Banu Sasan: o submundo do Islã medieval

De manos poetas a manos matadores, a cena “underground” do mundo muçulmano de mil anos atrás não era muito diferente do que se vê em qualquer metrópole moderna

Renato Pincelli
10 min readApr 30, 2020
Cena urbana no Oriente Médio durante a Idade Média. Naquela época, o mundo islâmico era a área mais urbanizada e rica do mundo — o que também levou à multiplicação de grupos de ladrões.

Por Mike Dash, no Past Imperfect, blog da Smithsonian Magazine.
Tradução de Renato Pincelli.

DIGAMOS QUE VOCÊ ESTÁ EM 1170 e é o chefe de uma guarda na Pérsia medieval. Ao patrulhar as vielas, perigosas nas altas horas da madrugada, você e seus homens se deparam com duas figuras bastante suspeitas rondando a casa de um mercador rico. Diante da suspeita de que sejam arrombadores, você manda revistá-los. Dos vários bolsos escondidos nos trajes dos suspeitos, seus subordinados retiram uma vela, um pé-de-cabra, um pão velho, um cravo [i.e., um prego grande], uma furadeira, um saco de areia e até uma tartaruga viva.

O réptil, claro, é a prova cabal. Existem 101 motivos para alguém honesto portar um pé-de-cabra ou uma furadeira às três da manhã. Mas só uma gangue de ladrões experientes juntaria uma tartaruga a essas ferramentas. O bicho era uma arma vital no arsenal dos criminosos persas, que a usavam — depois de fazer uma brecha na parede da vítima com o cravo — para explorar o interior da propriedade.

Essa informação improvável chegou até nós porque os ladrões eram membros de uma fraternidade mais ou menos unida de malandros, vagabundos, poetas errantes e criminosos barra-pesada que formavam o submundo do Islã medieval. Coletivamente, esse grupo ficou conhecido como Banu Sasan e, ao longo de meia dúzia de séculos, seus membros poderiam ser encontrados em qualquer lugar entre a Espanha Umíada e as fronteiras chinesas. Criadores de suas próprias táticas, truques e linguagem, os Banu Sasan formavam um contraponto oculto à superfície gloriosa da Era de Ouro muçulmana. Eles também foram personagens de diversos manuscritos fascinantes porém dispersos e pouco conhecidos, que registravam suas vidas, seus costumes e seus métodos.

Clifford Bosworth, orientalista britânico que descreveu a vida e as “obras” dos Banu Sasan, membros do submundo islâmico.

Segundo Clifford Bosworth [1928–2015, especializado em cultura árabe e persa], historiador britânico responsável por um estudo especial sobre os Banu Sasan, os itens daquela estranha coleção de ferramentas dos assaltantes tinham usos bem precisos:

Os ladrões que trabalhavam se infiltrando nas casas e fazendo latrocínios eram muito mais casca-grossa, sempre prontos a matar ou morrer em decorrência de suas atividades criminosas. Eles usavam, necessariamente, equipamentos bem complexos… [O cravo de ferro e uma mão de ferro com garras] eram usados para o trabalho de quebrar as paredes e o pé-de-cabra para abrir as portas à força. Depois, assim que a abertura foi feita, o ladrão mete dentro do buraco um pau com um pano na ponta. Se ele fizesse isso com a própria cabeça, poderia muito bem virar alvo do bastão, taco ou espada do proprietário da casa.

A tartaruga era empregada assim: o ladrão tinha com ele uma pederneira e uma vela do tamanho de um mindinho. Ele acendia a vela e a fixava nas costas da tartaruga. Depois, ela era colocada dentro da casa pela brecha aberta e se arrastava lentamente por ali, iluminando a casa e seu conteúdo. O saco de areia era usado por ele ao atravessar a brecha na parede. Do saco, ele tirava e jogava punhados de areia ali e acolá — e se ninguém da casa o interrompia, ele poderia entrar nela e roubá-la. Aparentemente, o objetivo da areia seria de ou acordar alguém no interior da casa com seu ruído ou gerar um barulho revelador caso algum ocupante do imóvel pise sobre ela.

Além disso, o ladrão traria consigo algumas crostas de pão seco ou feijões. Se quisesse ocultar sua presença ou anular qualquer ruído, ele mordia e mascava essas cascas e feijões, levando os ocupantes do lar a pensar que aquilo era apenas um gato devorando um rato.

Como indica essa passagem, muito do que se sabe sobre os Banu Sasan continua a ser matéria de conjecturas. Isso se deve ao fato de que nosso conhecimento do submundo islâmico vem apenas de um punhado de fontes que sobreviveram. A maioria esmagadora da literatura árabe, explica Bosworth, “está fixada num molde clássico, produto de autores que escreviam nos centros urbanos e nas cortes de seus patronos”. Não sobreviveu quase nada do que se escreveu sobre a vida cotidiana, sobre a massa popular, antes do século IX (ou terceiro século após a Hégira). Mesmo depois dessa data as informações são bastante incompletas.

Não está certo, por exemplo, como os Banu Sasan ganharam esse nome. As fontes que restam citam duas tradições incompatíveis. A primeira diz que os criminosos islâmicos eram considerados seguidores — ou filhos — de um tal de Sheikh Sasan, príncipe persa (talvez lendário), que teria passado a uma vida errante depois de ter usurpado seu lugar na corte. A segunda tradição conta que o nome seria uma corruptela de Sassânida, nome da velha dinastia reinante na Pérsia, destruída pelos árabes durante as invasões do século VII. Reza a lenda que, governados por conquistadores estrangeiros, muitos persas foram reduzidos à destituição e à miséria, forçando-os a viver à base da malandragem.

Não há maneira de saber qual dessas narrativas está baseada na verdade, se é que há alguma. O que podemos dizer é que o uso do termo Banu Sasan já foi bastante disseminado. A expressão aparece para descrever criminosos de todas as laias e também parece ter sido adotada, talvez até com orgulho, pelos vilões da época.

Quem eram, então, esses malfeitores da Era de Ouro do Islã? Segundo Bosworth, a maioria parece ter sido algum tipo de malandro, gente que

usava a religião islâmica como disfarce para seus modos predatórios, bem cientes de que as bolsas dos fieis poderiam se soltar mais facilmente diante da eloquência de um homem que afirma ser um asceta ou místico; um operador de milagres e maravilhas; um vendedor de relíquias dos mártires e santos muçulmanos ou de alguém que passou por uma conversão espetacular, saindo da cegueira do cristianismo ou judaísmo para a luz da fé maometana.

Amira Bennison [professora de Estudos Islâmicos da Universidade de Cambridge, Reino Unido] identifica vários trambiqueiros desse tipo adaptável, que poderiam “contar histórias cristãs, judaicas ou muçulmanas, dependendo de sua audiência, geralmente com a ajuda de um auxiliar entre o público, que dizia ‘ah!’ e ‘oh!’ nos momentos certos e depois passava o chapéu para dividir os lucros.” Eram homens que não se importavam de louvar tanto Ali quanto Abu Bakr — figuras reverenciadas pelas seitas xiita e sunita, respectivamente.

Ibn Abbad: este vizir (governador) gostava de ouvir as histórias picarescas de Abu Dulaf, poeta com antecedentes pouco respeitáveis.

Alguns participantes do grupo acabavam adotando alguma profissão respeitável — integrantes do Banu Sasan estiveram entre os pioneiros e entusiastas da imprensa na mundo islâmico. Mas a maioria via seu modo de vida como motivo de orgulho. Um dos melhores exemplos de maqamat [literatura popular] dos anos 900 nos conta a história de Abu Dulaf al-Khazraji, auto-proclamado rei dos vagabundos. Dulaf teria garantido uma posição secundária no séquito de Ibn Abbad, vizir de Isfahan no século X, ao contar as aventuras sórdidas e excitantes do submundo.

“Estou em companhia dos lordes ladrões”, gaba-se Abu Dulaf num dos seus relatos, e prossegue:

na fraternidade dos extraordinários
Sou um dos Banu Sasan…
E a mais doce vida nós experimentamos, passando na indulgência sexual e na bebedeira de vinho
Pois nós somos os caras, os únicos caras que importam pra valer, na terra e no mar.

De certo modo, portanto, os Banu Sasan não passavam de representantes no Oriente Médio daqueles vagabundos que sempre existiram em todas as culturas e cresceram sob todas as religiões. A Europa cristã os tinha às pencas, como atesta o Pardoner de Chaucer. Só que os marginais produzidos pelo Islã medieval parecem ter sido especialmente criativos e engenhosos.

[Autor de “Introduction to Arabic ‘carnivalised’ literature”] Ismail El Outamani sugere que isso aconteceu porque os Banu Sasan eram fruto de uma urbanização quase inteiramente desconhecida no mundo a oeste de Constantinopla. Bagdá, a capital do califado abássida, tinha uma população que provavelmente chegou ao meio milhão de habitantes nos dias de Haroun al-Rashid (c. 763–809), o sultão retratado nas Mil e Uma Noites. Com cidades tão grandes e ricas, não faltavam oportunidades para todo tipo de bandido, o que acabou encorajando a especialização.

Mas a participação nessa fraternidade era definida tanto pelos hábitos quanto pelas tendências criminosas. Os poetas, nos lembra El Outmani, podiam tornar-se vagabundos literal e legalmente, sempre que eram dispensados por seus patronos.

Enquanto a maioria dos Banu Sasan parece ter vivido e atuado nas cidades, eles também surgiram em áreas mais rurais e até nas regiões desérticas escassamente povoadas. O chamado príncipe dos ladrões de camelo — um tal de Shaiban bin Shihab — desenvolveu uma técnica inovadora: ele soltava uma lata cheia de pulga de camelo famintas nos arredores de um acampamento. Quando as bestas de carga entravam em pânico, ele aproveitava a confusão para levar tantos camelos quanto podia. Para imobilizar os cães de guarda da área, outros membros do Banu Sasan “davam a eles uma mistura grudenta de sobras de comida engordurada com clipes de cabelo” — segundo Damiri, um escritor da época — “o que obstrui seus dentes e trava suas mandíbulas”.

O autor mais conhecido que descreve os Banu Sasan é Al-Jahiz, acadêmico e prosador que parece ser nativo da Etiópia, mas viveu e escreveu no núcleo do califado abássida na primeira metade do século IX. Menos conhecido, mas ainda de grande importância, é o Kashf al-asrar, uma obra obscura do escritor sírio Jaubari, datada de mais ou menos 1235. Curto, esse livro — cujo título pode ser traduzido como Revelação de Segredos — serve como um guia eficaz sobre os métodos dos Banu Sasan e foi escrito expressamente para colocar seus leitores de guarda contra os trambiqueiros e falsificadores.

Ilustração do “Livro das Misérias”, obra satírica de Al-Jahiz. Entre seus personagens encontram-se membros do Banu Sasan, como malandros e vagabundos.

Hoje, este livro é uma mina de informações sobre a metodologia do submundo islâmico e parece ser resultado de uma extensa pesquisa: a certa altura Jaubari nos diz ter estudado centenas de outras obras para produzir a sua. Em outro momento, ele alega ter descoberto 600 estratagemas e truques usados só pelos arrombadores. No total, Jaubari divide suas informações em 30 capítulos com métodos de todo tipo, dos joalheiros falsários — que, diz ele, têm 47 jeitos de fabricar diamantes e esmeraldas falsos — aos alquimistas e suas “300 vias de dakk [falsificação]”. Ele detalha o trabalho dos cambistas de moedas, que usavam anéis magnetizados para desviar o indicador de suas balanças ou então usavam medidores de peso repletos de mercúrio, que inflavam artificialmente o peso do ouro que se colocava sobre eles.

Nossas fontes concordam em apontar que uma grande parcela dos Banu Sasan era de origem curda, um povo visto como briguento e violento pelos seus vizinhos do Oriente Médio. Também há indícios de que as gírias criminosas eram baseadas numa grande variedade de línguas. Muitos desse jargões vinha do que Johann Fück chama de “Árabe Medieval”, mas o resto era derivado de tudo, do grego bizantino ao persa, passando pelo hebraico e o siríaco.

Esse é um lembrete útil não apenas de como a Ásia Ocidental era um lugar cosmopolita nos primórdios do domínio islâmico, mas também de que o linguajar marginal se origina com a intenção de ser obscuro. Por um motivo óbvio: há uma necessidade urgente de esconder o que se diz de ouvintes que podem denunciar os interlocutores à polícia.

Um poeta errante, em estilo romantizado, de um manuscrito feito muito depois da época dos Banu Sasan. Como os bardos ou salteadores europeus da Europa medieval, seus equivalentes muçulmanos se tornariam personagens literários.

Por fim, o que mais chama a atenção sobre os Banu Sasan é sua ampla inclusividade. Num extremo do grupo situam-se os homens da violência: al-Raghib al-Isfahani, uma das fontes de Bosworth, lista cinco categorias distintas de bandidos, do arrombador a matadores sanguinários como os sahib ba’j, os que “rasgam barrigas e arrancam as tripas” e os sahib radkh, “batedores e esmagadores”, que acompanhavam viajantes solitários por algumas jornadas e, de repente, quando a vítima estava prostrada em oração, “vem por trás e o acerta jogando simultaneamente duas pedras redondas em sua cabeça”.

No extremo oposto ficam os poetas, entre os quais há o misterioso Al-Ukbari, sob o qual pouco se sabe além de que ele foi “o poeta dos marginais, expoente de sua elegância e o mais esperto de todos”. Em seus textos, Al-Ukbari admite francamente que não havia conseguido “ganhar nenhum tipo de vida pela filosofia ou pela poesia, só pela malandragem”. Entre o magro tesouro das 34 estrofes dele que sobreviveram, encontram-se esses versos desafiadores:

Mesmo assim eu sou, graças a Deus,
Membro de uma nobre casa,
Junto com meus irmãos, os Banu Sasan,
Os influentes e os ousados…
Quando as estradas ficam difíceis
Tanto para os viajantes noturnos quanto os soldados em alerta
contra os beduínos e os curdos,
Nós voamos pelo caminho,
Sem precisar de espada nem de sabre,
E as pessoas que temem seus inimigos
Buscam refúgio diante de nós, aterrorizadas

Fontes

Amira Bennison. The Great Caliphs: the Golden Age of the ‘Abbasid Empire. London: IB Tauris, 2009
Clifford Bosworth. The Medieval Islamic Underworld: The Banu Sasan in Arabic Society and Literature. Leiden, 2 vols.: E.J. Brill, 1976
Richard Bullet. What Life Was Like in the Lands of the Prophet: Islamic World, AD570–1405. New York: Time-Life, 1999
Ismail El Outmani. “Introduction to Arabic ‘carnivalised’ literature.” In Concepción Vázquez de Benito & Miguel Ángel Manzano Rodríguez (eds). Actas XVI Congreso Ueai. Salamanca: Gráficas Varona, nd (c.1995)
Li Guo. The Performing Arts in Medieval Islam: Shadow Play and Popular Poetry in Ibn Daniyal’s Mamluk Cairo. Leiden: Brill, 2012
Ahmad Ghabin. Hjsba, Arts & Crafts in Islam. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 2009
Robert Irwin. The Penguin Anthology of Classical Arabic Literature. London: Penguin, 1999
Adam Sabra. Poverty and Charity in Medieval Islam: Mamluk Egypt, 1250–1517. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

Desde que terminou seu doutorado em História na Universidade Cambridge (Reino Unido) em 1990, MIKE DASH tem tido uma carreira “eclética”, atuando como historiador, editor e escritor. Além de artigos em diversas revistas, Dash chamou a atenção nos últimos anos por manter blogs como “Blast from the Past ”e o “Past Imperfect”, coluna de História da “Smithsonian Magazine”. Autor de livros como “Tulipomania” (sobre a crise econômica causada pela febre das tulipas na Holanda do século XVII), ele vive em Londres com a esposa e a filha, numa casa atulhada com uns 3000 livros — dos quais ele já leu pelo menos um terço. O presente artigo sobre o submundo islâmico foi publicado originalmente no Past Imperfect em 22/07/2013.

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Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.