A improvável ressurreição de H. P. Lovecraft
Mais de um século após seu nascimento, o escritor, conhecido por seus contos assombrosos — e suas crenças racistas — passa por um dos maiores renascimentos na literatura ocidental
Por Philip Eil, na Atlantic. Tradução de Renato Pincelli.
A HISTÓRIA AMERICANA está repleta de escritores cuja genialidade foi subestimada — ou mesmo completamente ignorada — enquanto estavam vivos. A maior parte dos poemas de Emily Dickinson só foi descoberta e publicada após sua morte. F. Scott Fitzgerald “faleceu convencido de ser um fracassado”. Zora Nearle Hurston foi enterrada numa sepultura não-identificada. John Kennedy Toole venceu o Prêmio Pulitzer 12 anos depois de cometer suicídio.
Mas talvez nenhuma história de sucesso póstumo seja tão espetacular quanto o caso de Howard Phillips Lovecraft, o escritor de “horror cósmico” que morreu em Providence (Rhode Island), em 1937, aos 46 anos. As circunstâncias dos anos finais de Lovecraft eram tão penosas quanto se pode imaginar. Ele comia carne enlatada vencida e escreveu para um amigo: “nunca estive tão próximo da miséria”. Ele jamais viu suas histórias publicadas em coletâneas e, antes de sucumbir a um câncer intestinal, escreveu confessando não ter “ilusões sobre o status precário de meus contos e não espero me tornar um concorrente à altura dos meus escritores esquisitões favoritos.” Entre suas últimas palavras estavam estas: “Às vezes a dor é insuportável.” Seu obituário no Providence Evening Bulletin estava “cheio de erros grandes e pequenos”, segundo seu biógrafo.
É difícil imaginar que alguém como Lovecraft tenha passado por tamanha miséria e obscuridade hoje em dia, quando regiões de Plutão foram batizadas de acordo com monstros Lovecraftianos, o troféu do World Fantasy Award [Prêmio Mundial de Fantasia — WFA] tem a forma de seu rosto, seus trabalhos aparecem na Biblioteca da América, a New York Review of Books consagra-o como “Rei do Insólito” e sua efígie aparece em tudo — de latas de cerveja a livros para bebês e roupas íntimas. Lovecraft não só conseguiu escapar do anonimato mas também conseguiu alcançar os maiores níveis de sucesso de público e crítica. Sua vida literária póstuma é talvez a coisa mais doida que este país já viu.
O que não quer dizer que o ressurgimento de Lovecraft seja apenas uma história inspiradora. Sua ascensão à fama trouxe aos holofotes tanto os seus talentos quanto os seus defeitos: ele era um homem que, em carta de 1934, descreveu as “medidas extra-legais como linchamento e intimidação” praticadas no Mississipi e no Alabama como “inteligentes”. No 125º. aniversário do nascimento do autor — em 20 de agosto de 1890 — seu legado nunca esteve mais garantido nem mais complexo. Stephen King considera-o “o maior praticante do conto de horror clássico do século XX” ao mesmo tempo em que sabe que Lovecraft foi indubitavelmente racista. São duas posturas que aqueles que estudam e admiram sua obra atualmente têm de reconciliar.
Lovecraft jamais tomou parte na vida pública: ele era orgulhoso demais ou talvez frágil demais para isso (várias doenças e crises de ansiedade impediram-no de frequentar a universidade ou de participar da I Guerra Mundial). Ele passava a maior parte do seu tempo escrevendo e, da criança-prodígio ao rabiscador do seu “diário de morte”, ele deixou uma quantidade monumental de trabalhos. Centenas de poemas foram escritos por Lovecraft, bem como algumas dúzias de ensaios, dos quais o mais famoso começa assim: “A emoção mais antiga e forte da humanidade é o medo e o tipo mais forte e antigo da humanidade é o medo do desconhecido”. Ele escreveu dezenas de milhares de cartas — algumas estimativas apontam para 100 mil correspondências.
Mas é a ficção Lovecraftiana — uns 70 contos mais alguns outros trabalhos em co-autoria com outros escritores — que formam a base de sua reputação. O espírito desses contos talvez seja mais bem resumido num meme que apresenta sua cara e a seguinte legenda: “E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE — BRINCADEIRA, ESTÃO TODOS MORTOS OU INSANOS”. Os títulos de suas histórias também nos dão uma noção do clima que têm: The Lurking Fear [O medo à espreita], The Terrible Old Man [O terrível homem velho] e The Rats in the Walls [Os ratos nos muros].
Cenários do dia-a-dia não tinham graça para Lovecraft. “Eu não poderia escrever sobre ‘pessoas ordinárias’”, escreveu ele certa vez, “porque não tenho o menor interesse nelas”. Assim, ele escrevia sobre o bizarro: canibalismo, reanimação dos mortos, auto-imolação, assassinato, loucura induzida por meteoros, híbridos humano-peixes, alienígenas e — no caso de The Festival — “uma horda de coisas híbridas e aladas, domadas e treinadas, coisas que nenhum olho são seria capaz de ver por inteiro nem um cérebro são seria capaz de lembrar por inteiro.” Outro conto, The Shunned House [A casa rejeitada, 1924] apresenta um final vagamente feliz, com a imagem de pássaros de volta a uma “velha árvore desfolhada” — mas isso só acontece depois que o tio do narrador transforma-se numa “nuvem fosforescente e escura de repugnância de fungos (…) que com uma podridão sombria alcançava-me com um esgar e sussurro.”
Lovecraft vendia histórias como essa por uma merreca para revistas de polpa, como a Weird Tales e a Astonding Stories. Ele também ganhava uns trocados fazendo trabalho de revisão da obra de outros autores. Mas nunca ganhou muito. Leslie Klinger, editor do The New Annotated H.P. Lovecraft, descreve-o como “a quintessência do autor morto de fome”. Embora Lovecraft tenha conseguido a admiração de alguns fãs — ele trocou cartas com um jovem chamado Robert Bloch, que décadas mais tarde escreveria Psicose — nunca teve reconhecimento da crítica. Poucos anos após sua morte Edmund Wilson, crítico da New Yorker, foi duro ao escrever que “Lovecraft não era um bom escritor” e, além disso, “O único horror de verdade na maioria dessas ficções é o horror da arte ruim e do mau gosto.”
Enquanto Wilson rebaixava sua obra, seus fãs e amigos buscavam preservá-la. Como contou o biógrafo S. T. Joshi numa palestra em 2013, um jovem fã de Lovecraft tomou um ônibus do Kansas a Rhode Island após a morte do autor para garantir que alguns papéis do escritor fossem doados à Brown University. Outros amigos lançaram uma companhia editora — a Arkham House — com o expresso propósito de publicar os contos de Lovecraft.
Tais esforços mantiveram vivo o legado lovecraftiano e, como Joshi descreve, os eventos ao longo do meio século após sua morte lhe deram mais peso. Os franceses adoraram Lovecraft, da mesma forma que já haviam feito com o ídolo dele, Edgar Allan Poe. Nos anos 1960 e 70, a ficção de horror cresceu em popularidade e estatura graças a livros como O Bebê de Rosemary e O Exorcista, levando a obra de Lovecraft a ser cada vez mais bem recebida entre os cineastas e os acadêmicos.
Por volta de 1977, uma turma de devotos levantou dinheiro para dar ao autor uma lápide apropriada à sepultura da família Lovecraft em Providence — um monumento agora icônico, gravado com uma citação de uma de suas cartas: “I AM PROVIDENCE”. Em 1999, a Penguin publicou a primeira coleção da obra de Lovecraft na série Penguin Classics e, em 2005, a Biblioteca da América publicou seu próprio volume — o que, nas palavras de Joshi, marcou a “canonização definitiva” do escritor. “Ele estava no cânone da literatura americana bem entre Poe e Hawthorne, Melville e Henry James, Willa Cather e Edith Warthon. Ele chegou lá.”, disse Joshi. No ano passado [2014], a revista New York cobriu uma peregrinação de George R. R. Martin, autor de Game of Thrones, à tumba.
MAS O RESSURGIMENTO de Lovecraft é apenas metade da história. A outra metade é sua conquista da cultura popular. Lovecraft está entre os escritores mais coisificados do mundo, com jogos de tabuleiro, moedas, corseletes, decorações natalinas, dados, vestidos, chaveiros, molduras de placas de carros, canecas, capinhas de celulares, bichinhos de pelúcia, pôsteres e gravatas. Fãs empreendedores têm estampado o nome Cthulhu (a mais famosa criatura de Lovecraft: uma entidade imensa, malévola e multi-tentacular) ou outros bla-bla-blás lovecraftianos em quase todos os bens de consumo imagináveis. E não é apenas merchandise. Também são aplicativos e filmes e podcasts. Tem um bar em Nova York chamado Lovecraft e uma paródia musical intitulada A Shoggoth on the Roof. Há um fã-clube com celebridades como Guillerdo del Toro, Neil Gaiman, Junot Diaz e Joyce Carol Oates. Festivais Lovecraft são realizados em lugares como Estocolmo (Suécia), Lyon (França), Portland (Oregon) e, é claro, Providence.
Falando do lugar onde moro, Providence, a cidade recentemente superou décadas de apatia diante de seu ídolo literário. Providence tem, agora, uma esquina Lovecraft, um busto de Lovecraft, passeios de Lovecraft, maratonas de leitura de Lovecraft, um concurso Lovecraft de redação de contos e uma bolsa de estudos na Brown University “para pesquisas relacionadas a H.P. Lovecraft, seus associados e seus herdeiros literários”. No mês passado, foi inaugurado um “bureau de informação e empório de esquisitices” à la Lovecraft, onde se pode comprar camisas com a estampa “CTHULHU FHTAGN” e adesivos de para-choque “I AM PROVIDENCE”.
Niels Hobbs, co-proprietário desse loja, também organiza a NecronomiCon Providence, a convenção onde S. T. Joshi apresentou sua palestra em 2013. Recentemente, Hobbs me disse que a bolha de popularidade de Lovecraft está destinada a estourar. “Não posso ver como isso vai continuar a se sustentar nesse ritmo”, disse ele. “Mas, apesar disso, as coisas não parecem estar diminuindo.”
E daí? Qual a importância disso tudo? Bem, a convenção de 2013 rendeu estimados 600 000 dólares ao comércio de Providence. E o festival desse ano [de 2015], que vai de 20 a 23 de agosto, promete ser ainda maior. Estão programados concertos, passeios de ônibus, exposições de arte, torneios de jogos de tabuleiro, sessões de leitura, LARPing [Live Action Role-Playing], um baile à fantasia e seminários com temas como “A mecânica do medo” e “Ah, os tentáculos!”. Se você for alguém que segue os eventos que celebram autores americanos — Hemingway Days em Key West; Twain on Main, em Hannibal (Missouri) ou o Festival Literário Tennessee Williams de Nova Orleans — é bom marcar na agenda a Prece Matinal de Cthultu da NecronomiCon.
Em termos mais gerais a emergência de Lovecraft também trouxe à tona uma verdade inconveniente: ele era um racista virulento. A xenofobia e o supremacismo branco que borbulham sob sua ficção (e que passariam em branco se ele tivesse ficado no anonimato) são incomodamente explícitas em suas cartas. Folheie algumas delas e você vai encontrar um escritor reclamando de judeus como “aliens de nariz aquilino, trigueiros, de vozes guturais” cuja “companhia (…) era intolerável”; da Nova York de “pretos molengas, pungentes, sorridentes e palradores” e da Nova Inglaterra tomada por “latinos indesejáveis — italianos do sul e portugueses da mais baixa espécie e a praga clamorosa dos franco-canadenses”. Em 1922, ele escreveu expressando o desejo de que “uma suave brisa de cianogênio pudesse asfixiar aquela aberração gigantesca” que era a Chinatown nova-iorquina, que ele considerava “uma bagunça bastarda, um ensopado de carne mestiça”. Em outra carta, considerou que, “em geral a América fez uma bela bagunça com sua população e vai pagar por isso com lágrimas em meio a um apodrecimento prematuro a não ser que algo seja feito o quanto antes.”
Esses escritos deixam os fãs de Lovecraft numa posição desconfortável. Leeman Kessler, que no YouTube atua como Lovecraft na popular websérie Ask Lovecraft, escreveu um ensaio — Da representação de um supremacista branco — no qual diz que “enquanto eu fizer dinheiro por atuar como Lovecraft ou aceitar convites para convenções e festivais, penso que é meu dever moral encarar sem hesitações o desconforto.” Agraciada com o WFA, a novelista Nnedi Okorafor escreveu um post em 2011 chamando a atenção para um poema de Lovecraft, Da criação dos pretos. “Eu gostaria de ver The Howard (apelido da estatueta do World Fantasy Award) com a cabeça de outro grande escritor?”, questionou-se ela, respondendo em seguida: “Talvez sim, talvez não… O que sei [é que] quero enfrentar a história dessa página da literatura em vez de deixá-la de lado ou enterrá-la.”
No ano passado [2014], uma petição exigindo que Octavia Butler substituísse Lovecraft nas estatuetas do WFA recebeu mais de 2 500 assinaturas. Uma contra-petição foi aberta logo em seguida: “Mantenham a adorada caricatura de H.P. Lovecraft como Troféu do World Fantasy Award e não a proíbam para ser PC [Politicamente Correto]!” Comentários com esses mesmos tons são trocados regularmente nas mídias sociais dedicadas a Lovecraft.
Por mais vergonhoso que seja para seus fãs, o racismo de Lovecraft também é uma das melhores lentes para ler sua obra. Em março [de 2015], Leslie Klinger apresentou uma aula sobre Lovecraft na Biblioteca Hay, da Brown University, lar da maior coleção mundial de papéis e outros materiais lovecraftianos. No fim de sua apresentação, Klinger — sem buscar se desculpar ou defender o racismo de Lovecraft — recusou-se a separá-lo das realizações do autor. Lovecraft “desprezava pessoas que não eram brancos anglo-saxões e protestantes”, disse o palestrante. “Mas é isso que dá força às suas histórias… essa sensação de que ele está sozinho, que está cercado de inimigos e que tudo lhe é hostil. Acho que se tirássemos esse aspecto do caráter dele, ele poderia ser uma pessoa muito mais legal mas isso destruiria seus contos.”
Na introdução ao livro de Klinger, o quadrinista Alan Moore trata do mesmo assunto. Mas antes ele procura lembrar os leitores das mudanças sociais sísmicas ocorridas durante a vida de Lovecraft: sufrágio feminino, os avanços no nosso entendimento do espaço sideral, a revolução russa, as comunidades LGBT cada vez mais visíveis nas cidades americanas e a maior onda migrantes e refugiados já vista pelos EUA. Moore considera que
Em vista disso, é possível perceber Howard Lovecraft como um barômetro supersensível dos temores americanos. Longe de excentricidades extraordinárias, os medos que geravam as histórias de Lovecraft eram exatamente os mesmos dos homens descendentes de protestantes, heterossexuais, brancos e de classe média, que se sentiam os mais ameaçados pelas mudanças nas relações de poder e de valores do mundo moderno.
Como bibliófilo, como amante da História de Providence, como judeu e como fã da escrita dele, como professor que o recomenda aos seus alunos, minha relação com Lovecraft é complicada. Nos seus melhores momentos, seus contos alcançam uma lugubridade visceral ou então catapultam a imaginação do leitor para as profundezas do espaço sideral. Quando você pega gosto por seu estilo maximalista, essas histórias tornam-se viciantes. Mas minha admiração sempre esteve de mãos dadas pelo conhecimento de que Lovecraft consideraria minha ascendência judaica repugnante e que ele via nossa cidade-natal como um refúgio livre das ondas de migrantes que infestavam outros lugares — “A América perdeu Nova York para os mestiços, mas o sol continua a brilhar sobre Providence”, escreveu ele a um amigo em 1926.
Eu ainda não solucionei essa tensão e não tenho certeza de que vou conseguir algum dia. Mas eu decidi que ele é, talvez, o ícone literário que nosso país merece. As histórias criadas por ele revelam muito mais sobre seus preconceitos do que sobre sua genialidade. Ou, como conclui Moore: “Codificados num alfabeto de monstruosidades, os escritos de Lovecraft nos oferecem uma possível chave para entendermos nossos dilemas atuais.”
PHILIP EIL é escritor freelance e mora em Providence (Rhode Island), onde é professor-assistente de artes literárias na Escola de Design de Rhode Island. Seus artigos já apareceram em publicações como a “Salon”, “The Jewish Daily Forward”, “Rhode Island Monthly” e “The Atlantic”, de onde traduzimos este ensaio publicado originalmente em 20 de agosto de 2015, no 125º. aniversário de Lovecraft.