De Gatos a Manuscritos
A História (e as histórias) por trás de um registro arquivístico que viralizou

Por Emir Filipović, no The Appendix. Tradução de Renato Pincelli.
É UMA EXPERIÊNCIA AGRADÁVEL e reconfortante ver uma foto que tirei recebendo tanta atenção positiva, de gente de tantas partes do mundo. Agora ela foi reblogada, retuitada, compartilhada e comentada tantas vezes que já perdi as contas de tudo. A história foi coberta em matérias publicadas em inglês, russo, japonês, grego, romeno, francês e hebraico, só para mencionar as que vi.
Mas por que uma simples foto das pegadas de um gato num manuscrito medieval tornou-se tão popular na internet? Será que é porque manuscritos e felinos formam uma boa combinação? Ou essa popularidade pode ser atribuída ao fato de que inúmeros proprietários de bichanos se identificam com aquele pobre escriba medieval? Não posso dar uma resposta direta a essas questões porque está claro para mim que não existe fórmula ou receita para determinar se algo vai ou não ser sucesso na internet. Apesar do poder óbvio das redes sociais, blogs e da internet em geral, eu jamais pensei que uma das minhas fotografias seria tão desejável, ainda mais porque não tive a intenção de buscar a atenção que recebi.

Minha narrativa segue um caminho simples: Eu estava fazendo alguma pesquisa nos Arquivos do Estado de Dubrovnik para meu PhD e deparei com algumas páginas manchadas por patadas de gatos. Então, tirei algumas fotos disso (como faço sempre que noto algo interessante ou incomum em qualquer livro antigo que leio) e prossegui com meu trabalho, sem dar muita atenção a algo que, naquele momento, era apenas uma distração. Nunca tive a intenção de publicar nem fazer nada demais com essas fotos, exceto mostrá-las para meus colegas como forma de diversão.
Quando o historiador Erik Kwakkel tuitou uma iluminura de um gato bravo num manuscrito medieval, pensei que ele e seus seguidores poderiam se interessar pela minha foto. Ele retuitou-a, algumas pessoas curtiram e foi basicamente só isso — até que um famoso veterinário publicou a mesma imagem em sua página do Facebook, onde chamou tanta atenção que as pessoas começaram a me escrever com perguntas sobre a proveniência do manuscrito e outros detalhes que elas gostariam de incluir em suas publicações sobre aquelas pegadas de gato.
Após alguns dias, o entusiasmo passou e as pessoas pararam de entrar em contato para me questionar sobre a foto. Entretanto, além da promoção mundial dos Arquivos do Estado de Dubrovnik, um lado muito bom dessa história é que o documento com as patadas vai fazer parte do Álbum Interativo de Paleografia Medieval, mantido pela Dra. Marjorie Burghart em Lyon, na França. Isso, espero, deverá permitir que estudantes e outros historiadores medievais se familiarizem com o tipo de documento que venho estudando nos últimos anos. Além disso, outra vantagem da foto é que eu tive a oportunidade de compartilhar outros itens e peças interessantes que encontrei em Dubrovnik/Ragusa, um canto verdadeiramente notável na costa oriental do Adriático.

Para os que não conhecem a História de Dubrovnik, talvez o mais importante a dizer seja o fato de que, na Idade Média, ela foi uma comuna governada pela aristocracia local e um dos principais aspectos de sua economia medieval era o comércio marinho. Graças à sua localização estratégica, Dubrovnik era o local ideal para ligar os sertões brutos do interior dos Bálcãs com todos os outros lugares de além-mar — trocando bens, conhecimentos e experiências nesse processo. Como acontece com todos os negociantes, os moradores de Dubrovnik gostavam de registrar suas ações e, assim, foram criados um notário e um arquivo [público] na segunda metade do século XIII.
O fato dessa comunidade ter mantido sua independência como Estado Livre — ainda que tenha reconhecido a autoridade de venezianos, húngaros e otomanos em diferentes fases de sua História — significa que, até o começo do século XIX, os registros de seus arquivos foram preservados. Hoje, eles representam uma das melhores fontes para estudar todo tipo de assunto medieval e pré-moderno. De fato, o Mediterrâneo medieval ganha vida nos Arquivos de Dubrovnik. As fontes que encontramos nos apresentam o quadro de uma cidade portuária pulsante, repleta de atividades comerciais ou legais. Fernande Braudel, famoso historiador, escreveu que os Arquivos de Dubrovnik eram
de longe o mais valioso para nosso conhecimento do Mediterrâneo (…) Qualquer um com tempo e paciência para estudar as volumosas Acta Consiliorum [Atas do Conselho, ou Câmara dos Vereadores local] terá a oportunidade de observar o espetáculo extraordinariamente bem-preservado de uma cidade medieval em ação. Seja pelos registros [comerciais] ou pelas disputas legais, uma coleção incrível de documentos sobreviveu.
Nessa multidão de documentos, registros, arquivos e livros, um pesquisador pode encontrar informações relevantes para incontáveis aspectos da vida na Idade Média. Além das interessantes fontes escritas em si, também pode-se encontrar pequenos traços que as pessoas medievais deixaram nos manuscritos, preservando-os para a posteridade. Esses traços são raros e curiosos e é revigorante topar com algo assim durante uma pesquisa. Tais coisas são dignas de nota porque oferecem um grande contraste com o resto do registro arquivístico, que muitas vezes contém textos monótonos e chatos, como registros de dívidas ou de partilhas de terrenos.

Personalizadas, essas marcas nos dão a chance de sentir uma conexão mais pessoal com o indivíduo envolvido na criação do documento ou com a pessoa que o manejou muito tempo depois. Você se conecta ao passado de forma bem mais direta ao se identificar com o escritor do texto, ao se colocar no lugar dele ou ao imaginar o que ele deveria ter pensado quando deixou seu traço naquele livro.
A foto das pegadas do gato representa uma dessas situações, que força o historiador a desviar seus olhos do texto por um momento, pausando para recriar mentalmente o incidente: o gato, provavelmente do próprio escriba, pisou primeiro na almofada de tinta e depois no livro, marcando-o pelos séculos afora. Você quase pode ver o escrivão espantando o gato de forma desesperada, tentando removê-lo de sua mesa. Apesar de seus esforços, o estrago já estava feito e não havia mais nada a fazer a não ser virar a página e continuar seu trabalho. Foi assim que esse pequeno episódio foi “arquivado” e passou à História.
Mas existem outras situações semelhantes, em que você se sente motivado a pensar sobre as pessoas (ou até bichos) envolvidos na criação de documentos históricos. Em certo caso, notei nas minutas de uma reunião que o escrivão foi ficando cansado à medida que a reunião avançava, com sua letra cada vez mais alterada e preguiçosa com o passar do dia. Em outras ocasiões, deparei com rabiscos e desenhos de um notário entediado, que os fez enquanto esperava sua próxima tarefa ou só para mostrar que suas habilidades iam além de uma boa caligrafia.

O mesmo pode ser dito das iniciais decorativas que associamos aos manuscritos medievais ricamente iluminados. Aqui e acolá, as iniciais surgem nos registros e geralmente parecem deslocadas nos contextos restritos e formais dos livros de aquivo. Também há momentos em que você encontra buracos naturais no pergaminho e nota como o escritor tentou contorná-lo, colocando seu texto ao redor deles. Talvez você também possa se lembrar das traças que fizeram seus próprios furos nos manuscritos.

Muitos notários e escrivães da Idade Média tinham habilidades que iam além da escrita, pois eram bem-educados e tinham uma bagagem considerável de conhecimentos gerais. Às vezes, eles queriam demonstrar isso e um exemplo desse tipo está gravado nas páginas finais de um livro arquivístico, onde o notário escreveu um excerto das Metamorfoses de Ovídio:
Pronaque cum spectent animantia cetera terram
Os homini sublime dedit celumque videre
Jussit et errectos ad sidera tollere vultus
(Ovid, Met. 1.84–86)[Ou seja, na tradução de Bocage:
As outras criaturas debruçadas
Olhando a Terra estão; porém ao homem
O Factor conferiu sublime rosto,
Erguido para o céu lhe deu que olhasse]
O que levou o escritor a rascunhar essa citação famosa sobre a criação do homem? Houve algo específico que o inspirou a fazer isso? Ele queria expressar seu conhecimento sobre autores clássicos? Ou será que estava de saco cheio de receber ordens do que escrever e, de certo modo, protestava contra isso? Estaria ele cansado de abaixar sua cabeça para os livros e recordou-se dessa passagem sobre olhar para as estrelas? Pode ser qualquer uma dessas coisas ou ele poderia estar só testando uma nova pena…
EMIR FILOPOVIC é professor e pesquisador-assistente no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, na Universidade de Sarajevo, Bósnia-Herzegovina. Entre 2012 e 2015, Filipovic publicou este e outros achados num blog interessantíssimo, o “The Apendix” — onde o presente texto foi publicado originalmente em 05/03/2013.