravam a contratação de mulheres casadas. As firmas contratavam mulheres solteiras mas quem se casava estava fora. O tratamento desprezível dado às mulheres era rampante e elas passavam numerosas horas presas dentro de casa, sob a chefia do marido, criando os filhos.
Em segundo lugar, as famílias nucleares da época era muito mais ligadas a outras famílias nucleares do que hoje — formando uma “família extensa modificada”, conforme o sociólogo Eugene Litwak, que a define como “uma coalizão de famílias nucleares em estado de dependência mútua”. No fim dos anos 1950, antes do predomínio da televisão e do ar-condicionado, as pessoas continuavam a sentar-se juntas na calçada e eram parte da vida umas das outras. As pessoas sentiam-se à vontade para disciplinar os filhos de seus amigos. No livro The Lost City [A Cidade Perdida], o jornalista Alan Ehrenhalt descreve o cotidiano na Chicago de meados do século e em seus subúrbios:
Ser um jovem chefe de família num subúrbio como Elmhurst nos anos 1950 era participar em empreendimentos comunitários que só o eremita mais determinado poderia escapar: churrascos, cafés, jogos de vôlei, trocas de babás e troca-troca de ingredientes, crianças aos cuidados do pai mais próximo, vizinhos entrando pela porta sem bater, a qualquer hora. Todas essas eram atividades em que os adultos se apoiavam para fazer dos lares uma comunidade. Era uma vida vivida em público.
Por fim, as condições sociais em geral eram ideais para a estabilidade familiar. O período pós-guerra foi uma maré alta de frequência às igrejas, sindicalização, confiança social e prosperidade em massa — todos fatores que colaboram com a coesão familiar. Um homem poderia, com relativa facilidade, encontrar um emprego que lhe permitia ser o único ganha-pão numa família de renda única. Em 1961, o americano entre 25 a 29 anos ganhava quase 400% mais do que seu pai havia ganhado na mesma faixa etária.
Em síntese, o período 1950–65 demonstrou que é possível construir uma sociedade estável em torno de famílias nucleares — contanto que as mulheres sejam relegadas à cozinha, que as famílias nucleares sejam tão interligadas entre si que são apenas famílias extensas com outro nome e que as condições econômicas e sociais estejam em sintonia para apoiar essa instituição.
Desintegração
TAIS CONDIÇÕES, porém, não foram duradouras. A correlação de forças que fez a família nuclear decolar rapidamente começou a enfraquecer e a família tranquila dos anos 1950 passou a ser ultrapassada por famílias cada vez mais estressadas com o passar das décadas. Alguns estresses foram econômicos. A partir dos anos 1970, o salário dos homens jovens entrou em declínio, colocando especial pressão sobre as famílias da classe trabalhadora. O maior estresse, porém, foi cultural. A sociedade tornou-se mais individualista, mais orientada ao self. As pessoas passaram a valorizar coisas como privacidade e autonomia. O crescente movimento feminista ajudou as mulheres na obtenção de maior liberdade para trabalhar e viver conforme suas escolhas.
Os sociólogos Francesca Cancian e Steve L. Gordon estudaram revistas femininas publicadas entre 1900 e 1979. O estudo descobriu que, até os anos 1950, dominavam os temas que priorizavam a família: “Amor significa auto-sacrifício e compromisso.” Nos asnos 1960 e 70, o individual acima do familiar ganha peso: “Amor significa auto-expressão e individualidade”. Os homens também foram influenciados por esses discursos culturais. A principal tendência na cultura Baby Boomer, em geral, foi a de libertação — ser um “Pássaro solto”, “Criado para correr”, “Homem andarilho”.
Psicólogo e especialista em casamento da Northwestern University, Eli Finkel argumenta que, desde os anos 1960, a cultura familiar dominante é a do “casamento autoexpressivo”. Para ele, “os americanos hoje buscam o casamento muito mais como autodescoberta, autoestima e crescimento pessoal”. Casar, de acordo com as sociólogas Kathryn Edin e Maria Kefalas, “não é mais principalmente sobre ter e criar filhos. Agora o casamento é uma prioridade da realização da vida adulta.”
Essa alteração cultural pode ter sido muito boa para alguns adultos, mas não para as famílias em geral. Nos momentos de estresse, há menos parentes por perto para auxiliar um casal. Se você casa por amor, ficar junto já não faz muito sentido depois que o amor acaba. Esse enfraquecimento dos laços matrimoniais pode ter começado no fim do século XIX: o número de divórcios [nos EUA] cresceu quase 15 vezes entre 1870 e 1920, depois cresceu mais um pouco até se estabilizar nas primeiras décadas da família nuclear. Como notou o historiador Christopher Lasch no fim dos anos 1970, a família americana não começou a entrar em colapso nos anos 1960, ela “estava desabando por mais de 100 anos.”
Mais do que nunca, os americanos de hoje tem menos vida familiar. Entre 1970 e 2020, o índice de domicílios formados por casais com filhos caiu pela metade. Segundo dados do censo, em 1960 apenas 13% dos lares eram domicílios individuais; em 2018, o índice passou para 28%. Em 1850, 75% dos americanos acima de 65 anos moravam com parentes; em 1990 eram apenas 18%.
No decorrer de duas gerações, as pessoas passaram cada vez menos tempo envolvidas num casamento — estamos nos casando mais tarde, se é que estamos, e nos divorciando mais. Em 1950, 27% dos casamentos terminavam em divórcio; hoje são quase 45%. Em 1960, 72% dos adultos americanos estavam casados enquanto quase metade dos adultos americanos de 2017 era solteira. Segundo um relatório do Urban Institute (2014), quase 90% das mulheres Baby Boomer e 80% das Geração X estavam casadas por volta dos 40 anos. Enquanto isso, só uns 70% das mulheres Millenial mais velhas devem chegar a este estado civil — o menor índice da história dos EUA.
Em 2019, 4 em cada 5 americanos disseram, numa pesquisa feita pelo Pew Reseach Center (2019), que se casar não é essencial para viver uma vida realizada. Mas não é apenas o casamento institucionalizado que eles estão rejeitando: em 2004, um terço dos americanos de 18 a 34 anos viviam sem um parceiro romântico, segundo a General Social Survey, número que passou para 51% em 2018.
Além disso, no mesmo período de duas gerações, as famílias também encolheram bastante. A média geral de natalidade americana, hoje, é metade do que foi em 1960. A maioria dos domicílios familiares americanos não tinha crianças em 2012 e agora há mais lares com pets do que com filhos. Em 1970, cerca de 20% dos domicílios tinham cinco ou mais pessoas. Em 2012, esse índice era de apenas 9,6%.
Ao longo dessas gerações, o espaço físico entre as famílias nucleares ficou maior. Antes, noras trocavam saudações aos gritos entre suas casas dos dois lados de uma rua. As crianças corriam de uma casa para outra, assaltando a geladeira mais próxima. Mas os quintais se tornaram mais caros e a vida na calçada entrou em declínio, criando um espaço-tampão que separa a casa de família de todo o resto. Como Mandy Len Catron notou recentemente na Atlantic, as pessoas casadas tendem a visitar cada vez menos os irmãos e os parentes e são cada vez menos inclinadas a oferecer apoio emocionar ou dar uma mão nas tarefas domésticas. O que predomina é um código de autossuficiência familiar: Mamãe, Papai e as crianças vivem a sós, com uma barreira em torno de seu lar insular.
Finalmente, ao longo dessas gerações, as famílias se tornaram mais desiguais. Hoje os EUA têm dois regimes familiares distintos. Entre os que têm educação superior, os padrões de família são quase os mesmos dos anos 1950; para os menos educados, a vida familiar geralmente é caótica. Existe uma razão para essa divergência: as pessoas mais ricas têm recursos para, na prática, comprar uma família extensa e manter o equilíbrio.
Pense em todo o trabalho de criação infantil que os pais ricos pagam mas costumavam ser feitos pela família extensa: serviços de babá, creche, tutoria e monitoria, terapia, programa extra-curriculares (além disso, considere como os ricos podem bancar terapeutas e “coaches” para si mesmos, substituindo a proximidade de parentes e amigos). Esses serviços e alternativas encarecidos não apenas dão apoio ao desenvolvimento da criança e facilitam seu preparo para a competição meritocrática, eles preservam a amenidade do casamento. Os conservadores de classe alta costumam se elogiar por manter famílias nucleares e estáveis e pregam que esse deveria ser o modelo a ser seguido por todo mundo. Mas eles ignoram um dos principais motivos de sua estabilidade familiar — é que eles podem adquirir o tipo de apoio que costumava ser dado pela família extensa. E as pessoas de quem eles reclamam, mais abaixo na escada da renda, não podem fazer o mesmo.
Se nos anos 1970, as estruturas familiares entre ricos e pobres não eram tão distintas, hoje há um abismo entre elas. Em 2005, 85% das crianças nascidas em famílias de classe-média-alta moravam com ambos os pais quando a mãe chegou aos 40 anos. Entre as famílias trabalhadoras, o número de crianças nessa situação era de 30%.
Um relatório de 2012 do National Center for Health Statistics revelou que mulheres entre 22 e 44 anos com ensino superior tinham 78% de ter sido casadas pelo menos uma vez nos últimos 20 anos. Mulheres da mesma faixa etária, mas com diploma do ensino médio ou sem diploma tinham uma chance de casamento de 40%. Entre americanos de 18 a 55 anos, só 26% dos pobres e 39% da classe trabalhadora estão casados atualmente. Em Generation Unbound [Geração Desamarrada], Isabel Sawhill, economista na Brookings Institution, relata pesquisa que mostra que as diferenças na estrutura familiar tem “aumentado a desigualdade de renda em 25%”. Se os EUA voltassem aos índices de casamento dos anos 1970, a miséria infantil seria reduzida em 20 por cento. Andrew Cherlin, sociólogo na Johns Hopkins University, notou que “são os americanos privilegiados que estão se casando e o casamento ajuda a manter seus privilégios”.
Quando se leva tudo em conta, estamos provavelmente passando pela mais rápida modificação da estrutura familiar de toda a História humana. As causas são, simultaneamente, econômicas, culturais e institucionais. As pessoas que cresceram numa família nuclear têm uma mentalidade mais individualista do quem cresceu num clã extenso e multigeracional. Quem tem uma mentalidade mais individualista tende a estar menos disposto a se sacrificar pelo bem da família e o resultado é mais erosão familiar. Pessoas que crescem numa família erodida têm mais dificuldade de obter a educação que precisam para ter carreiras bem-sucedidas e quem não tem carreira bem-sucedida tem dificuldade ao formar famílias estáveis por causa dos problemas financeiros e de outras pressões. As crianças destas famílias, portanto, tornam-se mais isoladas e mais traumatizadas.
Muita gente que cresceu neste período não teve um ninho seguro antes de se jogar na vida nem um trajeto definido para a vida adulta. Para quem tem o capital humano, explorar, cair e ser levantado pode dar grandes liberdades e oportunidades — para os que não tem esses recursos, tudo resulta em confusão, desgarramento e dor.
Os governos federal e estadual tentaram, durante os últimos 50 anos, mitigar os piores efeitos dessas tendências. Tentaram elevar os índices de casamento, baixar os números de divórcio, estimular a fertilidade e todo o resto. O foco sempre foi o fortalecimento da família nuclear, não da extensa. Vez ou outra algum programa específico tem algum resultado positivo, mas a crescente desigualdade entre as famílias continua intocada.
As pessoas que mais sofrem com o declínio no apoio familiar são as vulneráveis — especialmente as crianças. Em 1960, cerca de 5% das crianças eram filhas de mães solteiras. Hoje, são 40%. O Pew Research Center reportou que 11% das crianças viviam afastadas do pai em 1960. Eram 27% em 2010. Hoje, quase metade das crianças americanas vai passar a infância sem os dois pais biológicos. Entre os jovens adultos, 1 em cada 5 não tem contato nenhum com o próprio pai (em muitos casos, pelo falecimento dele). As crianças americanas têm mais chances de viver em domicílios monoparentais do que as crianças de qualquer outro país.
Todo mundo conhece alguma família monoparental estável e amorosa. Mas, na média, as crianças de pais solteiros ou pais não-casados, tendem a ter piores índices de saúde, mais problemas de saúde mental, menos sucesso escolar, mais problemas de comportamento e maior evasão escolar do que as que são criadas por seus dois pais biológicos e casados. Segundo um trabalho de Richard V. Reeves, co-diretor do Center on Children and Families at the Brookings Institution, se você nasce na pobreza e for criado por pais casados, tem 80% de chances de sair do buraco da miséria. Se nascer na miséria e for criado por uma mãe solteira, tem 50% de chance de continuar na mesma.
Não é apenas a falta de relacionamentos que prejudicam as crianças, é a turbulência. Conforme um estudo de 2003 citado por Andrew Cherlin, 12% das crianças americanas viveram com pelo menos três “parceiros parentais” antes de completar 15 anos. Os momentos de transição, quando um parceiro da mãe vai embora e um novo chega, segundo Cherlin, são os piores para as crianças.
Obviamente, as crianças são o grupo mais afetado pelas recentes alterações na estrutura familiar, mas não são o único. Pense nos homens solteiros. As famílias extensas davam aos homens as influências fortificantes do afeto masculino e da companhia feminina. Hoje, muitos homens americanos passam os primeiros 20 anos da vida sem um pai e os próximos 15 sem uma esposa. Kay Hymowitz, do Manhattan Institute, passou boa parte de sua carreira examinando os destroços causados pelo declínio da família americana, e encontrou evidências para demonstrar que, na falta de conexão e sentido dados pela família, os homens solteiros não menos saudáveis — abusos de drogas e álcool são mais comuns entre eles — , ganham menos e morrem mais cedo que os casados.
Para as mulheres, a estrutura família-nuclear impõe diferentes pressões. Embora elas tenham se beneficiado bastante do afrouxamento das estruturas tradicionais — com mais liberdade para escolher como levar a vida — muitas mães que decidem criar seus filhos sem a proximidade de uma família extensa descobrem que escolheram um estilo de vida duro, brutalizante e isolante. A situação é exacerbada pelo fato de que as mulheres ainda passam muito mais tempo em tarefas domésticas e cuidados infantis do que os homens, segundo dados recentes. Daí vem a realidade que vemos ao nosso redor: mães cansadas e estressadas, tentando equilibrar trabalho e maternidade e adiando o trabalho quando a vida familiar fica acidentada.
Sem famílias extensas, os americanos idosos também sofrem. Segundo a AARP, 35% dos americanos acima de 45 anos se consideram cronicamente solitários. Muitos idosos são, hoje, “órfãos da terceira idade”, sem nenhum parente ou amigo para cuidar deles. Em 2015 o New York Times publicou uma matéria intitulada “A Morte Solitária da George Bell”, contando a história de um senhor de 72 anos, sem família, que morreu sozinho e apodreceu em seu apartamento no Queens por tanto tempo que seu corpo foi considerado irreconhecível quando a polícia o descobriu.
Já os grupos que enfrentam discriminações tendem a ter famílias mais frágeis. As famílias afro-americanas sofreram desproporcionalmente na era da família nuclear. Quase metade das famílias negras são lideradas por uma mulher solteira, comparado com 1/6 das famílias brancas — o alto índice de encarceramento negro garante uma escassez de homens capazes de serem maridos ou pais de família.
Segundo dados do censo de 2010, 25% das mulheres negras acima de 35 anos nunca se casaram, em contraste com 8% das brancas. Dois terços das crianças afro-americanas viviam em famílias monoparentais em 2018, contra um quarto das crianças brancas. Famílias monoparentais negras são mais frequentes justamente nas regiões do país onde a escravidão foi mais intensa. Uma pesquisa de John Iceland, professor de Sociologia e Demografia na Penn State, indica que as diferenças estruturais entre famílias brancas e negras respondem por 30% da desigualdade de renda entre os dois grupos.
Jane Jacobs, jornalista e urbanista, publicou seu último livro em 2004: uma análise da sociedade americana sob o título Dark Age Ahead [Idade das Trevas à vista]. Seu argumento fundamental está na ideia de que as famílias estão “fadadas ao fracasso”. As estruturas que serviam de apoio às famílias já não existem, segundo Jacobs. Ela pode parecer muito pessimista a respeito de várias questões mas, para milhões de pessoas, a mudança de família grande/extensa para família nuclear foi, de fato, um desastre.
Com o decaimento das estruturas ao redor da família, o debate assumiu ares míticos. Os conservadores insistem em retornar à família nuclear. Mas as condições de estabilidade que possibilitaram a família nuclear nos anos 1950 jamais vão retornar. Os conservadores não têm nada a dizer para a criança que vive afastada do pai ou cuja mãe teve outros três filhos com pais distintos. “Vá viver com uma família nuclear” já não é um conselho relevante. Se as famílias nucleares tradicionais estão na minoria dos domicílios, isso só significa uma coisa: a maioria é formada por pais solteiros, pais não-casados, famílias mistas, famílias chefiadas pelos avós, parcerias sequenciais, etc. Os ideais conservadores ainda não reconheceram essa realidade.
Os progressistas, porém, continuam falando como os individualistas autoexpressivos dos anos 1970: as pessoas devem ter a liberdade de escolher o modelo de família que funciona para elas. Claro que sim. Mas muitas das novas formas de família não funcionam para a maioria — e enquanto as elites progressistas dizem que todas as estruturas familiares são válidas, seu comportamento vai na contramão de suas crenças.
O sociólogo W. Bradford Wilcox expôs essa contradição: os progressistas com ensino superior falam com tolerância sobre as estruturas familiares na sociedade em geral, mas têm expectativas bem mais estritas para suas próprias famílias. Quando Wilcox perguntou a seus alunos da University of Virginia se eles pensavam que ter um filho fora do casamento era errado, 62% responderam que não. Quando perguntou aos estudantes como os pais deles reagiriam se eles tivessem um filho fora do casamento, 97% afirmaram que seus pais teriam “um surto”. Segundo uma pesquisa recente do Institute for Family Studies, californianos com nível universitário e idades entre 18 a 50 tinham menos chance de condenar um filho fora do casamento como errado do que os sem formação universitária. No entanto, eles estavam mais inclinados a dizer que, pessoalmente, não aprovam um filho fora do casamento.
Em outras palavras, enquanto os conservadores sociais têm uma filosofia de família que não conseguem aplicar por não ser mais relevante, os progressistas não têm filosofia alguma pois não querem parecer discriminantes. A revolução sexual veio e passou e nos deixou sem normas a respeito da vida familiar, sem valores ou ideais articulados. Nesse ponto fundamental, nossa cultura coletiva geralmente não tem nada de relevante a dizer — e assim, há décadas, as coisas estão desabando.
A boa notícia é que os humanos se adaptam, ainda que a política seja lerda. Quando uma família deixa de funcionar, as pessoas começam a procurar por algo novo — e muitas vezes topam com algo muito antigo.
Parte II

Redefinindo o Parentesco
NO PRINCÍPIO ERA O BANDO. Por dezenas de milhares de anos as pessoas viveram coletivamente em pequenos bandos de uns 25 indivíduos. Esse bando se ligava a talvez outros 20 bandos para formar uma tribo. No bando, as pessoas saíam para coletar comida e voltavam para dividi-la. Caçavam juntos, combatiam juntos, faziam roupas uns para os outros, cuidavam das crianças dos outros. Em qualquer aspecto da vida, eles se apoiavam na família extensa e no clã ainda maior.
Só que eles não definiam os laços de família como nós fazemos hoje. Nós pensamos em parente como alguém biologicamente ligado a nós. Mas durante a maior parte da história humana, parentesco era algo a ser criado.
Faz décadas que os antropólogos discutem uma definição exata de parentesco. Ao estudar as sociedades tradicionais, eles descobriram uma grande variedade de laços familiares criados entre diferentes culturas. Para os Ilongot, das Filipinas, gente que migra junto para algum lugar é aparentada. Para os habitantes do Vale Nebilyer, na Nova Guiné, o parentesco é criado pela partilha de gordura — a força vital que se encontra no leite materno ou nas batatas-doce. O povo Chuukese, na Micronésia, têm uma expressão, “meu irmão de canoa”, para indicar que duas pessoas que sobrevivem a uma provação no mar tornam-se parte da mesma família. Na costa norte do Alasca, os Inupiat batizam seus filhos com os nomes de falecidos e essas crianças são consideradas parte da família dos mortos.
Em outras palavras, durante uma imensidão da história humana, as pessoas viveram em famílias extensas formadas não apenas por gente com laços biológicos mas com quem se escolhia para conviver. Recentemente, uma equipe de pesquisadores internacional fez uma análise genética de pessoas que foram enterradas juntas há 34 mil anos no que hoje é a Rússia. Presumia-se que fossem uma família, mas descobriram que não havia parentesco próximo entre seus membros.
Num estudo baseado em 32 sociedades caçadoras-coletoras que ainda existem, o parentesco primário — irmãos, pais, filhos — foi encontrado em menos de 10% de cada bando. Nas sociedades tradicionais, as famílias extensas podem ou não ter tido proximidade genética mas elas provavelmente tinham muito mais intimidade emocional do que podemos imaginar. Num belo ensaio sobre kinship Marshall Sahlins, antropólogo da Universidade de Chicago, diz que o parentesco em muitas dessas sociedades parte de uma “mutualidade do ser”. J. Prytz-Johansen, estudioso de religião, descreveu que o parentesco é experimentado como “solidariedade íntima” de almas. E a antropóloga sul-africana Monica Wilson descreveu os membros de tribos como “misticamente dependentes” entre si. Segundo Sahlins, os integrantes de uma tribo veem a si mesmos como “membros um do outro”.
Quando os protestantes europeus chegaram à América do Norte, entre os séculos XVII e XVIII, sua cultura relativamente individualista virou vizinha da cultura bastante comunal dos nativos americanos. Sebastian Junger descreve o que aconteceu em seu livro, Tribe: enquanto os colonos europeus fugiam para viver com as famílias indígenas, quase nenhum nativo americano desertava para viver com as famílias europeias. De vez em quando, os europeus capturavam indígenas e os forçavam a viver com eles, ensinando-lhes inglês e os modos de vida ocidentais. Mas sempre que tinham uma oportunidade, os índios fugiam desse arranjo. Às vezes, colonos europeus eram capturados pelos índios durante as guerras e passavam a viver nas comunidades indígenas — e raramente tentavam fugir. Os europeus ficaram preocupados: se sua civilização era a superior, por que as pessoas estavam decidindo dar no pé para viver de outro modo?
Ao ler sobre tais casos, é difícil não se perguntar se nossa civilização não foi, de algum modo, um equívoco gigantesco.
Evidentemente, não podemos retroceder. Os individualistas ocidentais não são mais o mesmo tipo de gente que vivia em bandos pré-históricos. Talvez não sejamos nem como as pessoas que aparecem nas primeiras cenas de Avalon, pois supervalorizamos a privacidade e a liberdade individual.
Nossa cultura está estranhamente atolada. Queremos estabilidade e raízes mas também mobilidade, capitalismo dinâmico e a liberdade de escolher o estilo de vida que bem entendemos. Desejamos famílias coesas mas não as restrições legais, culturais e sociológica que as tornam possíveis. Temos visto os destroços causados pelo colapso da família nuclear individual.
Testemunhamos o aumento no abuso de opioides, de suicídio, de depressão, de desigualdades — tudo consequência, direta ou indireta, de uma estrutura familiar muito frágil e de uma sociedade muito incoerente, desligada, desconfiada. E no entanto não podemos retornar completamente a um mundo mais coletivo. As palavras escritas pelos historiadores Steven Mintz e Susan Kellogg em 1998 continuam mais verdadeiras do que nunca: “Muitos americanos anseiam por um novo paradigma de vida familiar mas por enquanto o que reina é um profundo senso de confusão e ambivalência.”
Das Famílias Nucleares às Famílias Forjadas
ALGUNS INDÍCIOS recentes, porém, sugerem a possibilidade de um novo paradigma de família em emergência. Muitas estatísticas que citei são sombrias, mas elas descrevem o passado — o que nos trouxe até aqui. Em reação ao caos familiar, acumulam-se evidências de que a priorização da família está começando a reaparecer. Em busca de estabilidade, os americanos estão experimentando novas formas de parentesco e família extensa.
Normalmente, as mudanças de comportamento começam antes que a gente perceba o aparecimento de um novo paradigma cultural. Imagine centenas de milhões de pequenas setas. Em tempos de transformação social, elas mudam de direção: a princípio, são poucas mas logo tornam-se muitas. Por um tempo, ninguém percebe a mudança, mas de repente as pessoas começam a se dar conta do novo padrão e surge um novo conjunto de valores.
É isso que parece estar acontecendo agora — em parte por necessidade, em parte por escolha. Desde os anos 1970 e ainda mais depois da recessão de 2008, as pressões econômicas têm empurrado os americanos a buscar maior apoio da família. A partir de 2012, a porcentagem de crianças vivendo com pais casados começou a aumentar. Estudantes universitários têm hoje mais contato com seus pais do que a geração anterior. Tendemos a desprezar isso como coisa de pais-coruja ou pássaros que fracassam ao sair do ninho. Claro que existem excessos. Mas o processo educacional está mais longo e mais caro atualmente, então faz sentido que jovens adultos dependam dos pais por mais tempo que antes.
Em 1980, somente 12% dos americanos viviam em domicílios multigeracionais. Mas a crise financeira de 2008 gerou um surto de lares com mais de uma geração. Hoje, 20% dos americanos vivem em casas multigeracionais — 64 milhões de pessoas, um recorde sem paralelo.
O renascimento da família extensa tem sido motivado principalmente por jovens adultos que retornam ao lar. Em 2014, 35% dos homens americanos de 18 a 34 anos moravam com seus pais. A longo prazo, essa modificação pode se mostrar saudável e motivada não apenas por necessidade mas pelos benefícios sociais implícitos: levantamentos indicam que muitos jovens já pensam em ajudar seus pais na terceira idade.
Outra parcela do renascimento se atribui aos velhos que passam a viver com seus filhos. A porcentagem de idosos que vivem sozinhos teve um pico por volta de 1990. Hoje, mais de 1/5 dos americanos com 65 ou mais anos vivem em lares multigeracionais. Isso sem considerar os idosos que se mudam para ficar mais próximos dos netos, mas não vivem na mesma casa.
Imigrantes e pessoas de cor — que enfrentam maiores estresses econômicos e sociais — têm mais chances de formar domicílios com famílias extensas. Mais de 20% dos asiáticos, negros e latinos vivem em lares multigeracionais, em contraste com 16% dos brancos. Quanto mais os EUA se diversificam, mais comuns se tornam as famílias extensas.
Os afro-americanos sempre se apoiaram mais na família extensa do que os brancos. “Apesar das forças que trabalham para nos separar — escravidão, Jim Crow, migração forçada, o sistema prisional, a gentrificação — nós sempre tivemos um comprometimento incrível uns com os outros”, me explicou Mia Birdsong, que está para lançar o livro How We Show Up [Como nós aparecemos].
“A realidade”, prossegue ela, “é que as famílias negras são expansivas, fluidas e com um brilhante fundamento no apoio, no conhecimento e nas capacidades da ‘vila’ para cuidar uns dos outros. Eis uma ilustração: quando um pesquisador/assistente social/qualquer branco olha uma criança que roda entre a casa da mãe, dos avós, dos tios, ele vê isso como ‘instabilidade’. Mas o que realmente acontece é que a família (extensa e escolhida) está equilibrando todos os seus recursos para criar aquela criança.”
A família extensa negra sobreviveu mesmo sob a escravidão e todas as separações forçadas decorrentes. No Sul dominado pela segregação e nos centros urbanos do Norte, a família era essencial para lidar com as pressões da migração em massa, das oportunidades limitadas e do racismo estrutural. Mas às vezes as políticas públicas dificultam o progresso desse modelo de família.
Comecei minha carreira como repórter policial em Chicago, escrevendo sobre conjuntos habitacionais como Cabrini-Green. Orientados por pesquisas de ciências sociais, os políticos arrasaram vizinhanças de sobrados geminados — destruindo as complexas redes de interligação social desses edifícios, apesar dos altos índices de violência e criminalidade — para levantar grandes prédios de apartamentos. O resultado foi horroroso: crimes violentos, gangues assumindo o controle dos elevadores, a erosão da vida familiar e comunitária. Felizmente, esses prédios também acabaram sendo demolidos, dando lugar a comunidades de renda mista que são mais abertas à profusão de modelos de família.
O retorno dos arranjos multigeracionais já está afetando a paisagem construída. Segundo levantamento feito em 2016 por uma firma de consultoria imobiliária, 44% dos consumidores buscam uma casa capaz de acomodar seus pais idosos e 42% querem espaço para o retorno dos filhos adultos. Empreiteiros têm respondido à demanda disponibilizando casas que são o que a construtora Lennar chama de “duas casas sob um teto”. São imóveis construídos cuidadosamente, para que os membros da família possam passar tempo junto sem abrir mão da privacidade. A maioria dessas casas têm espaços compartilhados como lavanderias e mudrooms. Mas a “suíte dos sogros”, local para os pais envelhecidos, tem entrada, quitinete e sala de jantar próprios. A “suíte millenial”, canto para os jovens adultos-bumerangue, também tem vaga de estacionamento e entrada á parte. Esses empreendimentos, claro, respondem aos que têm condições de bancar uma casa. Mas servem a um objetivo em comum: familiares de diferentes gerações precisam fazer mais para se apoiar mutuamente.
As famílias extensas mais interessantes são aquelas que vão além dos laços de sangue. Nos últimos anos têm surgido novos arranjos que colocam relações não-biológicas em status de família ou semelhante a família. No site CoAbode, mães solteiras podem encontrar outras mães solteiras que estejam interessadas em dividir uma casa. Por todo o país, encontram-se projetos de co-habitação, em que grupos de adultos vivem como membros de uma família extensa, com dormitórios individuais e áreas coletivas. Common, uma empresa imobiliária lançada em 2015, administra mais de 25 comunidades de co-habitação, em seis cidades, onde jovens solteiros vivem dessa forma. Recentemente, a Common, em parceria com outra empresa, Tishman Speyer, lançou Kin, uma comunidade de co-habitação para famílias jovens. Cada família jovem tem seus próprios alojamentos, mas elas também dividem espaços para brincadeiras, serviços infantis, eventos e passeios.
Esses experimentos, e outros similares, indicam que, embora as pessoas ainda queiram flexibilidade e alguma privacidade, estão mais dispostas a modos de vida mais coletivos, guiados por um conjunto de valores que ainda está se desenvolvendo. Em Oakland, Califórnia, há uma comunidade de co-habitação chamada Temescal Commons, que conta com 23 membros (de 1 a 83 anos) num complexo com nove unidades habitacionais. Não se trata de uma comuna de hipster ricos da Bay Area [região metropolitana de San Francisco]. Os apartamentos são pequenos e os moradores são das classes média e trabalhadora. Eles compartilham um pátio e dividem uma cozinha de escala industrial, onde preparam um jantar comunitário nas noites de quinta e domingo. Os serviços são uma responsabilidade coletiva: os adultos cuidam das crianças uns dos outros e emprestam itens como leite e açúcar. Os pais mais velhos aconselham os mais novos. Quando membros dessa família extensa sofrem com desemprego ou uma crise de saúde, o clã inteiro se junta em socorro.
Courtney E. Martin é uma escritora que se concentra nas formas como as pessoas estão redefinindo o sonho americano — e vive em Temescal Commons. “Eu adoro saber que nossas crianças crescem com diferentes versões de adultos por todo lado, especialmente diferentes tipos de masculinidade”, contou Martin. “Consideramos todas as crianças como nossos filhos.” Martin tem uma menina de três anos, Stella, que tem uma ligação especial com uma rapaz de 20 e poucos, coisa que nunca ocorreria fora dessa estrutura família extensa. “Stella o faz rir e David sente-se especial por ser adorado por essa menina de três anos.”, conta a mãe. Esse tipo de magia, diz ela, não pode ser comprado com riqueza. É algo que só se consegue com tempo e comprometimento, ao fazer parte de uma família extensa. Uma comunidade assim poderia desabar se seus moradores vivessem entrando e saindo do grupo. Mas, pelo menos nesse caso, isso não acontece.
Enquanto Martin falava, percebi uma diferença crucial entre as velhas famílias extensas, como as de Avalon, e as novas, de hoje: o papel da mulher. As famílias grandes como as de Avalon prosperavam porque todas as mulheres eram trancadas na cozinha para alimentar umas 25 pessoas. Em 2008, uma equipe de pesquisadores americanos e japoneses descobriu que mulheres em lares multigeracionais no Japão tinham maior risco de doença cardíaca em comparação com as mulheres que viviam apenas com o marido, provavelmente por causa do estresse. Mas os arranjos familiares de forma extensa têm, hoje, papeis de gênero mais diversificados. E, pelo menos num aspecto, as novas famílias americanas estão formando algo que seria reconhecido pelos nossos ancestrais caçadores-coletores de milênios atrás: suas famílias são escolhidas, transcendendo os laços tradicionais de parentesco.
O moderno movimento de família-por-escolha ganhou espaço em San Francisco nos anos 1980 entre gays e lésbicas, muitos dos quais haviam sido expulsos de suas famílias biológicas e só podiam confiar uns nos outros para lidar com o trauma da crise da AIDS. Em Families We Choose: Lesbians, Gays, Kinship [Famílias que Escolhemos: Lésbicas, Gays e Laços Familiares], a antropóloga Kath Weston afirma que
as famílias que vi sendo criadas na Bay Area por gays e lésbicas tendem a ter limites bem fluidos, com uma organização não muito diferente da que existe entre setores das classes trabalhadora branca, afro-americana e ameríndios. Como seus homólogos heterossexuais, a maioria dos gays e lésbicas considera que os membros da família são as pessoas que “estão do seu lado”, gente em quem se pode confiar emocional e materialmente. “Eles cuidam de mim”, disse um homem, “eu cuido deles”.
Esses grupos são o que Daniel Burns, cientista político da Universidade de Dallas, chama de “famílias forjadas”. Tragédias e sofrimentos aproximam as pessoas de uma forma mais profunda que um mero arranjo de convivência conveniente. Elas se torna, no jargão dos antropólogos, “parentes fictícios”.
Ao longo das últimas décadas, o declínio da família nuclear criou uma epidemia de trauma — milhões de pessoas se viram abandonadas quando o que deveria ser a relação mais sólida e amorosa de suas vidas chegou ao fim. Aos poucos, mas com frequência cada vez maior, esses indivíduos largados estão se unindo para criar famílias forjadas, que têm um sentido de comprometimento especial.
Os membros de sua família de escolha são as pessoas que vão estar ao seu lado incondicionalmente. No Pinterest, pode-se encontrar cartazes para pendurar nas cozinhas onde as famílias forjadas se reúnem: “Família nem sempre é a de sangue. São as pessoas que te querem na vida delas, as que te aceitam pelo que você é. As que fariam de tudo para te ver sorrir & te amam não importa o quê.”
Há dois anos, comecei algo chamado Weave: The Social Fabric Project. Weave [tecer, em inglês] existe para dar apoio e atenção às pessoas e organizações que estão construindo comunidades pelo país. Com o tempo, eu e meus colegas percebemos algo em comum entre os Weavers [tecelões]: eles dão o tipo de cuidado que muitos de nós daríamos apenas a familiares, o tipo de coisa que costumava ser feito pela família extensa.
Ex-executiva de saúde em Nova Orleans, Lisa Fitzpatrick é uma Weaver. Um dia, quando estava sentada no banco do passageiro de um carro estacionado, ela notou que dois meninos, de 10 ou 11 anos, carregavam algo pesado. Era uma arma, que usaram para atirar no rosto dela como parte de um ritual de iniciação de uma gangue. Ao se recuperar, ela percebeu que havia sido apenas um efeito colateral. As verdadeiras vítimas eram os meninos, que tiveram que disparar em alguém para fazer parte de uma família, a gangue.
Fitzpatrick abandonou o emprego e começou a trabalhar com membros de gangues. Abriu sua casa para jovens que, de outra forma, poderiam entrar em gangues. Numa tarde de sábado, 35 crianças se espalhavam por sua casa. Ela lhes perguntou por que eles vinham passar o dia na casa de uma mulher de meia-idade. Eles responderam: “Você foi a primeira pessoa que nos abriu as portas.”
Em Salt Lake City, uma ONG chamada The Other Side Academy introduz presidiários a famílias extensas. Muitos dos homens e mulheres participantes do programa foram autorizados a sair da prisão, geralmente cumprindo longas sentenças, mas devem viver num lar coletivo e trabalhar num negócio cooperativo, que inclui uma companhia de fretes e um brechó. O objetivo é transformar o caráter de cada membro da família. Durante o dia eles trabalham como carregadores ou caixas. Depois, se reúnem para jantar e quase todos os dias fazem algo chamado “Games”. Eles chamam a atenção um dos outros por qualquer pequeno deslize — ser lerdo numa mudança, não tratar outro membro da família com respeito, ser passivo-agressivo, egoísta ou evitativo.
Esses jogos não são limpinhos. Os participantes gritam uns com os outros para quebrar os muros que criaram na prisão. Pense em dois homens grandalhões, cobertos de tatuagens, gritando “Vá se foder! Vá se foder! Vá se foder!”. Na sessão que acompanhei, achei que eles iriam sair no soco. Mas, passada a raiva, existe uma espécie de proximidade que não havia antes. Os homens e mulheres que nunca tiveram uma família afetuosa de repente têm “parentes” que os cobram e exigem um padrão de excelência moral. Manter a integridade torna-se uma forma de pertencer ao clã. Ao dar uma oportunidade de cuidado para pessoas indesejadas, a Other Side Academy cria uma família forjada ferozmente.
Eu poderia relatar centenas de histórias semelhantes, sobre organizações que ligam veteranos traumatizados a ambientes de famílias extensas ou asilos que recebem alunos da educação infantil para que idosos e crianças possam criar laços pela vida. Em Baltimore, uma ONG chamada Thread apoia estudantes com baixo desempenho através de voluntários, muitos dos quais são chamados de “avós”. Em Chicago, Becoming a Man ajuda jovens desfavorecidos a formar laços familiares com seus pares. Em Washington, capital, me encontrei recentemente com um grupo de mulheres cientistas de meia-idade — entre as quais uma célebre bióloga celular do National Institutes of Health e uma astrofísica. Elas vivem juntas numa comunidade católica leiga, dividindo seus recursos e compartilhando suas vidas. Atualmente, a variedade de famílias forjadas nos EUA é infinita.
Você também pode fazer parte de uma família forjada. Eu sou. Em 2015 fui convidada a visitar um casal, Kathy e David, que criou em sua casa um grupo de família extensa — o All Our Kids, do Distrito de Columbia, ou AOK-DC. Alguns anos antes, os dois conheceram James, amigo de um aluno da rede pública da capital americana. James não tinha nada pra comer nem lugar para morar e foi convidado a ficar com o casal. Essa criança tinha um amigo em circunstâncias parecidas e esse amigo também tinha amigos. Quando me juntei ao grupo, cerca de 25 crianças se reuniam para jantar nas noites de quinta e muitas dormiam no porão da casa.
Desde então, jamais saí da comunidade — eles se tornaram minha família escolhida. Temos nossos jantares de quinta à noite, celebramos feriados juntos e passamos férias em grupo. As crianças chamam Kathy e David de Mãe e Pai. No começo, os adultos do clã serviam como figuras parentais dos mais novos — trocando celulares quebrados, apoiando-os numa crise de depressão ou levantando recursos para sua matrícula na faculdade. Quando uma moça do grupo precisou da doação de um rim, David ofereceu um dos seus.
Nós temos nossas famílias biológicas, primárias, que são prioridade, mas também temos essa família. Agora que os jovens dessa família forjada estão chegando aos 20 anos, precisam menos de nós. David e Kathy saíram de Washington mas mantém contato frequente. Os jantares continuam sendo realizados. Ainda nos vemos e nos cuidamos mutuamente. Anos de refeição em comum e de compartilhamento de experiências criaram laços. Se alguém entra em crise, todos comparecem. Essa experiência me convenceu de que todo mundo deveria fazer parte de uma família forjada com pessoas completamente distintas.
Desde que comecei a escrever este artigo, um gráfico me perturba. Ele traça a porcentagem de pessoas que vivem sozinhas num país contra o PIB desse país. Existe uma forte correlação: países onde 1/5 das pessoas vivem a sós, como Dinamarca e Finlândia, são muito mais ricos que lugares onde quase ninguém vive sozinho, como na América Latina e na África. Os países mais ricos têm lares bem menores que os pobres. Um alemão médio vive num lar com 2,7 pessoas enquanto o domicílio do habitante médio de Gâmbia tem 13,8 pessoas.
Esses dados sugerem duas coisas, especialmente no contexto americano. Primeiro, que o mercado deseja que a gente more sozinho ou com poucas pessoas. Dessa forma, somos mais móveis, mais desarraigados, menos comprometidos e assim podemos devotar uma maior carga horária em nossos empregos. Segundo, quando as pessoas criadas em países desenvolvidos ganham dinheiro, elas compram privacidade.
Para os privilegiados, isso meio que funciona. Esse arranjo permite que a classe alta dedique mais horas ao trabalho e aos emails, sem o estorvo dos compromissos familiares. Eles podem bancar a contratação de pessoas que fazem o que as famílias extensas costumavam fazer. Mas sempre paira uma tristeza, uma noção de que a vida é emocionalmente vazia quando a famílias e os amigos íntimos não têm presença física, quando os vizinhos não são geográfica ou metaforicamente próximos para te apoiar ou para ter seu apoio. A atual crise de conexão se origina do empobrecimento da vida familiar.
Sempre pergunto aos amigos africanos que imigraram para os EUA o que mais lhes chamou a atenção ao chegar aqui. A resposta é sempre uma variação sobre o mesmo tema — a solidão. É a rua vazia de um subúrbio no meio do dia, que talvez tenha apenas uma mãe solitária empurrando um carrinho de bebê na calçada mas ninguém por perto.
Para os que não são privilegiados, a era da família nuclear e isolada tem sido catastrófica. O resultado tem sido famílias demolidas ou inexistentes; famílias-carrossel, que deixam as crianças traumatizadas e isoladas; senhores de idade morrendo sozinhos em um quarto. Todas as formas de desigualdade são cruéis, mas a desigualdade familiar deve ser a mais cruel, pois prejudica o coração. A partir de certo ponto, a desigualdade familiar prejudica até a economia à qual a família nuclear deveria servir: as crianças que crescem em ambientes caóticos têm dificuldade em se tornar empregados habilidosos, estáveis e socialmente flexíveis mais tarde.
Quando o hiperindividualismo ganhou força nos anos 1960, as pessoas experimentaram novos modos de vida baseados nos valores individualistas. Hoje estamos saindo dos escombros desse hiperindividualismo — que deixou muitas famílias isoladas e desamparadas — e as pessoas estão experimentando novas maneiras de viver, como novas formas e variedades de famílias extensas.
O apoio governamental pode ajudar a sustentar essa experimentação, especialmente para a classe trabalhadora e os mais pobres, com coisas como créditos tributários para quem tem filhos, programas de aprimoramento para pais de família em crise, educação infantil subsidiada e licença-parental expandida. Embora as mudanças mais importantes sejam culturais, movidas por escolhas individuais, a vida familiar está sob tantos estresses econômicos e sociais nos estratos mais pobres da sociedade americana que nenhuma recuperação é possível sem alguma ação governamental.
Enquanto isso, a família biparental está longe de ser extinta. Para muita gente, especialmente para quem tem os recursos sociais e financeiros, esta é uma boa maneira de viver e criar os filhos. Mas um novo ethos, mais comunal, está emergindo, algo em sintonia com a realidade e os valores do século XXI.
Ao discutir os problemas enfrentados pelo país, raramente falamos da família. Parece ser muito preconceituoso, muito desconfortável. Mas o fato contundente é que a família nuclear está desabando há décadas, em câmera lenta, e muitos dos nossos problemas — como educação, saúde mental, drogas e a qualidade da força de trabalho — derivam desse desabamento. Ainda nos prendemos ao paradigma de família nuclear de 1955. Para a maioria das pessoas, as condições daquele tempo não vão voltar.
Os americanos têm fome de viver em famílias extensas e forjadas, de maneiras que são simultaneamente novas e antigas. Esta é uma oportunidade importante, uma chance para prolongar e reforçar os laços familiares; para permitir que mais adultos e crianças vivam e cresçam sob o olhar carinhoso de uma dúzia de pares de olhos e que, ao cair, sejam salvos por dezenas de mãos. Faz tempo que temos nos alimentado em mesas cada vez menores, com cada vez menos família. É hora de buscar meios de voltar às grandes mesas.
DAVID BROOKS é colaborador da revista The Atlantic e colunista do New York Times. Escreveu os livros The Road to Character [A Estrada para o Caráter] e The Second Mountain: The Quest for a Moral Life [A Segunda Montanha: a missão por uma vida moral]. Este artigo foi publicado originalmente na Atlantic, edição impressa de Março de 2020.