Como a Pandemia tirou a máscara dos Kardashian
Com um reality prestes a acabar, os Kardashians demonstram que existe um tipo de celebridade inadequado à era do coronavírus

Por Spencer Kornhaber, na Atlantic (Novembro de 2020).
Tradução de Renato Pincelli.
ORIGINALMENTE, o plano de Kim Kardashian West para seu 40°. aniversário seria voar com todos os seus amigos para o Wyoming e fazer uma festa “Miss Faroeste bem selvagem” — presumivelmente, sua silhueta curvilínea serviria de complemento à paisagem rochosa de lá. Mas, como Kim disse recentemente num episódio de Keeping Up With the Kardashians, “com a COVID, eu sinceramente sinto que agora não é o momento de celebrar nada”. Que chato — mas não tão chato, pois sua família ainda assim organizou uma elaborada festa-surpresa num estúdio de Los Angeles.
Pôneis, como os que ela montou em seu primeiro aniversário, ficavam na entrada do estabelecimento, onde os convidados eram submetidos a testes de coronavírus. Sundaes eram servidos numa réplica da lanchonete em que Kim fez seu aniversário de 8 anos. O Tao, clube noturno e palácio de Patrón e EDM nos anos 2000 também foi recriado em miniatura. “Todas as minhas pessoas favoritas estavam lá — todos os meus melhores amigos e familiares”, disse Kim às câmeras do [canal de TV] E! após zanzar pelo museu pop-up de sua vida. “E isso é tudo o que eu realmente precisava”.
Claramente, não era o bastante. A essa altura a internet já está ciente de que Kim também festejou seus 40 anos ao ir de avião com dezenas de pessoas para uma ilha tropical particular. Os convidados não foram informados de seu destino, mas foram avisados de que precisariam se quarentenar e fazer as malas para muita diversão ao sol e três jantares chiques. No fim de Outubro, quando cerca de 220.000 americanos haviam morrido de coronavírus e 11 milhões estavam desempregados, Kim empanturrou as mídias sociais com fotos de banquetes na praia e passeios de barco.
“Surpreendei meu círculo mais íntimo com uma viagem para uma ilha privada”, escreveu ela, “onde pudemos fazer de conta que as coisas eram normais por um breve intervalo. Sei que para a maioria das pessoas isso é algo não inalcançável agora, então, em momentos como este, lembro-me humildemente de como a minha vida é privilegiada.”
O público não demorou a entrar em modo full pistola. Usuários de redes sociais combinaram as legendas das fotos de Kardashian com imagens de paraísos amaldiçoados: o Fyre Festival, um casamento de Game of Thrones, uma cerimônia de Midsommar e o Jardim das Delícias Terrestres de Hieronymus Bosch. Outras reações às fotos de veraneio dos Kardashian foram uma simples expressão de ofensa gritante.
“Você sabe o que teria sido normal para mim, Kim?” questionava um tuíte com 4.300 likes, “Não ter que me despedir de minha mãe por videochamada enquanto ela morria de COVID… Esfregar isso na nossa cara é cruel e sem-noção.” Outro tuíte (do roqueiro Peter Frampton, que sem dúvida já enfiou o pé na jaca algumas vezes): “Você está tão insensível que não percebe que não é disso que as pessoas querem saber durante o pior momento já visto da covid? As pessoas estão na fila para comida, não em ilhas particulares.”
Como tantas coisas ligadas aos Kardashians, o bafafá foi uma pequena bagunça que aponta para algo mais profundo em nossa cultura. Menos de uma semana depois de Kim postar suas fotos, sua irmã Kendall Jenner foi criticada por dar uma festança com 100 pessoas num bar de West Hollywood. Num vídeo, é possível observar Kendall soprando velas num bolo segurado por um funcionário com máscara, que parece virar o rosto e se desviar de sua baforada de gotículas. Pouco depois, Kourtney Kardashian endossou uma teoria conspiratória segundo a qual as máscaras cirúrgicas — um meio eficaz e barato de controlar a COVID-19 — causam câncer. O resultado foi uma impressão cristalina: os Kardashian estavam demonstrando a existência de um tipo de celebridade inadequado — talvez até obsoleto — na era do coronavírus.
A mudança não poderia acontecer com uma família tão emblemática em um momento tão emblemático. No começo deste ano, quando o E! anunciou que a 20a.. temporada de Keeping Up With the Kardashians [KUWK, na sigla dos fãs], que vai ao ar em 2021, parecia ser o fim de uma era. Desde a estreia do reality, em 2007, os Kardashian anteciparam o arquétipo do influencer, com um show que serviu de palco para um império multimídia movido a intrigas familiares e produtos cosméticos. Hoje, o modo como milhões de pessoas vestem-se, consomem e tuítam foi influenciado, de alguma forma, pelas inovações kardashianas em beleza e autopromoção.
Entretanto, a família insiste que seu império não foi construído em cima de meros consumismo e voyeurismo. Ao longo do tempo, os Kardashian construíram uma pátina de representatividade ao transmitir suas escaramuças fraternas e suas lutas românticas. Em particular, Kim viveu publicamente uma história bem americana, quase feminista, de superação: de estilista de segunda e objeto de fita pornô a empreendedora formidável e ativista pela justiça criminal.
Outros membros da diáspora Kardashian tornaram-se mascotes das mutações sociais — da transição de Caitlyn Jenner ao descolamento político de Kanye West na era Trump. Não surpreende que a temporada atual de KUWK mostre o clã de Calabasas recolhido e subjugado pela pandemia do coronavírus. Mas suas festanças pandêmicas mostram a verdade nua e crua sobre os Kardashian, que passou dos limites.
A primeira vez que a família Kardashian aparece discutindo o coronavírus em KUWK foi durante um jantar no começo de 2020 — no Nobu, o famoso restaurante de sushi que oferece pratos como a lagosta trufada de 80 dólares e uma vibe de clube-dentro-da-garrafa. Kim e a irmã Kylie Jenner negociam quem vai levar o martíni de lichee e quem vai ficar com o de manga. Depois, Kim propõe que a família inteira vá ver o desfile de Kanye West na Semana de Moda de Paris. Em meio à aclamação geral da proposta, a matriarca da família, Kris, levanta uma pergunta: “Espera aí, vocês não ouviram falar desse novo vírus?”
A partir daí, a 19a temporada de Keeping Up With the Kardashians se desenrola como um perfeito retrato de como a pandemia se infiltra na vida dos ricos e famosos. A maioria dos Kardashians vai mesmo para Paris, mas como diz o amigo da família, Fajer Fahad, “a vibe está off” graças à pandemia global.
De volta ao lar, em Calabasas, Scott Disick, o ex de Kourtney Kardashian, começa a sentir fadiga e teme que seja por causa do vírus. Após um tratamento wellness de seis horas e consultas com especialistas, o diagnóstico é que ele está apenas com baixa testosterona e deve comer mais sementes de abóbora. Dois episódios mais tarde, Kris fica perturbada ao ver Khloé andando com uma máscara facial. “O que está acontecendo com nossa família?” desespera-se Kris. “Estamos nos desmanchando!” Khloé retruca: “Não é só nossa família, é o mundo!”
O show parece, aliás, meio comprometido com a ideia de que os Kardashian são Gente como a Gente diante da quarentena. “Isso vai ser duro pra muita gente”, diz Disick ao ler algumas notícias sobre a pandemia. Kim vira os olhos para o lado numa expressão que é ou de medo ou de distração. A linha do tempo do programa avança, enfim, para meados de Março, quando a Califórnia baixou um decreto de fique-em-casa obrigatório. Os câmeras do E! somem, bem como quaisquer cozinheiros e faxineiros visíveis.
Os Kardashian têm que se virar para se filmar com seus iPhones e o clima torna-se morno. Eles acompanham vídeo-chamadas com desinteresse e ficam confusos com a interface do Zoom. As reservas de álcool em gel e Cheetos se reduzem. Eles fazem exames de coronavírus e ficam horrorizados por ter que esperar 10 dias pelos resultados.
De certo modo, o lockdown combina com a estética moderna dos Kardashian. Nos primórdios do programa, os guarda-roupas e a decoração da família esbanjavam os logos chamativos e as tendências grudentas dos anos finais de Bush. Narrativamente, o show se alimentava do caos de separações, maquiagens, bebedeiras, traições e brigas. Mas quando chegamos na temporada 19, muitos dos personagens principais foram alçados a pais e as tendências de moda da família desviaram-se para um minimalismo máximo.
Os produtores parecem querer deixar a busca por humilhação e barracos para as Real Housewives da vida. KUWK agora nada num aquário despovoado, que pode ser visto de relance pelo celular. De fato, os Kardashian dedicam uma grande parcela do tempo a pregar peças inocentes entre si. “Se todos ficássemos em quarentena”, disse Kris no episódio de Nobu, “teríamos muita diversão.” Para Disick, eles basicamente já vivem em quarentena.
Sarcasticamente, no começo da pandemia, muitos espectadores torciam para vê-los confinados e lidando com os probleminhas domésticos. Mas o clima de brincadeira logo deu lugar a um tédio aterrorizante. Foi assim para Khloé, que testou positivo para a COVID-19 e passou mais de duas semanas em seu quarto — um quarto enorme e onde qualquer quimono custaria o equivalente a um caminhão de máscaras de proteção. Mas enquanto ela tosse na cama e fala como sente falta da filha pequena — que está aos cuidados do ex, do outro lado da porta — você sente que o show captou pelo menos um pedacinho tenso dessa pandemia em particular.
A história pandêmica de Kim é ter que lutar para cuidar dos quatro filhos enquanto Kanye — também infectado — está de quarentena. Os West mais novos a interrompem enquanto a mãe tenta filmar tutoriais de maquiagem, deixando a paciência de Kim no limite. Mais alarmante é o momento em que, enquanto Kim conversa com um grupo de estudantes sobre seu trabalho de reforma prisional, sua caçula Chicago aproxima-se da piscina e Kim tem que correr para agarrá-la. A certa altura ela diz: “Gente, eu vou morrer de verdade se vocês não me deixarem em paz”.
Embora o estrelato de Kim nunca tenha sido baseado em respeitabilidade, é notável vê-la arriscar-se diante das câmeras parecendo uma mãe cruel ou desnaturada. Evidentemente, muito da satisfação de observar a realidade fabricada dos Kardashians tem sido adivinhar porque os membros resolvem te mostrar algo. Neste caso, não é difícil perceber a intenção. Cuidar dos filhos tem sido um desafio cansativo para muitos pais durante o isolamento. Se os Kardashian querem te convencer de que a pandemia está difícil para eles, precisam te mostrar que sabem como as coisas andam mais difícil pra você.
Curiosamente, foi essa mesma mensagem que Kim tentou passar ao revelar suas fotos paradisíacas. Ela se desdobrou para reconhecer seu “privilégio” de planejar uma celebração que “para a maioria das pessoas é tão inalcançável.” Só que são esses mesmos esforços de se justificar que irritam ainda mais seus seguidores. Sim, os convidados seguiram os protocolos de saúde; sim, Kim doou dinheiro para aliviar a pandemia.
Mas, em termos mais fundamentais, a viagem até a ilha — que ainda não apareceu em Keeping Up With the Kardashians — derruba completamente a narrativa de “estamos todos no mesmo barco” que a família tentava transmitir. O episódio em torno da festa-surpresa de Kim baseava-se na ideia de que, como ela disse, não seria “certo” que ela desse a festança de seus sonhos em meio a uma crise de saúde global. O que mudou?
Que Kim não tenha resistido à fugidinha muito menos tenha se contido em postar sobre isso indica bem o que ela entende do apelo de sua família. O apelo não está realmente nas coisas que o E! sempre mostra: as relações interpessoais, as personalidades individuais, o nascimento da consciência social, as crianças fofas. Na TV, a pandemia transforma os Kardashians em normies entediados, resultando nas audiências mais baixas de sempre. O que gera mais engajamento — pra não dizer ressentimento — na população em geral é a novidade trazida pelas fotos festeiras de Kim: esta é uma família que pode, de fato, comprar um ingresso para sair da pandemia. A atração do circuito celeb-glam sempre foi o extraordinário e o ultrajante; o irreconhecível em vez do representativo.
Como já argumentou o teórico Guy Debord, espetáculo pode ser definido como “capital a tal ponto de acumulação que se torna uma imagem”. A própria Kim, como escreveu minha colega Megan Garber, tem “uma característica embonecada” com “bochechas borrifadas e cílios sintéticos e os lábios brilhando em tons paradoxais de nude”. Ela é um espetáculo vivo, uma pessoa transformada em sobre-humana pelo dinheiro.
O espetáculo é uma quebra da norma e geralmente implica uma reprimenda das leis naturais e sociais. É revelador como, na ilha particular, Kayne mostrou a Kim uma imagem holográfica de seu pai, Robert Kardashian, morto em 2003. No Instagram, pode-se ver esta figura falando como tem orgulho da filha em meio à mais neutra expressão. Kim se diz comovida com o display. De longe, porém, o holograma é apenas um troféu dos estranhos poderes do dinheiro.
A cultura popular sempre recompensou o espetáculo kardashianesco, talvez porque esse espetáculo tenha sido banalizado pelas desavenças e banalidades apresentadas na reality TV. Kim claramente acreditou que a velha fórmula da família ainda ia funcionar e que poderia encontrar um balanço entre consciência e indiferença, entre gente-como-a-gente-ismo e gente-bem-diferente-ismo. Mas suas fotos festeiras e o escárnio resultante mostram que seus cálculos estavam errados: a pandemia foi tão universalmente pervasiva que expor a fuga de alguém estimula mais o desgosto do que a fascinação. Isso deixa os Kardashian e sua classe encalhados agora. O que será dessas celebridades sem esbanjar luxo e impunidade? A resposta, parece, é que eles não são de nada — o que pode não soar chocante, mas agora é pra valer.
SPENCER KORNHABER é jornalista e repórter da revista The Atlantic desde 2009, onde cobre cultura pop. Este artigo sobre a queda dos Kardashian em meio à pandemia foi publicado originalmente em 17/11/2020.