A Justiça Americana pouco se importa com o estupro

Por trás de cada momento do julgamento de Harvey Weinstein, há um padrão perturbador da História jurídica dos crimes sexuais nos EUA

Renato Pincelli
15 min readFeb 8, 2020
Sempre que aparece para julgamento, Harvey Weinstein busca aparentar fragilidade para ganhar a simpatia do júri. Muitos julgamentos de estupro resumem-se a isso: ganhar a simpatia dos jurados. [ilustração de Jane Rosenburg]

Por Barbara Bradley Hagerty, para a Atlantic.
Tradução de Renato Pincelli.

TODO DIA, AO CHEGAR NA Suprema Corte do Estado de Nova York, Harvey Weinstein aparece frágil, envelhecido e às vezes manquitolando num andador até entrar numa sala de tribunal cheia de espectadores e com o peso de um legado de desconfiança. No lado da Promotoria, sentam-se duas mulheres que alegam ter sido sexualmente abusadas pelo produtor de Hollywood; outras quatro reforçariam suas alegações de que ele é um predador sexual e ainda há dezenas de outras acusadoras e legiões de pessoas que veem em Weinstein o vilão original do movimento #MeToo.

Do outro lado, dando apoio a Weinstein e seus advogados, estão os céticos desta e outras acusações de estupro, gente que cita as falsas alegações contra os jogadores de lacrosse [da Universidade] de Duke e contra os membros de fraternidade da Universidade da Virgínia. Permeando cada momento do processo, cada moção e testemunho, cada acareação e manifestação do júri, está a perturbadora História dos julgamentos de estupro nos Estados Unidos.

O que acontece nesta corte de Manhattan é um divisor de águas para Weinstein e, talvez, para as vítimas, que quase nunca veem seus abusadores levados à Justiça. O estupro raramente é investigado ou julgado, o que faz do abuso sexual o crime violento mais fácil de ficar impune. Isso está mudando, mas lentamente — em vez do tsunami do movimento #MeToo, está mais para uma marolinha de alguns centímetros. Os julgamentos de Weinstein e, antes dele, de Bill Cosby, certamente são um progresso. Mas para Tania Tetlow, ex-promotora federal e reitora da Universidade Loyola em Nova Orleans, “é uma espécie de progresso triste que agora acreditemos numa vítima depois que aparecem outras 40 ou 50.”

O ceticismo sobre a violência sexual parece estar inscrito na sociedade ocidental, especialmente em sua jurisprudência. Lord Matthew Hale [1609–1676], juiz na Inglaterra do séc. XVII, captou esse sentimento quando instruiu seus jurados a considerar com cuidado as alegações da vítima diante deles. Uma acusação de estupro, aconselhou Hale, “é fácil de ser feita e difícil de se provar e ainda mais difícil de ser defendida pela parte acusada.” Para ele, o testemunho da mulher deveria ser examinado “com cautela”.

Se tais palavras parecem pré-históricas, considere essa orientação dada pelo Modelo de Código Penal, projeto que os Estados americanos devem seguir ao escrever seus códigos criminais [N. do T.: nos EUA, o sistema penal não é federalizado e isso significa que existem crimes em alguns Estados e em outros não. Embora possa haver extradição de um Estado para outro, muitas vezes basta que um criminoso mude-se para um Estado com regime penal diferente para continuar livre].

Criado pelo Instituto de Direito Americano, o modelo foi publicado em 1962. Originalmente, ele sugeria que uma mulher deveria denunciar um abuso dentro de três meses, uma regra conhecida como “clamor imediato” — que faz o mais rigoroso regime de prescrição de hoje parecer generoso. Segundo os autores do Modelo, um promotor não pode tomar a palavra de uma mulher pelo valor de face, mas deve buscar evidências externas numa “tentativa de inclinar a resolução […] das disputas em favor do réu.”

O documento nota, ainda, “os perigos de chantagem ou psicopatia” por parte de uma “querelante vingativa”, recomendando aos jurados que avaliem o testemunho da mulher “com especial cuidado” por causa “do envolvimento emocional da testemunha”. Os sistemas estaduais seguiram de perto esse código-modelo e foi assim até 2012 — isso mesmo, 2012 — , quando os legisladores começaram a fazer revisões.

“AS LEIS DE ESTUPRO, na maioria dos Estados, foram redigidas de modo a tornar o estupro virtualmente improcessável”, diz Jane Manning, ex-promotora de crimes sexuais no Queens (Nova York) e atual diretora do Women’s Equal Project, ONG que advoga para sobreviventes de abusos sexuais. Segundo ela, até a onda de mudanças nos anos 1960, a “exigência de corroboração” significava que o testemunho de uma mulher era inválido a menos que pudesse ser comprovado por evidência externa. Se um homem roubasse e estuprasse uma mulher, o testemunho dela poderia condená-lo pelo roubo, mas não pelo estupro.

Além disso, uma mulher tinha que demonstrar uma “resistência veemente” — provar que havia lutado ou fugido, mesmo que isso tivesse colocado sua vida em risco. Depois, se ela ousasse chegar ao tribunal, seus históricos pessoais e sexuais entrariam em jogo, levando a questionamentos brutais: Você era virgem? Quantos parceiros já teve? Por que estava naquele bar? Teoricamente, essas questões garantiam sua “castidade” e credibilidade. Por fim, a lei não dava proteção à mulher casada com um marido sexualmente violento. O estupro era parte do contrato marital e, do Gênesis à América do século XIX, a mulher era propriedade do marido. “Estuprar sua esposa não fazia sentido”, explica Tetlow, “porque você tinha todos os direitos sobre ela. Mas se alguém estuprasse sua esposa — aí era um incrível afronta à dignidade do marido, uma espécie de invasão de sua propriedade”.

No último meio século, o progresso vem chegando aos trancos e barrancos. Na prática, todos os Estados já eliminaram a exigência de corroboração. A maioria ampliou os prazos de prescrição, mas em uma dúzia de Estados a vítima deve relatar o estupro dentro de dez anos ou até menos. Foi só nos anos 1970 que os governos federal e estadual começaram a aprovar as chamadas leis de blindagem, que impedem advogados de defesa de fritar uma mulher por seu histórico sexual. O estupro marital foi abolido tecnicamente em todos os 50 Estados por volta de 1993.

Entretanto, dezenas de Estados têm brechas em suas leis, como a de que um homem não pode ser processado por estuprar sua esposa se ela estiver drogada ou dormindo. Só no ano passado Minnesota mudou essa lei quando uma mulher veio a público com sua história. Ela havia descoberto vídeos de seu marido estuprando-a enquanto ela estava inconsciente, dopada. Numa gravação, a câmera dá um zoom até enquadrar o rosto da mulher e do seu filho menor, que dormia perto dela.

Se algumas regras mudaram, as atitudes por trás delas continuam vivas, uma herança vil que foi passada até a geração atual. Apesar do Movimento #MeToo, essas atitudes continuam a moldar os eventos nos tribunais, nas salas do júri e na sociedade.

Por isso, o caso People v. Harvey Weinstein é uma ação espinhosa para os promotores. Segundo o New York Times, das mais de 90 denunciantes possíveis, ficaram apenas duas. A primeira é Mimi Haleyi, que alega ter sido forçada por Weinstein a fazer sexo oral no apartamento dele em 10 de junho de 2006. A outra, Jessica Mann, esperava que Weinstein ajudasse sua carreira de atriz decolar até que foi, segundo ela, violada à força pelo produtor na primavera de 2013. Mann é considerada uma testemunha “imperfeita” — uma ideia problemática e discutível — porque surgiram evidências de que ela manteve contato com Weinstein durante anos após o alegado estupro.

Na esperança de aumentar a pena, os promotores também contam com outras quatro mulheres, que devem expor seus casos. A promotoria acusa Weinstein de “assalto sexual predatório”, que implica em pena de morte. Para isso, na semana passada, eles convidaram Annabella Sciorra (mais conhecida por seu papel em The Sopranos) para descrever como Weinstein a teria estuprado no apartamento dela, em Gramercy Park, no inverno de 1993–94. Outras três vítimas — Dawn Dunning e Tarale Wulff, aspirantes a atriz, e a modelo Lauren Young — vão testemunhar sobre os abusos que sofreram em 2004, 2013 e 2005, respectivamente.

A acusação espera demonstrar que Weinstein tinha um modus operandi: convidar as mulheres para seu quarto de hotel (ou ir ao delas), oferecer sua ajuda na carreira cinematográfica e pedir por uma massagem, forçando-as ao ato sexual e mantendo contato em seguida. Quanto às dezenas de outras vítimas que alegam ter sido abusadas ou assediadas pelo produtor, seus casos aconteceram há tempo demais ou não se enquadram no padrão de assalto sexual. Ou, talvez com razão, as vítimas não querem ver suas vidas escrutinadas e demonizadas pela defesa.

ENQUANTO TENTAM comprovar seu caso, os promotores precisam enfrentar o legado de ceticismo em relação às denúncias de estupro feitas por mulheres. Ainda que os legisladores e juízes tenham removido as barreiras mais odiosas às alegações deste crime, o sentimento permanece: as leis de hoje descendem das de ontem e carregam, sob novo nome, a mesma descrença. Ou seja, mesmo em 2020, o caráter e o comportamento da mulher são tão julgados quanto os do homem.

Considere a regra segundo a qual o testemunho de uma mulher seria inválido sem evidência externa. Deborah Tuerkheimer, especialista em legislação sobre estupro da Faculdade de Direito Pritzker, da Northwestern University, lembra que a exigência de corroboração já não tem importância formal. “Mas quantas vezes a gente ouve dizer que ‘é apenas um caso do tipo ele disse, ela disse’”?, pergunta ela.

Tetlow concorda que o Estado deveria se resguardar das falsas acusações que podem arruinar a reputação de um homem. Porém, como ela ressalta, é como se “de todos os tipos de crime, o estupro envolvesse alguma quantidade extraordinária de falsas denúncias”, o que justificaria o maior escrutínio sobre a palavra da mulher. Estudos citados por Tetlow mostram que cerca de 5% das alegações de estupro revelam ser falsas — um índice que não é maior do que qualquer outro crime.

Me deparei com esse sentimento vez após vez enquanto pesquisava para minha reportagem na Atlantic sobre como são poucos os casos de estupro investigados e julgados. Normalmente, a vítima nunca chega a um tribunal. A polícia tende a tratar apenas dos casos que envolvem uma “vítima honrada” — como uma mulher violada por um desconhecido armado, num beco, que resistiu e tinha ficha limpa e nenhuma gota de álcool no sangue. Isso seria um “estupro de verdade”, digno de investigação.

Entretanto, em 80% dos casos, a vítima conhece seu agressor. Tais casos tendem a ser evitados pelos promotores, mesmo que acreditem na vítima, porque acham que o júri não vai acreditar nela. Por trás da pegadinha do “ele disse, ela disse”, está o problema do consentimento. Como provar que ela resistiu, se não há cortes e hematomas? Como provar que o encontro não era um “arroubo de festa”, em que a mulher bebe demais e faz sexo ou que seria uma questão de “arrependimento tardio” — quando a mulher consente o sexo e no dia seguinte fica arrependida?

Parcialmente impulsionado pela pressão pública, o caso de Harvey Weinstein quebrou as expectativas e chegou aos tribunais. Mesmo assim, o problema do consentimento e da credibilidade feminina neste caso “ele disse, ela disse” ainda influencia as decisões dos promotores. Inicialmente, por exemplo, o caso estava centrado em Lucia Evans, que alega ter sido forçada por Weinstein a fazer sexo oral no escritório dele em 2004. De repente, o promotor distrital tirou-a do caso, após uma fonte contar aos investigadores que Evans dizia que o ato havia sido consensual — afirmação negada pela própria Evans.

Quando uma vítima se expõe, ela faz isso assumindo seus próprios riscos, dentro e fora dos tribunais. Para Tetlow, as leis de blindagem apenas teoricamente impedem um advogado de defesa de expor o histórico sexual de uma mulher: se o comportamento da vítima “não se parece com o de uma freira, ela vai ser atacada”. A sociedade — ou, pelo menos, parte dela — pode ter abandonado o padrão de castidade, aceitando que as mulheres devem ser tão livres quanto os homens ao expressar sua sexualidade. Mas, na prática, a lei ficou para trás.

Uma suposta vítima disse ao The New York Times que optou por não aparecer porque seu advogado alertou-a de que Weinstein contrataria investigadores para buscar seus podres. Donna Rotunno, advogada de defesa de Weinstein, expressou o equivalente moderno da exigência de castidade quando declarou à ABC News: “Se não quiser ser uma vítima, não vá para o quarto de hotel.” Para Manning, a ex-procuradora de crimes sexuais, a mensagem é clara: “Uma mulher que entra no quarto de hotel de um homem é, por definição, vadia e merece o que quer que aconteça com ela.”

Alguém poderia pensar que algumas acusadoras de Weinstein seriam empoderadas por sua fama e carreira bem-sucedida. Tetlow alerta que ninguém é imune: “Eu não acho que haja qualquer mulher neste país, não importa quão poderosa, que não saiba que ela pode ser humilhada a qualquer momento.”

De fato, já aconteceu. Há duas décadas, Weinstein convidou a jovem atriz Ashley Judd para um café-da-manhã em seu quarto de hotel. Será que ela não poderia lhe dar uma massagem no ombro e vê-lo tomando banho? Depois que ela se negou, ele espalhou rumores por Hollywood para que evitassem contratá-la, pois ela seria “um pesadelo para trabalhar”. Na mesma época, ele cometeu a mesma vingança contra a atriz Mira Sorvino.

Questões profissionais à parte, conseguir uma condenação por estupro é um longo processo — e um pesadelo. Quando uma mulher denuncia um estupro, a defesa (e o júri) dissecam não apenas sua história e seu caráter mas também o comportamento dela durante e após a agressão. Aqui surgem os descendentes dos dois pilares da lei de violação: a compulsão à força e a resistência veemente. Será que ele a dominou e ela chutou e gritou ou fugiu?

Para que os promotores de Manhattan provem o estupro em primeiro grau de Jessica Mann ou a conduta sexual criminosa de primeiro grau (sexo oral) cometida contra Haleyi, eles precisam demonstrar que Weinstein forçou as mulheres a se submeter ou que as fez temer pela integridade física. Não é o bastante que elas tenham declarado que pediram para ele parar. Isso é um padrão exigente para um crime sem testemunhas, denunciado muito tempo depois do desaparecimento de qualquer hematoma e amostra de DNA possíveis. Nova York não é uma exceção, pois cerca de metade dos Estados têm o uso da força como pré-requisito.

Se a exigência de força bruta parece antiquada, a de resistência é mais antiga e desafia tudo o que os cientistas descobriram sobre a neurobiologia do trauma. Por que ela não lutou? Por que não saiu correndo? Por que não meteu-lhe o dedo no olho ou deu-lhe um chute no meio das pernas? Tais questões são ridículas para as sobreviventes de estupro. Ninguém sabe como vai reagir num momento de tanto terror.

Uma vítima que entrevistei ofereceu chá gelado ao agressor, achando que isso iria satisfazê-lo. Outra fingiu estar gostando para que ele não a matasse — uma escolha que, segundo os especialistas em traumas, é racional e não motivo de culpa. Para Manning, nunca se espera que uma vítima de assalto reaja, “mas ainda temos esse antigo preconceito no subconsciente, que nos diz que em caso de estupro a vítima virtuosa deveria fazer um escândalo.” Mesmo que Weinstein não tivesse uma faca ou uma arma, suas acusadoras declararam que sentiram-se aterrorizadas por sua segurança e por sua carreira.

Assim, chegamos à raiz da defesa de Weinstein: essas mulheres seriam parceiras consensuais, como evidenciado por seu comportamento nos dias e até anos subsequentes. Um advogado do produtor já sugeriu que são as mulheres que estão usando Weinstein e não o contrário — “elas estão fazendo isso para subir na indústria [cinematográfica]”. Por essa lógica, segundo Tuerkheimer, da Northwestern University, “é como se isso [o abuso] não fosse algo que elas desejavam por estarem loucamente atraídas por Harvey Weinstein — seriam apenas negócios.”

Como Evidência A, a defesa apresenta uma série de emails de Mann, que diz ter sido estuprada por Weinstein em 18 de março de 2013. “Espero te ver mais cedo do que tarde”, escreveu ela três semanas após o alegado abuso. Foi uma dentre as centenas de mensagens que ela lhe mandou ao longo de anos. “Aprecio tudo o que você faz por mim”, escreveu ela no dia seguinte. Cinco meses mais tarde: “Sinto sua falta, Grandão”. Quatro anos mais tarde, ela ainda escrevia: “Te amo como sempre. Mas odeio me sentir apenas como um brinquedinho. :)”

“Mensagens amigáveis não significam consentimento”, lembra Tetlow. “Mas é muito complicado explicá-las ao júri”. Ela pede que você se coloque no lugar das supostas vítimas: Harvey Weinstein pode te abrir todas as portas para sua carreira. “De certa forma, o desejo de parecer legal, esperando que ainda pode conseguir tudo o que você quer para sua carreira é bastante forte. É fácil culpar as mulheres, mas não sei porque deveríamos jogar a culpa nelas e não no homem que as fez passar por esse inferno.”

Veronique Valliere é psicóloga forense que trabalha tanto com predadores sexuais quanto com suas vítimas. Para ela, a maioria das vítimas conhece os agressores e tentar entrar em contato com ele ajuda-as a superar sua confusão “mesmo que isso pareça errado”. Elas precisam de algum tipo de admissão da parte dele para voltar aos trilhos: “Mesmo que seja só um reconhecimento e uma desculpa tipo ‘ei, foi mal, eu tava muito bêbado ontem e passei dos limites.’” É muito mais fácil para uma vítima negar que foi abusada por um amigo, professor ou colega do que lidar com as consequências. “Porque se você disser que foi estuprada,” explica Valliere, “terá que dizer que seu amigo é um estuprador.”

Manning argumenta que é possível traçar uma linha direta entre a exceção marital — i.e., de que seria OK estuprar seu cônjuge — e o padrão de agressão e reconciliação comum no estupro entre pessoas conhecidas. “Muitos jurados ainda ficam surpresos quando uma mulher continua a manter contato pessoal ou profissional após um estupro. E a vítima fica meio que presa.” Ela conta que, para quem trabalha com sobreviventes de abusos domésticos, “essa história é familiar”.

O QUE ACONTECE numa sala de jurados — as narrativas que predominam nas discussões e os vieses ocultos na cabeça de cada jurado — tornam a sentença imprevisível. Valliere sabe muito bem disso: ela foi testemunha especializada no primeiro julgamento de Bill Cosby, acusado de dopar e abusar de uma conhecida de 29 anos, em 2017. (Dezenas de mulheres disseram ter sido abusadas por Cosby, mas a promotoria só levou adiante o caso de uma vítima, Andrea Constand.)

Valliere explicou aos jurados que as vítimas e os agressores costumam agir de maneiras contra-intuitivas. Os perpetradores podem ser gentis e charmosos e as vítimas podem parecer engajadas numa relação de amizade. Foi Cosby quem falou com a mãe de Constand e se intrometeu na vida da jovem. Mais tarde, Constand telefonou 53 vezes para Cosby após a agressão. No fim, os fatos tiveram pouca importância e o júri foi suspenso por questões sem relação com as provas. “Meu sentimento pessoal”, declarou um jurado a uma TV de Pittsburgh, “é que não importa o que o homem fez, ele já pagou seu preço — pagou, sofreu. Ele parece estar mal. Me perguntei se ele aguentaria passar por todo o julgamento.”

Os procuradores de Filadélfia recorreram e Cosby voltou a julgamento em 2018. Na segunda instância, eles trouxeram outras cinco mulheres, que serviram como testemunhas ao descrever a assinatura de Cosby: ele costumava aconselhar, dopar, abusar e manter-se em contato. Cosby foi condenado no segundo julgamento. Essa estratégia foi adotada pela promotoria de Nova York no caso contra Weinstein.

Similarmente, a defesa do produtor parece estar segundo os passos de Cosby. Como nota Valliere, Weinstein tem aparecido como frágil e velho. “Ele não parece nem perigoso nem sexual. Ele não parece com aquele que as vítimas descrevem — um agressor poderoso, confiante, arrogante, persistente e coercivo, que sente-se convencido a ter o que quer. Não me surpreende que ele tenha aparecido com um andador.”

Valliere acrescenta que muitos vereditos se resumem a questões de simpatia. Ela lembra que, nos intervalos para o almoço de seu julgamento, Cosby saía do fórum para se encontrar com centenas de fãs numa praça. Ele puxava o coro: “Ei, ei, ei!”, respondido com as mesmas palavras. Cosby era visto como o Papai da América, apesar de suas transgressões. “Acho que isso é algo que Cosby tinha e Weinstein não tem”, conclui Valliere. “Eu tenho a impressão de que ele nunca foi exatamente uma figura pública simpática.”

Cabe ressaltar que só o fato de Weinstein estar em julgamento é um progresso. Mas as desconfianças da sociedade — e das leis — em torno das denúncias das mulheres vai demorar para morrer. Uma regra implícita continua exigindo um padrão elevadíssimo nesses casos: o Estado deve não só provar que o réu é culpado além de qualquer dúvida razoável mas também tem que comprovar a pureza da vítima.

Se um homem fosse roubado num caixa-eletrônico, não importa o que ele estaria vestindo nem o horário em que fez um saque tarde da noite. O fato é que houve um roubo. Se dois homens se engalfinham numa briga de bar e um quebra o nariz do outro, não faz diferença se os dois se conheciam ou não ao entrar no bar. O único fato é que houve uma lesão corporal. Só quando a vítima é mulher e o crime, de natureza sexual, detalhes pessoais — se ela conhecia o agressor, como interagia com ele antes ou depois do crime, qual era o seu histórico sexual — são capazes de derrubar um caso. Só nos casos de agressão sexual essas questões privadas são tão importantes quanto a denúncia registrada.

Pode ser que o processo contra Harvey Weinstein modifique o modo como a sociedade vê uma mulher que diz ter sido estuprada — o que não vai mudar é a própria lei.

ATUALIZAÇÃO (25/02/20): O julgamento de Weinstein em Nova York foi concluído ontem e o ex-produtor foi condenado por duas de cinco acusações de “má conduta sexual”. Apesar disso, foi poupado das acusações mais graves, que poderiam resultar em prisão perpétua. Outras denúncias estão sendo julgadas em Los Angeles, num processo ainda em andamento. Mais detalhes nesta reportagem da BBC Brasil.

Escritora e jornalista, BARBARA BRADLEY HAGGERTY reúne em seu site “todos meus acertos e nenhum erro”. Após trabalhar 10 anos na “The Christian Science Monitor” e duas décadas na National Public Radio (Rádio Pública dos EUA), Haggerty entrou em crise de meia-idade, que lhe rendeu o livro “Life Reimagined: the science, art and opportunity of midlife [Vida Reimaginada: a ciência, a arte e a oportunidade da meia-idade]”, publicado em 2016. Atualmente, Haggerty é colaboradora da revista “Atlantic”, onde tem explorado as falhas e contradições da justiça criminal americana. Além do artigo aqui traduzido (publicado originalmente em 28/01/2020), recomendamos sua série de reportagens para a “Radio Atlantic”, No Way Out [Sem Saída].

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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