Como matar um hospital

Quando um hospital da Filadélfia caiu nas mãos de uma organização financeira, o resultado foi desastroso

Renato Pincelli
25 min readAug 30, 2021
“O Hahnemann cuidava de pessoas que ninguém mais queria cuidar”, conta uma médica do hospital, que teve duas administrações privadas e catastróficas. [Ilustração de Katherine Lam]

Por Chris Pomorski, para a New Yorker [Maio de 2021]. Tradução de Renato Pincelli.

LIA LOGIO CHEGOU no Hospital Universitário Hahnemann, na Filadélfia, em Março de 2018, dois meses após a instituição ter sido vendida para uma private equity firm [empresa de participação privada]. Logio é uma internista e vinha do Weill Cornell (Nova York), um hospital filantrópico prestigioso e bem financiado, onde ela era vice-diretora. O Hahnemann atendia principalmente pacientes de baixa renda, mas tinha uma gama de especialidades médicas e era o principal hospital-escola usado pela Faculdade de Medicina da Drexel University. “Parecia que tinham todos os ingredientes para fazer algo inovador e criativo”, disse Logio há pouco tempo. “Parecia uma oportunidade de ter economia de escala em cuidado coordenado dos pobres, de pacientes complexos, coisa que não anda muito bem”.

Filadélfia é uma das maiores cidades pobres dos Estados Unidos, com quase um quarto de seus 1,6 milhões de habitantes vivendo abaixo da linha da pobreza. Desde 1977, quando o Philadephia General foi fechado, também é a maior cidade americana sem um hospital público. O Hahnemann, com quase 500 leitos, ocupa um quarteirão nos limites de North Philadelphia, uma área que inclui diversos bairros empobrecidos. Dos mais de 50 mil pacientes tratados anualmente pelo hospital, a maioria tem seguro-saúde público ou nenhuma cobertura — dois em cada três são pretos ou hispânicos.

Por tratar tantos pacientes pobres, o Hahnemann tinha dificuldades financeiras significativas. Mas a recuperação dos pacientes rivalizava com os melhores hospitais do país e as pessoas que trabalhavam ali sentiam-se motivadas por um senso de missão. “Os médicos em Hahnemann estavam lá porque queriam estar lá”, explicou Logio. “O Hahnemann cuidava de pessoas que ninguém mais queria cuidar.”

Logio via a medicina por lucro com bastante ceticismo, mas seus novos colegas a encheram de esperança: “Todo mundo tinha uma tremenda sensação de positividade ao olhar para o futuro sob os novos proprietários”. O Hahnemann e outro centro médico, o Hospital Infantil St. Christopher haviam sido adquiridos, por 170 milhões de dólares, pela American Academic Health System [AAHS], uma companhia sob o controle da private equity californiana Paladin Healthcare Capital. Joel Freedman, fundador e CEO da Paladin, havia administrado um hospital considerável em Washington, capital, e unidades menores em Los Angeles. Ele parecia sincero ao assumir o Hahnemann: comprou um casarão na Filadélfia, para onde se mudou com a esposa e os filhos.

Friedman disse a Logio e outros funcionários do primeiro escalão que estava pensando em criar um novo centro para cuidados ambulatórios. Ele falava sobre abrir uma clínica pediátrica para atender famílias pobres. Seus assessores se reuniram com membros de cada departamento, perguntando quais equipamentos eram necessários. No começo de 2018 o Hahnemann passou por uma limpeza profunda, incluindo a esfregação de rejuntes com escovas de dentes. Durante duas décadas, o hospital fora propriedade da Tenet Healthcare, uma multinacional que havia negligenciado a manutenção do local. Agora, muitos funcionários tinham a impressão de que, finalmente, estavam sendo ouvidos.

Grande e imponente, Freedman projetava a autoconfiança de um empreendedor em série. Ele havia levantado fundos com dois investidores institucionais: a MidCap Financial — afiliada da Apollo Global Management, uma das maiores firmas de private equity do país — e a Harrison Street Real State Capital, outra empresa do ramo, com uns 13 bilhões de dólares sob sua administração. Leon Black, fundador da Apollo, foi descrito pela Bloomberg Businessweek como “o homem mais temido no campo mais agressivo das finanças”.

Em Maio de 2018, o hospital realizou um banquete no Logan Hotel, próximo do Museu de Arte da Filadélfia. Cerca de 200 médicos compareceram para ouvir o discurso do novo proprietário. Joseph Boselli, internista de 62 anos que estava há mais de trinta no Hahnemann e era o então presidente da equipe médica, apresentou Freedman. “Foi a primeira vez que muita gente o viu pessoalmente”, recorda-se Boselli. Ele pediu que Joel fosse breve e doce, mas Freedman falou por cerca de trinta minutos. Estava evidentemente incomodado com a situação financeira de sua nova aquisição e jogou a culpa nos médicos que formavam sua audiência. “Ele insistia, dizendo que os médicos não estavam fazendo seu trabalho direito”, conta Boselli. “Que não estavam treinando os residentes, não estavam atendendo pacientes o bastante”.

Mesmo assim, a equipe médica esperava que Freedman traria os recursos que o Hahnemann precisava para sobreviver. Para David Stein, então diretor de cirurgia do Hahnemann, “ninguém viu a profecia na parede — que no verão seguinte estariam fechando a instituição”.

ESTIMA-SE que os Estados Unidos fecham hospitais num ritmo de 30 por ano. A maioria dos encerramentos se dá por razões financeiras, em lugares onde há relativamente poucos pacientes com seguros privados. Os hospitais estão sendo considerados, cada vez mais, como um negócio qualquer: pelo menos um quinto dos hospitais funcionam atualmente por lucro e, nacionalmente, o investimento de participações privadas em serviços de saúde triplicou desde 2015. No ano passado, cerca de 66 bilhões de dólares foram gastos em aquisições. A movimentação do mercado em torno da saúde tem sido ligada à disparada de preços, ao aumento de procedimentos desnecessários e à desestabilização das redes de saúde.

Os canastrões das participações privadas são às vezes acusados de destruir o sistema de saúde americano. Mas eles estão mais para um sintoma do que uma doença. A história do Hahnemann combina as forças estruturais que comprometem muitos hospitais americanos — investimento público minguado, regulação fraca, fé cega na sabedoria do mercado — com as motivações das firmas de private equity.

A ideia de que hospitais devem dar lucro é relativamente recente. O Pennsylvania Hospital, reconhecido como o mais antigo do país, foi inaugurado na Filadélfia em 1752. Benjamin Franklin foi co-fundador desse hospital, concebendo-o como um local para “a recepção e curo dos doentes pobres”. Foi um exemplo seguido por quase todos os hospitais americanos até o fim do século XIX. A filantropia — e os impostos, no caso de hospitais públicos, como o Bellevue, aberto em Nova York em 1795 — cobriam os custos dos cuidados, que eram gratuitos.

O modelo evocava Hipócrates que acreditava que, sempre que possível, os médicos deveriam abrir mão de pagamentos. Mas também era um reflexo da crueza dos serviços da época. Antes da publicação da teoria de germes por Pasteur, em 1861, os hospitais eram geralmente insalubres, capazes tanto de curar quanto de causar infecções. Os médicos dependiam muito de alguns procedimentos primitivos: sanguessugas, lancetas, laxantes, licores. Quem tinha dinheiro, evita os hospitais por completo. “Não havia nada que um hospital pudesse fazer pelas classes média e alta que não poderia ser feito melhor em casa”, escreveu o historiador da medicina David Oshinsky, autor de Bellevue: Three Centuries of Medicine and Mayhem at America’s Most Storied Hospital [Bellevue: Três séculos de medicina e massacre no hospital mais folclórico dos EUA].

A instituição que viria a ser o Hospital Universitário Hahnemann, batizada em nome do homeopata alemão Samuel Hahnemann, foi fundada em 1848. Na época, estavam surgindo avanços na medicina que melhoravam radicalmente a qualidade dos atendimentos: estetoscópios, transfusões de sangue, anestesia eficaz. À medida que ofereciam novos procedimentos, os hospitais passaram a atrair pacientes pagantes. Para acomodá-los, as instituições passaram a construir unidades distintas, com quartos privados e lareiras.

Em 1957, um cirurgião cardíaco do Hahnemann, chamado Charles Bailey, apareceu na capa da revista Time após realizar uma cirurgia revolucionária para corrigir uma anormalidade da válvula mitral. Bailey, que atraiu pacientes do mundo todo, era um dentre os muitos médicos do Hahnemann que trabalhavam com procedimentos médicos de vanguarda. No ano seguinte, 1958, um administrador do Hahnemann percebeu que o Dr. Bailey e sua equipe deram um retorno anual de cerca de 800 mil dólares.

Nas décadas subsequentes à Segunda Guerra Mundial, os custos dos serviços hospitalares cresceu significativamente, empurrado pelos procedimentos caros como o de Bailey e pela adoção de planos de saúde. Depois que o governo passou a oferecer isenções de impostos para os empregadores que pagassem planos de saúde aos empregados, o número de americanos com seguro-saúde alcançou mais de 60% da população.

Em 1965, com a aprovação da lei que estabelecia o Medicare e Medicaid, o número de pacientes em busca de atendimento também aumentou. As regras determinavam reembolsos para “custos razoáveis” e, durante anos, isso era qualquer coisa que as seguradoras diziam, levando os hospitais a operar por lucro e capitalizar essa explosão de preços. No fim da década [de 1960] mais de 700 companhias de seguro privadas ofereciam cobertura médica.

Os hospitais com fins lucrativos chegaram à Pensilvânia em 1998. A Tenet Healthcare, sediada em Dallas [no Texas], possuía uns 120 hospitais em 18 Estados. Em Novembro daquele ano, a empresa comprou o Hahnemann, à beira da falência, além do [Hospital Pediátrico] St. Christopher e meia dúzia de hospitais da região. “Nós prometemos ficar aqui por longo prazo. Esta não será uma visita passageira”, declarou Michael Focht, diretor de operações da Tenet em uma cerimônia realizada no Hahnemann.

Oito anos depois, a Tenet concordou em pagar quase 900 milhões de dólares em multas ao Departamento de Justiça por cobranças abusivas no Medicare, distribuição de subornos aos médicos e diagnósticos de gravidade exagerada para inflar os custos. Mike Halter, que foi CEO do Hahnemann sob a direção da Tenet por quase duas décadas, disse que a empresa foi forçada a cortar custos, o que foi feito ao ignorar pedidos para a substituição de equipamentos envelhecidos. Para ele, o setor da saúde “é um negócio de capital intensivo. A vida útil do equipamento é de cinco ou seis anos. Toda a instalação precisa ser atualizada a cada oito ou dez anos.”

Enquanto isso, uma placa de gesso caiu do edifício e danificou um carro. Em resenhas online, os pacientes lamentavam as condições do hospital. Em Dezembro de 2013, por exemplo, uma mulher grávida que foi fazer um ultrassom reclamou de ter sido deixada numa sala fria, com luzes piscantes. Em 2017, um paciente relatou ter visto “sangue e fezes no chão” da instituição. Mesmo assim, o hospital continuava cheio. “Muitos pacientes”, conta o internista Kevin D’Mello, “simplesmente não tinham escolha. Era isso que eles tinham que buscar.”

FREEDMAN FUNDOU sua primeira companhia de investimentos, junto com vários banqueiros jovens, há cerca de trinta anos, quando ele tinha vinte e poucos anos. “Tivemos um mentor que nos ensinou a renovar negócios encrencados e adquirir companhias”, contou o investidor. “Durante a maior parte de 17 anos, esse foi o núcleo do meu negócio: reestruturar empresas insolventes.”

No fim de 2011, Freedman e alguns sócios assumiram quatro hospitais debilitados em Los Angeles, nos quais a maioria dos pacientes eram pretos ou hispânicos, cobertos pelo Medicare, Medicaid ou sem nenhum seguro e geralmente afetados por doenças crônicas. Muitos desses pacientes usavam o Pronto-Socorro como fonte primária de cuidados, o que levou o grupo de Freedman a concentrar-se em melhorar a eficiência do PS: contratar médicos especializados nos códigos médicos, para maximizar os reembolsos; correr atrás das seguradoras para cobrar serviços não-pagos e reduzir o tempo que os pacientes passavam no PS. Rapidamente, todos os quatro hospitais saíram do vermelho.

Em 2014, com a Paladin, Freedman assinou um contrato para administrar o Hospital Universitário Howard, em Washington, capital, que havia relatado naquele ano um prejuízo de 58 milhões de dólares. A Paladin fez cortes em salários, benefícios e despesas de operação: dois anos depois o hospital estava funcionando com um superávit de mais de 20 milhões de dólares. “Fomos incrivelmente bem-sucedidos”, contou Freedman. “Fiquei apaixonado pelas reformas nessas comunidades.”

No Hahnemann, os funcionários disseram que Freedman gostava de ver a revitalização de hospitais debilitados como sinal de sua benevolência. Ele se comunicava com um misto de boas intenções, retidão e uma autopromoção deslavada. Freedman teria garantido a um cirurgião que ele e a esposa, Stella, eram pessoas profundamente religiosas. Em outros momentos, ele se gabava de suas propriedades imobiliárias. Além do casarão na Filadélfia, ele possuía uma casa em Hermosa Beach com vista para o Oceano Pacífico. Ele era membro de um comitê consultor da Faculdade de Medicina de Harvard e fez parte do centro de políticas de saúde da Universidade do Sul da Califórnia. Em 2016, Freedman foi premiado por uma importante instituição filantrópica em reconhecimento por suas contribuições para reduzir as disparidades raciais no serviço de saúde. “Ele queria posar de herói”, resumiu um antigo médico, veterano do Hahnemann.

Freedman parecia convencido de que estava devidamente preparado para solucionar os problemas do Hahnemann, mas havia várias diferenças entre este e os outros hospitais que ele havia ajudado. “Ele falava muito sobre as coisas que o fizeram bem-sucedido no Howard”, contou Jill Tillman, executiva de saúde na Faculdade de Medicina Drexel. Mas, ao contrário o Howard, o Hahnemann havia passado bastante tempo operando sob fins lucrativos. A Tenet, como uma das maiores compradoras de equipamento hospitalar do mundo, desfrutava de grandes descontos, o que facilitava o controle de custos. “Se a Tenet não podia tirar mais suco do equipamento, é porque não havia mais o que tirar”, diz Tillman, numa analogia bagaceira.

Freedman também disse que tinha um plano para resolver os problemas financeiros de atender pacientes com seguros públicos. O Medicare e o Medicaid, que respondem por mais de 60% de toda cobertura hospitalar nos EUA, geralmente pagam menos do que o custo do tratamento. Segundo uma análise da Associação Americana de Hospitais, em 2018 os dois programas pagaram US$ 76,6 bilhões a menos em serviços de saúde.

Numa das primeiras reuniões com Halter, CEO do Hahnemann, Freedman explicou que, como em seus demais hospitais, ele havia sido beneficiado pelo Disproportionate Share Hospital, programa federal que recompensa hospitais com altos índices de atendimentos de pacientes com cobertura pública. “O que Joel não sabia é que existem limites ao pagamento de Disproportionate Share no Estado da Pensilvânia”, esclarece Halter. Ele explicou a Freedman que o Hahnemann já estava no limite [desse tipo de pagamento]. “Você não sabe do que está falando”, foi a resposta de Freedman, segundo Halter. Só depois de uma reunião com o gabinete do governador e o Departamento Estadual de Serviços Humanos [equivalente a uma Secretaria da Saúde] é que Freedman admitiu que o Hahnemann não receberia pagamentos adicionais desse programa.

HALTER SE APOSENTOU em Abril de 2018. No ano e meio seguinte, o Hahnemann e o St. Christopher viram a passagem de meia dúzia de executivos-chefe e diretores financeiros, a maioria demitidos por Freedman sem muita justificativa. Ele contratava batalhões de consultores, especialistas em serviços de saúde, tecnologia e administração. “Eu passava pelo corredor e não reconhecia metade ou dois terços das pessoas. Eram todos consultores”, relata George Amrom, ex-cirurgião, que durante anos foi diretor-médico. Pouca gente durava nos cargos. “Joel tinha uma relação de 20 semanas com as pessoas”, conta um ex-executivo do Hahnemann. “Nas primeiras oito semanas, você é um rock star. No período intermediário, ele some. Nas oito semanas finais aparece pra dizer: ‘Você é bacana, mas eu preciso de um rock star.’”

Médicos e administradores veteranos encontraram dificuldades para planejar o futuro. Stein, diretor de cirurgia, ouviu dizer que seu departamento teria prioridade. Ele fez planos detalhados de melhoramentos, alguns dos quais nem exigiam capital e enviou cópias a todos os sucessivos CEOs do Hahnemann. Mas nenhum ficou tempo suficiente para tomar uma atitude. Logio teve uma experiência similar: “Tive exatamente a mesma conversa com cada um dos CEOs. E assim que um era demitido, eu tinha que começar tudo de novo.”

A maioria dos pacientes do hospital dava entrada pelo Pronto-Socorro e Freedman acreditava que melhorar o fluxo dos pacientes, documentando mais detalhadamente a gravidade de suas condições para as seguradoras, faria o Hahnemann render muito mais. Um dia, a equipe médica chegou ao Pronto-Socorro e descobriu que os procedimentos de check-in e pedidos de exames haviam sido alterados.

Para Edward Ramoska, médico do PS do Hahnemann desde 2006, a alteração “poderia ter potencial de funcionar num hospital comunitário”, um que não tivesse residência médica. No entanto, o Hahnemann era um hospital-escola, com um dos maiores grupos de residentes do país. Só no PS trabalhavam 45 médicos residentes.

Antes de ser atendido por um clínico, o paciente era examinado e tinha seu histórico levantado por um residente. No novo PS, os pacientes eram jogados entre uma área de espera e salas de exame, tendo que se despir mais de uma vez. Além de desesperar médicos e pacientes, o novo arranjo deixou as operações do departamento mais lentas. “Eles não entendiam com uma sala de emergência acadêmica [i.e., científica] funciona”, diz Ramoska em referência à American Academic Health System [AAHS, a operadora do hospital].

A reforma física do PS, que deveria tornar as coisas mais eficientes, foi um fiasco. Foi instalada uma nova porta que era estreita demais para cadeiras de rodas. Paredes cobriam ambos os lados de uma janela de serviço. Num local que deveria servir para o exame de pacientes, não havia uma pia, obrigando os médicos a correr para outro lugar ao lavar as mãos. Na Pensilvânia, alterações em locais de atendimento médico exigem aprovação do Departamento de Saúde, o que foi negligenciado pelo hospital. A obra foi embargada e jamais retomada.

Para melhorar os reembolsos, a AAHS contratou um time de consultores de enfermagem para monitorar como os médicos documentavam os diagnósticos. Praticamente todos os hospitais dos EUA tentam maximizar os pagamentos de seguradoras, mas a nova abordagem chocou alguns médicos do Hahnemann, que a consideravam intrusiva, senão antiética. As enfermeiras consultoras muitas vezes contrariavam os diagnósticos dos residentes. “Eles estavam pensando nas planilhas e nós estávamos só pensando nos pacientes”, resume o ex-residente Christy Johnson.

DESDE 2008, os hospitais americanos se envolveram e mais de mil fusões e aquisições, resultando em grandes e poderosos sistemas capazes de influenciar o preço dos serviços de saúde e as tarifas pagas pelas seguradoras. Esses conglomerados geralmente cobrem as perdas decorrentes do tratamento de pacientes pobres com redes de referência que atraem pacientes com plano de saúde em busca de cuidados especializados.

Na Filadélfia, a Tenet [ex-operadora do hospital] atraía poucos encaminhamentos. Enquanto os sistemas [dos hospitais] Jefferson e Penn cultivavam hospitais-satélite, clínicas médicas e centros de emergência, inclusive nos subúrbios abastados na Main Line e em South Jersey, a Tenet fechava ou vendia suas unidades locais. Alguns dos especialistas mais renomados do Hahnemann foram embora para outros hospitais. Quando um grupo de cardiologistas partiu, o hospital fechou o programa de transplante de coração.

Se havia uma área em que as habilidades de Freedman batiam com as necessidades do Hahnemann era a negociação de parcerias para obter encaminhamentos. “Ele saía e se encontrava com vários líderes de diferentes instituições”, recorda um ex-executivo do hospital. “A certa altura, haveria uma parceria com a organização X. Depois, seria com a organização Y. Sempre havia bastante negociação, mas nenhuma deu frutos.”

Freedman parecia não compreender a economia dos cuidados terciários, as clínicas de especialidades que geram procedimentos de alto custo. “Ele não entendia que se você acaba com o cuidado terciário, ninguém do centro da cidade virá para o Hahnemann”, explica Amrom, o ex-diretor-médico. “Eu me lembro de tentar explicar para ele que uma das nossas maiores áreas era a nefrologia. E se você acabasse com os transplantes, destruiria a nefrologia.”

Muitas companhias de seguro pagavam menos ao Hahnemann do que a outros hospitais da região. Segundo Halter, isso era parte de um acordo que a Tenet havia aceitado, em troca de receber reembolsos maiores em outros mercados da empresa (a Tenet nega ter feito esse arranjo). Agora esses acordos poderiam ser renegociados.

As seguradoras tinham um incentivo para fechar um compromisso: se o Hahnemann fechasse, os pacientes de seguros privados atendidos ali teriam que ir a outros hospitais da cidade, onde o custo do atendimento seria maior. “Você iria pra Blue Cross e diria: ‘Precisamos de uma ajuda e é do seu interesse nos ajudar’”, imagina Halter. “Nos dê 10 milhões de dólares a mais por ano em vez de perder 50 milhões.” Não está claro se Freedman ignorou essa tática ou simplesmente teve dificuldades para implementá-la. Ele diz ter “iniciado um esforço de recontratação” mas complementa que “a vantagem de adiar era delas [as seguradoras].”

NO FIM DE 2018, Freedman disse aos funcionários que, na primavera do ano seguinte, o hospital poderia ser lucrativo. Sua previsão baseava-se, em parte, na suposição de que aumentar as admissões via PS iria gerar maiores reembolsos das companhias de seguro. Mas as seguradoras continuavam negando muitas das cobranças do Hahnemann, deixando Freedman incrédulo. Tillman, a executiva de serviços de saúde, recorda-se da reação dele: “Isso é impossível. Você está mentindo pra mim!”

Na esperança de convencer uma grande seguradora privada, que havia negado cobranças do Hahnemann injustamente, vários médicos organizaram uma reunião com a companhia. “Encontramos alguns casos de pacientes que teriam morrido se não tivessem sido atendidos”, conta Kevin D’Mello, o internista, que participou dessa reunião. “Mesmo assim, a companhia de seguro rejeitava as admissões.”

D’Mello disse que, a princípio, os representantes da seguradora pareciam receptivos. Só que Freedman apareceu sem ser convidado, reclamando dos representantes e acusando a companhia deles de desonestidade. “Ele disse que a American Academic iria reapresentar todas as cobranças do ano anterior e esperava que a companhia pagasse tudo”, lembra D’Mello. A reunião acabou sem nenhum acordo em torno da disputa de cobranças. Freedman diz que não se recorda da reunião.

Tal comportamento errático estava se tornando cada vez mais comum. “Ele passava a chamar as pessoas de estúpidas”, conta Tillman. “Dizia que todo mundo deveria ser demitido, que eram todos inúteis.” Freedman me disse que não se lembra de ter usado tais expressões, mas declarou que pode se “expressar com paixão”. Numa reunião, segundo um administrador da Faculdade Drexel, Freedman falou por 10 horas seguidas, pausando apenas para fumar cigarros. Numa hora ele ameaçava fechar o hospital, em outra fantasiava sobre instituir estacionamento pago. Segundo Maria Scenna, ex-CEO do St. Christopher [o hospital pediátrico], “ele falava como se tivesse autoridade sobre tudo.”

A ansiedade de Freedman só crescia — em parte por causa de suas obrigações com seus credores. Desde a crise de 2008, os bancos, que financiavam as grandes aquisições do setor, se retiraram e o vácuo foi coberto pelas empresas de private equity. Segundo uma análise do Financial Times, algumas das maiores empresas de private equity dos EUA — como Blackstone, Apollo e KKR — agora têm pelo menos tantos empréstimos quanto aquisições. Os negócios mais arriscados envolvem termos que um importante advogado nova-iorquino, que representa credores de private equity, me descreveu como condições de agiota, de “quebra-ossos”. “Se você me procura”, explica o advogado, “quer dizer que você não consegue um empréstimo de um banco. Assim, posso te cobrar juros extraordinários.”

Uma afiliada da Apollo, a MidCap Financial, concedeu ao grupo de Freedman dois empréstimos, representando um empenho de 120 milhões de dólares. Os empréstimos tinham juros reais de até 10,5% — bem mais elevados do que os de bancos comerciais — e eram cobertos por hipotecas de imóveis do Hahnemann. A Harrison Street Real State Capital, que deu US$ 51 milhões em empréstimos, adquiriu várias propriedades adjacentes ao hospital. Essas obrigações financeiras, combinadas com o que Freedman descreve como um “dívida maldita”, levantaram a possibilidade de ele entrar em default, levando o Hahnemann a fechar as portas.

POR VOLTA de Março de 2019, segundo Scenna, os administradores e executivos sugeriram a Freedman que pensasse em pedir concordata. Em vez disso, ele propôs encerrar o programa de residência médica — uma fonte indispensável de mão-de-obra médica, cujo custo era bancado principalmente por recursos federais. Após ser convencido da inconveniência da medida, Freedman anunciou a demissão de Suzanne Richard, a mais recente CEO do Hahnemann e do St. Christopher. No começo de Abril, o hospital dispensou 175 empregados, incluindo 65 enfermeiras. “Eu sentia uma pressão imensa a cada hora do dia” — declarou Freedman — “não apenas pelo lado financeiro mas principalmente pela minha preocupação com a qualidade do atendimento.”

A AAHS começou a fechar andares do hospital, mas a execução foi desorganizada. No todo ou em parte, um andar poderia ser fechado numa semana e reaberto na próxima, resultando na movimentação frequente de pacientes. “Seus pacientes poderiam acabar em qualquer lugar”, conta Steve Kutalek, um cardiologista. Um dia, com pouco controle da equipe médica, os pacientes da unidade de terapia intensiva cardíaca começaram a ser transferidos para a UTI principal. Os especialistas em cardiologia agora tinham que se deslocar entre os 12o. e 21o. andares para ver seus pacientes, usando elevadores que muitas vezes quebravam.

“Pacientes cardíacos precisam de equipamento especial — balões de bombeamento, camas, ECMO [uma máquina de oxigenação sanguínea] — controlado por enfermeiras cardíacas”, explica Kutalek. Esses itens eram de difícil acesso na UTI principal e, para piorar, muitas enfermeiras com especialização em cardiologia haviam sido ou demitidas ou realocadas. Paulina Gorodin-Kiliddar, também cardiologista, contou que se lembra de “um caso em que o monitor de telemetria de um paciente teve um defeito crítico e deixou de funcionar, o que passou despercebido por algum tempo.”

Qualquer economia obtida mostrou-se insuficiente. No começo de Maio, a AAHS recebeu uma reclamação de inadimplência da MidCap Financial. Nas sete semanas que se seguiram, Freedman e seus executivos encontraram-se com representantes do Estado e do Município para tentar encontrar uma maneira de manter o Hahnemann em funcionamento. Freedman esperava que o governo fosse liberar uma verba de emergência ou que a [Faculdade] Drexel fosse comprar o hospital.

Mas, segundo funcionários do governo, eles nunca receberam os detalhes do estado financeiro do hospital para determinar como resolver seu déficit de operação, que Freedman estimava entre 3 e 5 milhões de dólares por mês. Em 30 de Junho o Hahnemann, o St. Christopher e as entidades relacionadas pediram concordata. Uma médica veterana do Hahnemann teria ouvido o seguinte de Freedman: “Minha esposa fechou a torneira: ‘Chega. Não vamos mais perder dinheiro, Joel’.” Freedman não se recorda de ter dito isso.

NUMA TARDE de Julho, centenas de pessoas reuniram-se diante do Hahnemann, na North Broad Street. A rua foi fechada ao tráfego em vários quarteirões e, nas faixas para o sul, cadeiras dobráveis haviam sido enfileiradas diante de um púlpito com um cartaz azul de Bernie Sanders. De pé, um paciente recém-saído, um negro com cicatrizes no rosto e uma sacola com medicamentos e pertences pessoais. Médicos com jalecos e máscaras observavam da calçada. Sanders havia vindo para discursar contra o fechamento do Hahnemann: “Se um banqueiro de investimento como Joel Freedman for capaz de fechar o Hahnemann e tirar bastante lucro ao transformar o hospital em condomínio de luxo”, discursou Sanders, “isso vai deixar claro a todos os fundos-abutre de Wall Street que eles poderão fazer o mesmo, comunidade após comunidade após comunidade.”

Sanders expressava uma teoria que vinha ganhando aceitação. Segundo essa lógica desde o começo Freedman havia adquirido o Hahnemann com o objetivo de ficar com o terreno onde ele estava situado. Localizado a um pulo da prefeitura e de um centro de convenções, o imóvel teve uma valorização explosiva. O trecho de 2,5 km da North Broad entre o Hahnemann e a Temple University, em North Philly, há muito vinha se deteriorando. Mas agora os agentes imobiliários estavam abrindo condomínios de luxo e imóveis de aluguel. Para revitalizar a Casa de Ópera Metropolitana, uma ruína na North Broad com a Poplar, a Live Nation gastou 56 milhões de dólares e agendou eventos com nomes como Alicia Keys e Sting.

“Todo mundo venderia até a mãe para conseguir aquela área”, explica Peter Kelsen, referindo-se ao Hahnemann. Ele é sócio de um escritório de advocacia, Blank Rome, e diz ter recebido dezenas de ligações de várias pessoas sobre o assunto. Os especuladores achavam que o local poderia valer até 120 milhões de dólares — cinquenta milhões a menos do que a AAHS havia pago pelo Hahnemann, St. Christopher e todos os seus bens. Um detalhe importante é que o local não era parte da massa falida. Ao comprar o Hahnemann, Freedman colocou o imóvel no nome de um conjunto de empresas que estavam fora do escopo da corte de falências.

A manobra era típica dos negócios envolvendo private equity, em que essas empresas poderiam fazer empréstimos em cima dos bens das companhias que estavam comprando. Eileen Appelbaum, co-diretora do Center for Economic and Policy Research [Centro de Pesquisa e Política Econômica], um think tank progressista, escreveu bastante contra a influência das private equity. Ela disse que o fim do Hahnemann a lembra do setor de varejo, onde fundos hedge e private equity usaram métodos de alavancagem para adquirir redes como a Sears e a Toys R Us e depois esvaziaram seus bens, incluindo os imóveis, colocando-os em rota de falência. Appelbaum preocupa-se com a possibilidade de que o Hahnemann torne-se um modelo, encorajando investidores a destruir hospitais situados em áreas valorizadas. “Não há dúvidas de que parece ter sido feito com a intenção de um negócio imobiliário”, conclui.

A estrutura em torno do negócio do Hahnemann isolava Freedman da maior parte do prejuízo em potencial. Segundo os funcionários, enquanto o hospital afundava, Freedman ameaçava que, se não fizessem a instituição ter sucesso, ele transformaria a propriedade em alguma outra coisa. Freedman nega ter feito tais declarações e diz que, como estratégia para aquisição imobiliária, quebrar um hospital do tamanho do Hahnemann de propósito seria complexo demais para ser prático.

Para Andrew Eisenstein, “não é um caminho que qualquer um escolheria”. Eisenstein é fundador de uma firma de investimentos da Filadélfia, a Iron Stone Real State Partners (a Iron Stones compraria, mais tarde, dois terrenos de companhias controladas por Freedman e Harrison Street). Freedman me disse que nunca investiria milhões de dólares no negócio se tivesse a intenção de fazer dinheiro rápido e dar o fora. Mas sua aquisição por alavancagem lhe deu uma excelente proteção contra seus próprios erros.

QUANDO OS FUNCIONÁRIOS do Hahnemann tentaram encomendar insumos básicos, em Maio de 2019, os fornecedores começaram a recusar os pedidos, alegando que o hospital não pagava suas contas. No verão, as condições eram precárias. Equipamentos cirúrgicos estavam quebrados. O ar-condicionado falhava. Para racionar recursos, as enfermeiras cortavam os panos que usavam nos pacientes. Itens usados para a intubação de pacientes ou a aplicação intravenosa de medicação tornaram-se escassos. Era difícil encontrar um marca-passo. Os remédios se esgotavam. Até a conta no FedEx [o Sedex americano] foi encerrada. “Foi tão rápido quanto horrível”, conta Lorraine Alexander, uma enfermeira experiente. “Era de partir o coração, e também era intrigante, ver as coisas que se permitiam.”

Bruce Meyer, presidente da Jefferson Health, disse que o Hospital Universitário Thomas Jefferson ouviu dos médicos do Hahnemann que o hospital não poderia mais garantir qualidade do atendimento. “Começamos a estacionar ambulâncias do lado de fora [do Hahnemann] em meados de Junho, que iam e voltavam”, lembra Meyer. Os líderes do Jefferson e de outros hospitais de Filadélfia pediam informações sobre os pacientes do Hahnemann, para se preparar para as transferências. “Nunca recebemos qualquer dado deles”, explica Meyer.

Segundo a lei da Pensilvânia, um hospital é obrigado a dar um aviso-prévio de 90 dias e apresentar um plano de fechamento detalhado antes de encerrar suas operações. Mas, antes mesmo que um plano de fechamento fosse aprovado pelas autoridades estaduais e municipais, a AAHS corria para tentar esvaziar o Hahnemann. À noite, ambulâncias particulares se enfileiravam atrás do edifício, à espera de levar embora os pacientes — parte do que os funcionários viam como um esforço temerário para desocupar o Hahnemann. “Você tinha uma contagem de 275 à meia-noite e no meio-dia seguinte o número havia despencado para 200”, relata Alexander, a enfermeira.

Os pacientes eram liberados sem programas de acompanhamento e muitas vezes retornavam ao Pronto-Socorro dentro de doze horas. Shanna Hobson, enfermeira do PS, relata que um paciente que havia sido tirado prematuramente de um soro com antibióticos retornou com uma sepse. Outros voltavam com feridas diabéticas infeccionadas.

Mais ou menos nessa época, Sean Temple, que frequentava o Hahnemann para fazer o acompanhamento de um problema no coração há uma década, tinha uma consulta de rotina agendada. Seus médicos haviam sido recém-informados de que seus consultórios seriam fechados. “Eles estavam com uma arma na cabeça”, compara Temple, que foi pego desprevenido. “Não é como se eu tivesse entrado sabendo que estavam fechando. Quem vai me pegar de onde eles deixaram? Onde? Quando?” Temple passou meses sem uma consulta médica e acabou em outro hospital por causa de uma emergência cardíaca. “Me senti como uma criança largada no parque”, conta.

Freedman põe a responsabilidade pela execução do fechamento do Hahnemann na EisnerAmper, uma empresa de consultoria e contabilidade que ele contratou para administrar as finanças do hospital e, mais tarde, sua falência (a empresa não quis comentar o caso). Um relatório do ombudsman indicado pelo tribunal de falências descreve duas visitas feitas ao Hahnemann em Julho de 2019, quando a população do hospital já havia caído sensivelmente e um diretor interino havia sido nomeado pelo Estado. Segundo o relatório, “nenhum membro da equipe de enfermagem demonstrou qualquer preocupação sobre a redução dos cuidados e da segurança dos pacientes.”

Em 6 de Setembro, diante do fechamento iminente do Hahnemann, o Estado e o município [de Filadélfia] reservaram até 15 milhões de dólares para os cuidados com os pacientes do hospital. Quando outros hospitais da cidade fecharam, houve uma onda de mortalidade infantil. Para evitar isso, o Jefferson contratou oito obstetras do Hahnemann, expandindo sua unidade de obstetrícia. Outros hospitais da cidade contrataram mais funcionários e alteraram seus ritmos de trabalho para se ajustar às mudanças.

Os hospitais Temple e Pennsylvania logo perceberam um aumento de até 12% no movimento dos respectivos Pronto-Socorros. No Jefferson, que fica a apenas uma milha [1,6 km] do Hahnemann, o volume subiu 20%, somando quase 1200 atendimentos mensais. Em todas as três unidades de emergência, o uso de ambulâncias dobrou. Incapazes de andar, dirigir ou tomar um transporte público, os pacientes que chegam em ambulâncias tendem a ser mais graves e mais pobres do que os demais. Normalmente, as ambulâncias levam os pacientes para o hospital mais próximo. Mas agora os PSs estavam tão cheios que seus funcionários encaminhavam pacientes para outros lugares.

Estudos com pacientes cardíacos e negros mostraram que o desvio de ambulâncias foi responsável por uma elevação no número de mortes. Kory London, médico de emergência no Jefferson Health contou que o PS tornou-se cenário de “tragédias humanas diárias”. A maioria dos hospitais de Filadélfia usa um sistema de compartilhamento eletrônico de prontuários, mas o Hahnemann nunca fez parte disso. Quando o hospital fechou, os demais centros médicos tiveram dificuldades para levantar os dados dos pacientes do Hahnemann. “Haviam pacientes com histórico social complexo, que recebiam diversos tipos de cuidados especializados”, explica London. “Eles perderam cardiologistas, nefrologistas e terminaram na nossa emergência. Tivemos que fazer o possível para entender direito o que estava acontecendo com eles.”

Anastasia Cavanaugh, portadora de uma doença crônica, tinha consultas com os médicos do Hahnemann há anos. Para ela, “saber quem é seu médico é um controle que você tem”. Quando várias de suas clínicas de especialistas foram fechadas, Cavanaugh, que tem seguro-saúde público, ficou desesperada: “chorei por três dias.” Por volta de Janeiro de 2020, ela ainda não havia conseguido ver nenhum médico desde o fechamento do Hahnemann. Essa paciente temia ter que buscar uma sala de emergência em plena temporada de gripe — algo assustador para alguém imunocomprometido — só para pegar receitas de seus remédios. “Eu ficava ligando para a UPenn [Universidade da Pensilvânia]”, conta. “A ‘consulta de emergência’ ia demorar um mês e meio. Foi um período muito estressante, não sabia se receberia minhas medicações a tempo.”

Como no resto do país, as pessoas de cor na Filadélfia foram atingidas duramente pela pandemia do coronavírus. Em Março de 2020, representantes do município buscaram Freedman para reabrir o Hahnemann como abrigo para pacientes de COVID-19 num surto que vinha sendo antecipado. Só que Freedman pedia mais de 400 mil dólares por mês para alugar o imóvel — um preço que ele disse ser “bastante razoável”. A negociação deteriorou-se rapidamente. A responsabilidade pelos cuidados de pacientes com coronavírus recaiu como um peso extra sobre os demais hospitais da região — incluindo o Temple, que converteu um bloco de sete andares numa clínica de coronavírus e montou um hospital de campanha junto ao PS. Foram registrados cerca de 150 mil casos na cidade, com mais de 3600 mortes.

“O que eu sinto a respeito desse evento todo é que é um pecado moral em nível corporativo”, confessa a internista Lia Logio. “Espera-se que o serviço de saúde seja dedicado ao cuidado dos pacientes. A ajudar as pessoas a ter vidas longas, com dores e doenças limitadas. Pelo visto, essa não é a prioridade”.

QUANDO CONVERSEI com Freedman pelo telefone no verão passado, ele havia retornado para a Califórnia, onde comprou uma nova mansão de cerca de 8 mil metros quadrados ao sul de Los Angeles, com pé-direito de 6 metros e um spa de pedra por quase US$ 7 milhões. Ele estava enfrentando duas ações judiciais contra a Tenet Healthcare. O executivo alega ter sido enganado sobre a situação financeira do Hahnemann. Freedman estima que, pessoalmente, perdeu uns US$ 10 milhões no negócio do Hahnemann. Ele foi convidado a se retirar do comitê da Universidade do Sul da Califórnia, “algo que realmente me magoou”. Mas o Hospital St. Christopher foi vendido por 50 milhões e a MidCap Financial pôde receber seu empréstimo de volta.

Agora Freedman tenta se reinventar. Enquanto nos falávamos durante uma tarde, era perceptível uma brisa no telefonema do empresário. Ao fundo, o latido de Snow, o maltês da família. A confiança de Freedman soava inabalada: “Estou trabalhando em algumas coisas que acho que são importantes. Gostaria de voltar a trabalhar com saúde algum dia. Tenho muito conhecimento e vi muita coisa feia. Infelizmente, as soluções exigem bastante capital.”

CHRIS POMORSKI é jornalista norte-americano e vive em Asheville, Carolina do Norte. Após passar pela redação do ‘The New York Observer’, tornou-se freelancer e teve matérias publicadas em títulos como ‘The Guardian’, ‘The New York Times Magazine’, ‘Vanity Fair’ e ‘Bloomberg Businessweek’. Esta crônica de uma morte hospitalar foi publicada originalmente no site da ‘New Yorker’ em 31/05/2021.

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Renato Pincelli
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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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