A preguiça não existe, mas as barreiras invisíveis, sim.

Sempre existem obstáculos. Reconhecê-los — e vê-los como legítimos — costuma ser o primeiro passo na superação dos padrões do comportamento “preguiçoso”.

Renato Pincelli
11 min readOct 21, 2020
Em ambientes acadêmicos ou profissionais, algumas pessoas não têm desempenho tão bom quanto poderiam. Achar que isso acontece só por preguiça é sinal de que você não está vendo as barreiras enfrentadas por essas pessoas. Ilustração de Ashley Becerra

Por Devon Price, no Humans Parts (Março de 2018).
Tradução de Renato Pincelli.

DESDE 2012 SOU PROFESSOR DE PSICOLOGIA. Nos últimos seis anos, testemunhei estudantes de todas as idades que procrastinam em artigos, faltam a dias de apresentações, perdem compromissos, deixam passar os prazos. Vi universitários promissores fracassando em conseguir matrículas a tempo; observei candidatos a doutorado levar meses ou anos para revisar um simples rascunho de dissertação. Uma vez tive um aluno que se matriculou na minha turma por dois semestres seguidos e nunca apareceu.

Eu não acho que a culpa era da preguiça.

Nunca.

Na verdade, nem acredito na existência da preguiça.

Eu sou um psicólogo social, então o que me interessa são os fatores situacionais e contextuais por trás do comportamento humano. Quando você tenta prever ou explicar as ações de uma pessoa, olhar para as normas sociais e o contexto dessa pessoa é geralmente uma aposta segura. As restrições situacionais normalmente preveem o comportamento muito melhor que a personalidade, a inteligência ou quaisquer outras características de nível individual.

Assim, quando percebo que um estudante falha na conclusão de seus compromissos, perde prazos ou não entrega resultados em outros aspectos de sua vida, sou levado a me perguntar: quais são os fatores situacionais que atrasam esse aluno? Quais são as necessidades que, atualmente, não são preenchidas? E, em se tratando de “preguiça” comportamental, me pergunto especificamente: quais são os obstáculos à ação que eu não consigo enxergar?

Sempre existem obstáculos. Reconhecê-los — e vê-los como legítimos — costuma ser o primeiro passo na superação dos padrões do comportamento “preguiçoso”.

É muito mais útil responder ao comportamento ineficiente de uma pessoa com curiosidade em vez de julgamento. Aprendi isso com uma amiga minha, a escritora e ativista Kimberly Longhofer (que publica sob o pseudônimo Mik Everett). Kim é apaixonada pela aceitação e acomodação de portadores de deficiência e pessoas sem-teto. [Nota do tradutor: acomodação tem, aqui, o sentido de adequação às necessidades, facilitação da vida e não de comodismo ou passividade]. Seus textos sobre ambos os assuntos estão entre as obras mais iluminadoras e demolidoras de preconceitos que eu já encontrei. Em parte, é porque Kim é brilhante — mas também é porque, em vários momentos da vida, Kim foi tanto deficiente quanto sem-teto.

Kim é a pessoa que me ensinou que julgar um sem-teto por querer comprar álcool ou cigarro é uma maluquice. Quando você não tem casa, as noites são frias, o mundo é hostil e tudo é dolorosamente desconfortável. Se você dorme debaixo da ponte, num barraco ou num albergue, é difícil descansar. Você provavelmente tem lesões ou problemas crônicos, que lhe incomodam constantemente mas tem pouco acesso ao serviço de saúde para lidar com isso. É possível que você nem tenha uma alimentação muito saudável.

Nesse contexto super-estimulado, cronicamente desconfortável, precisar de um goró ou um maço de cigarros faz sentido pra caralho. Como Kim me explicou, se você está largado num frio de rachar, um pouco de álcool pode ser a única maneira de se aquecer e conseguir dormir. Se está subnutrido, umas baforadas podem ser a única coisa que mata a fome. E se você estiver passando por tudo isso enquanto luta contra uma adicção então sim, às vezes você precisa fazer algo para afastar os sintomas da privação se quiser sobreviver.

Poucas pessoas que não viveram na rua pensam desse jeito. Elas tentam moralizar as decisões dos mais pobre, talvez para se confortar diante das injustiças do mundo. Para muitos, é mais fácil pensar que os sem-teto são, em parte, responsáveis pelo próprio sofrimento do que reconhecer os fatores situacionais.

E quando você não entende completamente o contexto da pessoa — como é estar na pele dela todo dia, com todas as pequenas irritações e grandes traumas que definem sua vida — é fácil impor expectativas rígidas e abstratas sobre o comportamento de alguém. “Todo sem-teto deveria largar a bebida e ir trabalhar. Não importa se a maioria deles tenha sintomas de problemas mentais e doenças físicas e estejam numa luta contínua para serem vistos como humanos. Não importa que eles sejam incapazes de obter uma boa noite de descanso ou uma refeição nutritiva por semanas ou meses. Não importa que, mesmo na minha vida fácil e confortável, eu não aguente passar alguns dias sem virar um copo ou fazer uma compra impulsiva. Não, eles tem que ser melhores.”

Só que eles já fazem o melhor que podem. Conheci gente sem-teto que trabalha em tempo integral e que se dedica a cuidar das pessoas em sua comunidade. Muitos desabrigados têm que se esgueirar pelas burocracias, lidando com assistentes sociais, policiais, funcionários de albergue, pessoal médico e um monte de filantropias, tanto as bem-intencionadas quanto as condescendentes. Viver sem-teto dá trabalho pra caralho. Assim, quando uma pessoa mendicante ou desabrigada fica esgotada e toma uma “decisão errada”, existem muitas boas razões para isso.

Se o comportamento de alguém não faz sentido pra você, é porque você está ignorando parte de seu contexto. Simples assim. Sou grato a Kim e seus textos por me conscientizar sobre esse fato. Nenhuma aula de psicologia, de nenhum nível, me ensinou isso. Mas agora que eu tenho essa lente, me vejo aplicando-a a todo tipo de comportamento que é confundido como sinal de fraqueza moral — e eu ainda não encontrei nenhum que não possa ser explicado nem com o qual possa ser empático.

A o olhar para o sintoma da “preguiça” acadêmica, acredito que seja qualquer coisa, menos procrastinação.

As pessoas adoram culpar os procrastinadores pelo seu comportamento. Empurrar com a barriga, claro, parece preguiçoso ao olhar destreinado. Mesmo as pessoas que praticam ativamente a procrastinação podem confundir seu comportamento com preguiça. Você deveria estar fazendo algo e não está fazendo — é uma falha moral, certo? Isso quer dizer que você é desmotivado, sem força de vontade e preguiçoso, não é?

Faz décadas que as pesquisas psicológicas têm explicado a procrastinação como um problema funcional, não uma consequência da preguiça. Quando uma pessoa não consegue começar um projeto com o qual se importa, isso normalmente se deve a a) ansiedade sobre suas tentativas, que não seriam “boas o bastante” ou b) confusão diante dos primeiros passos que a tarefa exige. Não é preguiça. A procrastinação, de fato, é mais provável quando a tarefa é importante e o indivíduo se preocupa em fazê-la bem.

Quando você está paralisado pelo medo do fracasso ou nem sabe por onde começar um empreendimento enorme e complicado, dificílimo fazer qualquer coisa. Não tem nada a ver com desejo, motivação ou firmeza moral. Os procrastinadores podem se forçar a trabalhar por horas; podem se colocar na frente de um arquivo de texto em branco e não fazer nada a não se se torturar; eles podem acumular culpas vez após vez — nada disso vai tornar o início do trabalho mais fácil. Aliás, a vontade que eles têm de fazer logo aquela maldita coisa pode piorar o estresse e dificultar ainda mais o começo da tarefa.

A solução, em vez disso, é ver o que está impedindo o procrastinador. Se o principal obstáculo for a ansiedade, o procrastinador pode realmente precisar se afastar do computador/livro/texto e se engajar numa atividade relaxante. O que outras pessoas consideram “preguiça” é provavelmente o caminho para um comportamento exatamente oposto.

Muitas vezes, porém, a barreira que os procrastinadores têm são desafios de funcionamento executivo — eles se debatem para dividir uma grande responsabilidade numa série de tarefas menores, específicas e ordenadas. Eis um exemplo de funcionamento executivo em ação: eu completei minha dissertação (da proposta à coleta de dados e à defesa final) em pouco mais de um ano. Fui capaz de escrever minha dissertação com facilidade e agilidade porque eu sabia que precisava a) compilar as pesquisas sobre o assunto; b) rascunhar o paper; c) agendar períodos de escrita regulares e d) esculpir o artigo, pedaço por pedaço, dia a dia, segundo a agenda que eu havia predeterminado.

Ninguém teve que me ensinar a fatiar tarefas desse jeito. E ninguém teve que me forçar a seguir meus prazos. Realizar tarefas dessa forma é consistente com o funcionamento do meu cérebro analítico, hiper-focado e autista. A maioria das pessoas não tem essa facilidade. Elas precisam de uma estrutura externa para continuar a escrever — encontros de grupos de redação com amigos, por exemplo — e deadlines determinados por outras pessoas. Diante de um projeto de grande porte, a maioria das pessoas querem conselhos sobre como dividi-lo em tarefas menores, com um cronograma a seguir. Para rastrear seu progresso, muita gente precisa de ferramentas organizacionais como listas de afazeres, calendários, diários ou ementas.

Precisar de tais coisas e se beneficiar delas não torna ninguém preguiçoso. Só significa que tem essas necessidades. Quanto mais abraçarmos isso, mais podemos ajudar as pessoas a progredir.

Tive uma aluna que vivia faltando às aulas. Às vezes eu a via rodeando o prédio, logo antes do começo da aula, com aparência cansada. A aula começava e ela não aparecia. Quando ela estava presente na classe, era meio retraída. Sentava no fundão, de olhos baixos e pouca energia. Ela colaborava nos trabalhos em pequenos grupos, mas nunca se manifestava nas discussões com a turma inteira.

Muitos dos meus colegas olhariam para essa aluna e a veriam como preguiçosa, desorganizada ou apática. Sei disso porque ouvi como eles falam sobre estudantes com baixo desempenho. Com frequência, há raiva e ressentimento em suas palavras ou seu tom — porque é que esse estudante não leva minhas aulas a sério? Como é que ele não me faz sentir importante, interessante, inteligente?

Acontece que meu curso tem um tópico sobre saúde mental e estigma. É uma paixão pra mim, que sou um psicólogo neuroatípico. Eu sei como o ramo pode ser injusto com pessoas como eu. Na sala de aula, falo sobre os tratamentos injustos que as pessoas dispensam a quem tem problemas mentais; como a depressão é interpretada como preguiça, as variações de humor são enquadradas como manipulação e as pessoas com doenças mentais “severas” são vistas como incompetentes ou perigosas.

A aluna quieta, matadora-de-aula, acompanhou essa discussão com vivo interesse. Após a aula, enquanto as pessoas se retiravam da sala, ela ficou ali e pediu para falar comigo. E então ela revelou que tinha uma doença mental e estava trabalhando ativamente para tratá-la. Ela estava lidando com terapia e mudança de medicamentos e todos os efeitos colaterais decorrentes disso. Às vezes, ela não conseguia sair de casa e sentar numa carteira durante horas. Ela não tinha coragem de contar aos outros professores que era por isso que ela perdia aulas e, às vezes, atrasava seus trabalhos porque eles achariam que ela usava sua doença como desculpa. Mas ela confiou na minha compreensão.

E eu compreendi. E fiquei com raiva de ver essa aluna sentir-se responsável por seus sintomas. Ela se equilibrava entre um curso integral, um trabalho de meio-período e um tratamento de saúde mental sério e em desenvolvimento. Ela foi capaz de intuir suas necessidades e comunicá-las a alguém. Ela era foda pra caralho, disse-lhe, não uma burra preguiçosa.

Ele frequentou muito mais aulas comigo depois disso e eu a vi saindo lentamente de sua concha. Nos anos seguintes ela foi uma colaboradora ativa e franca para a turma — ela até decidiu falar abertamente com seus pares sobre sua condição mental. Durante as discussões em classe, ela me desafiava com questões profundas e excelentes. Ela nos apresentava um monte de exemplos midiáticos e de atualidades sobre os fenômenos psicológicos. Quando estava num dia ruim, ela me avisava e eu abonava sua falta. Outros professores — inclusive no departamento de psicologia — continuavam a reprovar seu comportamento. Mas, num ambiente onde seus obstáculos eram reconhecidos e legitimados, ela rendia.

Ao longo dos anos, na mesma faculdade, encontrei inúmeros estudantes que eram subestimados porque as barreiras de suas vidas não eram vistas como legítimas. Havia um rapaz com TOC que sempre chegava atrasado pois suas compulsões às vezes o levavam a ficar parado em algum lugar por alguns minutos. Havia a sobrevivente de um relacionamento abusivo, que processava seus traumas numa sessão semanal de terapia logo antes da minha aula. Outra moça havia sido assediada por um colega — e, enquanto o caso era investigado pela faculdade, tinha que continuar frequentando aulas com esse colega.

Esses alunos me buscaram voluntariamente e compartilharam comigo suas preocupações. Como eu havia discutido doenças mentais, traumas e estigmatização na minha aula, eles sabiam que eu seria compreensível. Com algumas acomodações, eles frutificaram academicamente. Eles ganharam confiança, tentaram fazer as tarefas que os intimidavam, elevaram suas notas e passaram a pensar em estágios e pós-graduação. Sempre pego admirado por eles. Quando eu fui universitário, não tive nem uma gota dessa autoconsciência. Eu ainda não havia começado meu projeto vitalício de aprender a buscar ajuda.

Os estudantes sobrecarregados nem sempre foram tratados com tanta gentileza pelos meus colegas, professores de psicologia. Uma delas, em particular, era infame por não fazer provas simuladas nem permitir a entrada de atrasados. Não importa a situação do aluno, ela era rigorosa e inflexível em suas exigências. Para ela, nenhuma barreira era intransponível, nenhuma limitação era aceitável. As pessoas afundavam em sua disciplina. Elas sentiam-se envergonhadas por suas histórias de abuso sexual, seus sintomas de ansiedade, seus episódios depressivos. Quando um aluno que se saiu mal na turma dela teve bom desempenho comigo, ela ficou desconfiada.

Para mim, é moralmente repugnante que qualquer educador seja tão hostil com as pessoas a quem deve servir. É ainda mais irritante quando a pessoa por trás desse terror é um psicólogo. A injustiça e a ignorância dessa situação me deixa de olhos marejados toda vez que discuto o assunto. Pode ser uma postura comum em muitos círculos educacionais, mas nenhum estudante merece encontrar isso.

Evidentemente, sei que os educadores não são ensinados a pensar nas barreiras invisíveis de seus alunos. Algumas universidades até se orgulham por se recusar a acomodar estudantes com problemas mentais ou físicos — porque não distinguem rigor intelectual de crueldade. Como a maioria dos professores são pessoas que passam com facilidade pela vida acadêmica, eles tem dificuldade para levar em conta a perspectiva de alguém com problemas de funcionamento executivo, sobrecargas sensoriais e históricos de depressão, automutilação, transtornos de adicção ou alimentação. Posso ver os fatores externos que levam a esses problemas. Do mesmo modo que sei que o comportamento “preguiçoso” não é uma escolha ativa, sei que as atitudes elitistas e preconceituosas geralmente nascem de uma ignorância situacional.

E é por esse motivo que escrevo esse texto. Espero despertar meus colegas educadores — em todos os níveis — para o fato de que se um estudante está fracassando, eles provavelmente não escolhem isso. É provável que eles queiram se sair bem, que estejam se esforçando. Além disso, gostaria que todas as pessoas tenham um olhar mais curioso e empático diante dos indivíduos que eles podem rotular inicialmente como preguiçosos ou irresponsáveis.

Se uma pessoa não consegue levantar da cama, algo está sugando suas energias. Se um aluno não está entregando seus trabalhos, deve haver algum aspecto da tarefa que não conseguem fazer sem ajuda. Se um empregado perde os prazos constantemente, alguma coisa está dificultando sua organização e o cumprimento de prazos. Mesmo se a pessoa escolhe intencionalmente a autossabotagem, existe um motivo para isso — algum medo de que não estejam trabalhando tão bem, alguma necessidade não-preenchida, uma expressão da falta de autoestima.

As pessoas não optam pelo fracasso e a decepção. Ninguém deseja sentir-se incapaz, apático ou ineficaz. Se ao olhar para as ações (ou inações) de uma pessoa você só enxerga preguiça, você está deixando passar detalhes importantes. Sempre existe uma explicação. Sempre existe alguma barreira. Só porque você não as vê ou não as considera legítimas, não quer dizer que elas não existam. Olhe direito.

Talvez você nem sempre tenha sido capaz de olhar para o comportamento humano dessa maneira. Tudo bem, mas agora você pode. Pratique isso.

Como já ficou claro ao longo do texto, DEVON PRICE é Psicólogo Social e Professor de Psicologia, formado pela Universidade da Flórida (EUA) em 2014. Fruto de suas experiências e pesquisas, “A Preguiça não Existe” foi publicado originalmente em Março de 2018 como colaboração à “Human Parts”, revista de ciências humanas no Medium. Price — que se apresenta no Instagram como “escritor trans-efeminado” — aprofunda os argumentos e dados aqui apresentados em livro do mesmo nome, com lançamento previsto para Janeiro de 2021.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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