Atalhos: as trilhas ilícitas que desafiam os planejadores urbanos

Quando faltam caminhos para os pedestres, as pessoas os criam com seus próprios pés.

Renato Pincelli
5 min readApr 2, 2019
Um atalho — ou uma via não-oficial — num parque em Turnbridge Wells, Inglaterra.

Por Ellie Violet Bramley, no Guardian (outubro/2018).
Tradução de Renato Pincelli.

TODO MUNDO JÁ PASSOU LÁ. Você precisa de um caminho mais curto — para o ponto de ônibus, o escritório ou a lojinha da esquina — mas não existe uma trajetória planejada. Antes de você, outros desconhecidos já amaciaram a grama ou cortaram uma linha que atravessa a sebe. “Por que não?”, você pensa.

Essa é a lógica dos “desire paths [trajetos desejáveis]”, descritos por Robert Macfarlane como “trajetos & trilhas feitos ao logo do tempo pelos pés e desejos dos pedestres, especialmente aqueles que vão ao contrário do design ou planejamento”. Macfarlane gosta de chamá-los de “vias do livre-arbítrio”, mas a New Yorker oferece vários outros nomes: “cow paths [trajetos da vaca], pirate paths [caminhos piratas], social trails [trilhas sociais], kemonomichi [trilha das bestas, em japonês], chemins de l’âne [caminhos dos asnos, em francês] e Olifantenpad [rastros de elefantes, em alemão]. J.M. Barrie os descreve como os “caminhos que se fazem por si mesmos.” [N. do T.: além de caminhou ou atalho, em português ainda podemos mencionar os termos estrada, senda, picada, trâmite, trilho, vereda, via e viela.]

O Reddit abriga threads sobre desire paths, com dezenas de milhares de seguidores, que se deliciam com os mais misteriosos ou ilógicos atalhos. Eles podem se formar em qualquer lugar: de cantos aparentemente esquecidos da cidade às sedes de governos nacionais, como aconteceu ao redor do Congresso Nacional do Brasil. Alguns são tão bem-estabelecidos que são visíveis no Google Maps.

Planejada mas nem tanto: os atalhos que surgiram na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, são uma resposta popular à falta de trajetos nos projetos feitos por Oscar Niemayer e Lúcio Costa.

Os atalhos tem sido descritos como exemplos da “tensão entre os ambientes nativos e os artificiais e de nossa relação com eles.” Como eles geralmente se formam em áreas sem pavimentação, podem ser vistos como um meio de “indicar [os] anseios” daqueles que gostam de caminhar, um modo de os “moradores das cidades ‘responderem’ aos planejadores urbanos, dando feedback com seus pés.”

Mas além de mostrar as rotas de menor esforço, as picadas também revelam os pontos que as pessoas se recusam a tocar. Se você segue a mesma rota durante anos, provavelmente vai se identificar com aquele impulso dos pés pra sair da linha, nem que seja por alguns metros. É essa ideia que levou um jornal acadêmico a descrevê-los como um registro de “desobediência civil”.

Em vez de desprezar ou mesmo condenar o pedestre saidinho colocando cercas ou barreiras para bloquear as andanças “ilícitas”, alguns planejadores trabalham para incorporar os atalhos no ambiente urbano. Jane Jacobs, por exemplo, é uma advogada da configuração das cidades ao redor das veredas: “Não existe lógica que possa ser sobreposta à cidade; são as pessoas que criam as cidades e estas são criadas para elas… Assim, devemos adaptar nossos planos.”

Desire paths, social trails, Olifantenpad ou vereda: o nome varia, mas o fenômeno é o mesmo e todo mundo adora um atalho, como este que atravessa Highbury Fields, em Londres.

O arquiteto e urbanista Riccardo Marini leva esses caminhos desejáveis bastante a sério e tem muitas evidências do que acontece quando eles não são levados em conta: “alguém gastou uma fortuna colocando degraus de granito ao lado de uma peça paisagística e as pessoas subiam o barranco porque seus cérebros diziam que esse era o caminho mais rápido, mesmo que fosse lamacento às vezes.” Marini diz que as trilhas apresentam evidências sobre o movimento, o que é importante.

Há décadas, Marini colabora com o planejador urbano dinamarquês Jan Gehl, famoso por colocar as pessoas e o modo como elas interagem com um espaço no centro de seu trabalho. Atalhos são um modo de “ouvir um lugar” e o que Marini faz é abrir os ouvidos: ele já desenhou até mapas de bitucas de cigarro e chicletes mascados da Regent Street, em Londres, para ajudar a informar onde os bancos deveriam ser colocados.

Lei do Menor Esforço: na Michigan State University, as rotas para pedestres são pavimentos criados a partir dos atalhos feitos pelos deslocamentos de professores e estudantes ao longo dos anos.

Usar esse tipo de evidência para fazer o planejamento urbano não é inédito. Muitos campi universitários esperam para ver por onde seus professores e alunos andam antes de começar a aplicar o pavimento. Uma delas é a Michigan State University, cujo campus parece uma agradável Tela Mágica quando visto de cima.

Nos anos 1990, o arquiteto holandês Rem Koolhas criou um dos exemplos mais conhecidos quando deixou que as pegadas dos estudantes influenciasse seus planos para o Illinois Institute of Technology. Hospitais também respondem organicamente aos nossos passos: nos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, os trajetos que se desenvolveram naturalmente nos anos 1960, 1970 e começo dos anos 1980 passaram a ser pavimentados.

Uma das poucas ruas diagonais de Nova York, a Broadway foi praticamente a única ‘desire line’ que sobreviveu à racionalização das vias urbanas da cidade no século XIX.

Também existem precedentes históricos. Segundo alguns especialistas em planejamento urbano, a Broadway é a mais antiga desire line de Nova York. Ela segue o Caminho Wickquasgeck, feito pelos ameríndios, que teria sido a rota mais curta entre os assentamentos pré-coloniais para evitar pântanos e colinas. Segundo Marini, a Broadway é a única rota do tipo que sobreviveu, que “não foi varrida do mapa pelo grid europeu que foi sobreposto a ela.”

Dessa forma, os atalhos podem revelar as raízes das cidades. “Quando eles não se apagam, ou até quando se apagam”, escreve Erika Luckert num artigo que mapeia as desire lines de Edmonton (Canadá), “eles servem não apenas como trajetos mas também como registros históricos — tornam aparentes os padrões de mobilidade do passado e permitem que o passado tenha influência direta sobre o presente.” Marini destaca, por exemplo, a Cowgate de Edimburgo (Escócia), que originalmente era “uma senda criada por um pastor ou criador de gado e seus animais viajando entre a fazenda e o mercado.”

Na Ryerson University, em Toronto (Canadá), Andrew Furman, professor de design de interiores e arquitetura, passou anos pesquisando as desire lines. Para ele, as trilhas nos mostram algo sobre o “infindável desejo humano de ter uma escolha, a importância de não ter alguém determinando seu rumo.” Numa cidade construída de modo muito rígido, prossegue Furman, existem “regras sobre como os espaços públicos e público-privados são utilizados.” Os atalhos são um modo de “deixar de seguir o roteiro” e, portanto, uma “resistência”. Segundo o professor canadense, um indivíduo pode realmente escrever sua própria história e para isso é realmente importante ter a possibilidade de se movimentar.

Em conclusão, ele me indica uma passagem do livro de Rebecca Solnit sobre a história do caminhar, Wanderlust: “Andar é tanto um modo de estar no mundo como de fazê-lo.”

Publicada originalmente no Guardian em 05/10/18, esta matéria foi escrita por ELLIE VIOLET BRAMLEY, jornalista freelance britânica que gosta de cobrir temas ligados às áreas de cultura, vida urbana e problemas femininos.

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Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.