A teoria da estupidez de que explica perfeitamente o mundo

O fenômeno que está na raiz de todos os problemas, segundo um teólogo alemão perseguido pelo nazismo

Renato Pincelli
11 min readOct 24, 2022
Foto de Brandi Alexandra no Unsplash

Por Peter Burns em Lessons from History (Novembro de 2021).
Tradução de Renato Pincelli.

“A ESTUPIDEZ É UM INIMIGO mais perigoso para o bem do que o mal”, escreveu Dietrich Bonhoeffer [1906–1945], teólogo alemão. Escritas dez anos após a ascensão de Adolf Hitler ao poder supremo, estas palavras eram uma reflexão sobre duras lições encharcadas de sangue. Bonhoeffer fazia parte de um pequeno círculo de resistência ao ditador na Alemanha, arriscando a sua vida por um ideal.

Era uma época sombria em seu país. Uma guerra total tomava conta do mundo e um regime totalitário controlava a nação. Bonhoeffer se perguntou como isso aconteceu. Ao pensar sobre a natureza do mal, ele chegou à conclusão de que o inimigo mais perigoso do bem não era o mal em si. Em vez disso, era a estupidez.

Pois o mal pode ser combatido. O mal dá às pessoas uma sensação de soco no estômago. Como Bonhoeffer concluiu, “o mal carrega consigo as sementes da sua própria destruição.” Para evitar malícia intencional, sempre se pode erguer barreiras para impedir a sua propagação. Mas contra a estupidez você fica indefeso.

Contra a estupidez não temos defesa. Nem protestos nem força podem alcançá-la. O raciocínio é inútil. Os fatos que contradizem os preconceitos pessoais podem simplesmente ser desacreditados — na verdade, o estúpido pode contrariá-los criticando-os e, se forem inegáveis, podem apenas ser postos de lado como exceções triviais. Assim, o estúpido, diferente do canalha, fica completamente satisfeito consigo mesmo. Aliás, ele pode facilmente tornar-se perigoso, uma vez que não é preciso muito para transformá-lo em agressor. Por essa razão, é necessário ter mais cuidado com ele do que com um mal-intencionado. Nunca mais vamos tentar persuadir a pessoa estúpida com razão, pois isso é insensato e perigoso.” — Dietrich Bonhoeffer

Dietrich Bonhoeffer: o teólogo fundou a Igreja Confessante, grupo evangélico contrário ao nazismo.

Compreender a natureza da estupidez

Pouco depois de anotar essas palavras, Bonhoeffer foi preso. Morreu dois anos mais tarde, executado num campo de concentração por capangas nazistas. O teólogo alemão viveu no que agora parece ser uma época completamente diferente. No entanto, as ideias que ele nos deixou aplicam-se a qualquer século. Pois a estupidez não desapareceu. Ela é eterna.

“Se quisermos saber como superar a estupidez, devemos procurar compreender sua natureza.” — Dietrich Bonhoeffer

E a natureza da estupidez tem suas raízes profundas no subconsciente. Ela é impulsionada pela mecânica fundamental da experiência humana. Como os filósofos antigos observaram, os seres humanos são animais sociais. Esta mesma sociabilidade é o que está na base da estupidez.

“Notamos ainda que as pessoas que se isolaram dos outros ou que vivem em solidão manifestam este defeito com menos frequência do que os indivíduos ou grupos de pessoas inclinadas ou condenadas à sociabilidade. E assim parece que a estupidez é talvez menos um problema psicológico e mais um problema sociológico.” — Dietrich Bonhoeffer

A estupidez é um fenômeno de grupo. Um indivíduo pode agir estupidamente, mas isso não tem efeito sobre todo mundo. No entanto, quando um grupo age estupidamente, isso impacta sobretudo o indivíduo, agravando todo o efeito. De muitas maneiras, um comportamento com ramificações inicialmente positivas acabou por virar um tiro no pé da humanidade.

A natureza humana não muda com o passar dos anos. O funcionamento interno dos indivíduos é o mesmo dos seus antepassados remotos que viveram nas savanas africanas há 50 mil anos. Alguns desses processos internos são ainda mais antigos e remontam a milhões de anos no passado, quando os cérebros primitivos começaram a se desenvolver.

Diversas heurísticas evoluíram para ajudar os indivíduos a navegar pelo mundo. Entre estes, seguir a manada é indiscutivelmente o mais destacado. Faz sentido. Quando a informação é escassa, fazer o mesmo que os outros estão a fazer é provavelmente o melhor curso de ação. Infelizmente, isso nem sempre funciona. Em alguns casos, pode trazer maus resultados, devido a vieses cognitivos.

O comportamento de manada está entre as principais causas da estupidez. Numerosos estudos científicos mostraram como os seres humanos individuais podem ser influenciados pela multidão a adotar posições que vão contra toda a lógica. Em um clássico exame da loucura humana, o psicólogo Solomon Asch [1907–1996] analisou como as pessoas individuais respondem à maioria do grupo ao seu redor.

Elas ficam em conformidade com a opinião do grupo? Ou, porventura, seguem o seu próprio caminho contrário (que, em última análise, é o certo)? Os resultados foram surpreendentes, mas são bastante reveladores por mostrar como surge a estupidez. No decorrer das doze experiências sobre conformidade, cerca de 75% dos participantes conformaram-se com a opinião da maioria pelo menos uma vez.

Isto significa que 3/4 das pessoas que participaram do estudo foram forçadas a dizer uma resposta que estava claramente errada, apenas pela pressão dos colegas do grupo ao seu redor. Este tipo de processo está no núcleo de como a estupidez permite que o mal se levante.

O poder de um precisa da estupidez do outro. O processo em ação aqui não é que as capacidades humanas particulares, como o intelecto, por exemplo, atrofiam ou falham de repente. Em vez disso, parece que, sob o peso esmagador do aumento do poder, os seres humanos são privados de sua independência interior e, de maneira mais ou menos consciente, desistem de estabelecer uma posição autônoma em relação às circunstâncias emergentes. O fato de a pessoa estúpida ser muitas vezes teimosa não deve cegar-nos para o fato de ela não ser independente.” — Dietrich Bonhoeffer

Como Bonhoeffer notou: “o poder de um precisa da estupidez do outro.” Todos os tipos de populistas, aventureiros políticos e farsantes tiram proveito deste estado mental das massas. Sem o apoio dos segmentos mais amplos da sociedade, nenhum desses indivíduos com sede de poder seria capaz de chegar lá.

As pessoas dominadas pela estupidez agem como se estivessem possuídas. A parte lógica do seu cérebro é desligada. Tal pessoa começa a agir como um zumbi político, com quem não adianta qualquer tipo de lógica ou discussão de fatos. Em vez disso, eles funcionam a base de slogans, palavras de ordem e gritos de baixo nível.

“Na conversa com ele [o estúpido], sente-se praticamente que não se trata de uma pessoa, mas dos slogans, palavras de ordem e coisas do gênero que se apoderaram dele. Ele está sob um feitiço, cego, usado e abusado em seu próprio ser. Assim, depois de se tornar um instrumento insensível, a pessoa estúpida também será capaz de qualquer mal e, ao mesmo tempo, incapaz de ver o que é o mal.” — Dietrich Bonhoeffer

A estupidez facilita o processo de captura da sociedade por forças covardes do mal. Cria-se uma narrativa com explicações simples para problemas complexos, oferecendo “soluções” e bodes expiatórios. Quem não está em conformidade com esta ortodoxia padrão torna-se o “outro”, um inimigo a ser destruído.

É claro que essas histórias nunca seriam nada se as pessoas não acreditassem nelas. Infelizmente, elas acreditam. A estupidez vence a razão.

Estupidez nos nossos tempos

O século 21 está vendo essas falhas internas da mente humana se desenrolarem plenamente. A primeira década viu vieses cognitivos que criaram bolhas econômicas e resultaram no crash de 2008. A segunda e a terceira décadas estão acompanhando forças maliciosas, de diferentes lados do espectro político, correndo para sequestrar o mundo em geral.

Enquanto uma combinação de verdadeiros crentes ideológicos e farsantes políticos está liderando o assalto, tudo isso é facilitado pela estupidez. Bonhoeffer observou como as forças históricas e as condições externas podem exacerbar o problema da estupidez.

“É uma forma particular do impacto das circunstâncias históricas sobre os seres humanos, um co-fator psicológico de certas condições externas. Após uma observação mais atenta, torna-se evidente que todo endurecimento do poder na esfera pública, seja de natureza política ou religiosa, contamina uma grande parte da humanidade com estupidez.” — Dietrich Bonhoeffer

As reflexões deste alemão descrevem perfeitamente a situação atual nos EUA e no mundo. Mais de 70 anos depois, suas ideias iluminam as forças em jogo. Os recentes endurecimentos do poder contaminaram certas parcelas da população com grandes doses de estupidez.

Testemunhamos isso nos comícios pró-Trump, que resultaram em um ataque ao Capitólio dos EUA. Vimos isso nos protestos do BLM, que degeneraram em saques descontrolados. Topamos com isso todos os dias nas bolhas e nos filtros da internet, que muitas vezes fomentam o pensamento de grupo mais vitriólico possível. A estupidez é um perigo sempre presente, à espreita em todos os cantos do espectro político.

No entanto, ao discutir com os agentes individuais usando lógica e fatos você não chega a lugar nenhum. Seus cérebros estão presos no cativeiro das noções e dos vieses pré-concebidos. Como observou Bonhoeffer, é mais sensato desistir de todas as tentativas de persuadir a pessoa estúpida. É inútil.

“Devemos abandonar todas as tentativas de convencer a pessoa estúpida.” — Dietrich Bonhoeffer

“Brexit é Brexit” foi o slogan repetido com frequência por aqueles que estão no poder no Reino Unido. O que o Brexit realmente significava, ninguém sabia. Nem mesmo eles. A impossibilidade de toda a questão da Irlanda do Norte deveria tê-los ajudado a sentir o mau cheiro desde o início, mas parece que as pessoas estavam drogadas.

Mesmo agora, quando se tornou evidente que abandonar a UE significou prateleiras vazias, cadeias de abastecimento interrompidas e mais burocracia, os Brexiteers não acordaram para a realidade. Os mesmos slogans e cânticos do Brexit continuam a ser gritados. A União Europeia continua a ser o grande bicho-papão culpado de tudo. São os mesmos padrões de pensamento que se repetem em muitos cultos.

Quando Leon Festinger [1919–1989] estudou um culto OVNI na década de 1950, ele se deparou com uma coisa curiosa. A líder do culto, Dorothy Martin, uma dona de casa de Chicago, previa que o mundo ia acabar em 21 de Dezembro de 1954. Vendo que ainda estamos aqui, é evidente que a profecia era uma farsa. No entanto, muitas pessoas acreditaram e se reuniram naquele dia fatídico em uma casa comum.

Sentaram-se ali, à espera do Juízo Final. Para seu grande espanto, ele nunca veio. Quando chegou a hora do fim do mundo, nada aconteceu. O que surpreendeu os investigadores que se infiltraram no grupo foram as reações de muitos dos membros. Diante desta aparente negação das suas crenças, muitos dos fiéis não as abandonaram.

Em vez disso, sua crença na farsa de Dorothy Martin ganhou ainda mais força. Festinger e seus colegas pesquisadores chamaram isso de efeito de tiro pela culatra. O jornalista David McRaney deu uma excelente definição: “Quando suas convicções mais profundas são desafiadas por evidências contraditórias, suas crenças ficam mais fortes.”

Estupidez explícita. Porém, o caso do culto dos malucos de OVNIS não é nada fora do comum. Processos assim acontecem todos os dias com as pessoas comuns. As pessoas comuns são constantemente confrontadas com fatos que provam que as suas convicções de estimação não são verdadeiras. No entanto, a maioria simplesmente os ignora.

Hoje em dia, esse efeito é ampliado muitas vezes. O mundo está cheio de caos. Existe muito lixo circulando por aí disfarçado de informação. Isso deixa as pessoas confusas. Outro alemão que viveu os tempos sombrios do nazismo, o psicanalista Erich Fromm [1900–1980], descreveu como o lixo que polui a comunicação pode mexer com a psique de uma pessoa.

“O resultado desse tipo de influência é duplo: um é um ceticismo e cinismo em relação a tudo o que é dito ou impresso, enquanto o outro é uma crença infantil em qualquer coisa dita por uma pessoa com autoridade. Esta combinação de cinismo e de ingenuidade é muito típica do indivíduo moderno. O resultado final é desencorajá-lo de assumir o seu próprio pensamento e decisão.” — Erich Fromm

De ascendência judaica, Fromm experimentou a estupidez de outras pessoas em sua própria pele. Forçado a fugir de sua terra natal, o psicólogo acabou passando a vida estudando o comportamento das pessoas em tempos caóticos. Ele postulou que o uso individual de mecanismos de escape mental estava na raiz dos conflitos psicológicos.

Fromm tentou entender as leis que governam a sociedade. Ele argumentou que a sociedade moderna trouxe consigo a liberdade, mas essa mesma liberdade foi também a semente da sua destruição. Os indivíduos receberam um novo senso de independência, mas isso os deixou cheios de ansiedade e dúvida. As pessoas acabam ficando alienadas e buscam uma sensação de segurança com outras pessoas que pensam da mesma forma.

É isso que promove o surgimento do autoritarismo e de outras ideologias doentias. De certa forma, é possível argumentar que este sentimento de alienação leva a um aumento da estupidez.

O indivíduo doentio sente-se em casa com todos os outros indivíduos igualmente doentios. Toda a cultura passa a ser orientada para este tipo de patologia. O resultado é que o indivíduo médio não experimenta o estigma e o isolamento que a pessoa totalmente esquizofrênica sente. Ele se sente à vontade entre aqueles que sofrem da mesma deformação; na realidade, é a pessoa inteiramente sã que se sente isolada na sociedade insana.” — Erich Fromm em A anatomia da destrutividade humana

Estamos vivendo numa sociedade insana. Por um lado, há pessoas que acreditam que Trump ganhou a presidência, apesar das provas em contrário. Por outro lado, há pessoas a ruminar sobre o pecado eterno dos “brancos”, ou seja lá o que for. Como um indivíduo que tenta usar a razão e o bom-senso, muitas vezes você acaba se sentindo isolado em meio a toda a loucura.

A estupidez reina suprema

Em seu livro Fall or, Dodge in Hell, o romancista [de ficção-científica] Neal Stephenson faz com que um de seus personagens diga uma frase muito reveladora: “[se] a massa de pessoas é tão estúpida, tão crédula, é porque deseja ser enganada.” Isso capta perfeitamente porque a estupidez reina suprema.

“A massa de pessoas é tão estúpida, tão crédula, porque quer ser enganada. Não há como fazê-los não querer ser enganados. Temos de trabalhar com a raça humana tal como ela existe, com todas as suas falhas. Fazê-los ver com a razão é uma tarefa tola.” — Neal Stephenson em Fall or, Dodge in Hell

A pessoa média age como se quisesse deliberadamente ser enganada. Elas caem em mentiras, meias-verdades e fraudes. Os aventureiros políticos e os populistas podem brincar à vontade com eles. O poder dos farsantes é um resultado direto da estupidez das massas que se apaixonam pela farsa.

Enquanto Bonhoeffer estava sentado em sua cela, escrevendo suas reflexões pessoais, esperando seu último dia, o mundo ao seu redor estava preso na loucura. Embora tomado pelo desespero, ele viu alguns raios de luz. Para ele, a maioria das pessoas não era estúpida em todas as circunstâncias. Pelo contrário, era uma questão do que esperam os que estão no poder.

“Mas esses pensamentos sobre estupidez também oferecem consolo, pois nos proíbem totalmente de considerar a maioria das pessoas estúpidas em todas as circunstâncias. Realmente dependerá se os que estão no poder esperam mais da estupidez das pessoas do que da sua independência e sabedoria interiores.” — Dietrich Bonhoeffer

Para Bonhoeffer, a estupidez não era um problema do indivíduo. Era, em vez disso, uma questão de grupos de indivíduos que se unem. A loucura encontra a sua força nas multidões. Isso ecoa o famoso aforismo de Friedrich Nietzsche:

“Nos indivíduos, a insanidade é rara; mas em grupos, partidos, nações e épocas, é a regra.” — Friedrich Nietzsche

Peter Burns se define apenas como “um polímata curioso que quer saber como tudo funciona.” Ele mantém o blog Modern Renaissance Man, no Medium, desde 2019.

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Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.