Dorothy Levitt, a primeira mulher ao volante

Numa carreira meteórica, ela ganhou as estradas e as pistas de corrida. Além dos recordes, deixou um livro que pode ser considerado a bíblia da motorização feminina.

Renato Pincelli
5 min readMar 8, 2022
Dorothy Levitt em sua fotografia preferida [The Woman and the Car, 1909]

Por Hunter Dukes, na Public Domain Review (Maio de 2021). Tradução de Renato Pincelli.

NO INÍCIO DO SÉCULO XX, Dorothy Levitt [1882–1922] era conhecida como “a primeira motorista e botorista [condutora de boat, barco a motor] do mundo”. Nascida Elizabeth Levi, ela foi a primeira inglesa a pilotar numa competição pública, com vitórias em provas no Reino Unido, França e Alemanha. No Campeonato dos Mares em Trouville, derrotou todos os concorrentes e marcou o record mundial feminino nas Provas de Velocidade de Brighton: estonteantes 79,75 milhas por hora [128,35 km/h] — quase a velocidade da luz, para 1905.

Como muitas figuras extraordinárias, sua história combina modéstia, acidentes e fofocas. Na infância, ela gostava de andar de bicicleta e a cavalo e mostrou um talento natural para as armas de fogo. Um dia, um amigo de seus pais veio visitar a família no Oeste da Inglaterra, deixando seu automóvel de lado durante todo o fim de semana prolongado. Quando o visitante foi embora, Levitt já havia dominado as mecânicas do motor a combustão.

Em síntese, esta é a história que encontramos no prefácio de C. Byng-Hall para The Woman and the Car: A Chatty Little Handbook for All Women Who Motor or Who Want to Motor [A Mulher e o Carro: um pequeno manual para todas as mulheres motorizadas ou que querem motorizar], de 1909. Outras migalhas biográficas indicam que Levitt trabalhou como secretária de Selwyn Edge, empresário e entusiasta das corridas de carro, pioneiro na promoção do motor de seis-cilindros. Foi ele que, num golpe de publicidade, passou o volante a Levitt.

Segundo Jean Williams, em sua história contemporânea do esporte feminino, a ligação de Levitt com o oeste da Inglaterra continua “sem lastro até agora” e pode ter sido um desvio autobiográfico para ocultar sua descendência judaica. Porém, em pouco tempo, Levitt ficou conhecida por queimar borracha ao redor do mundo, quase sempre na companhia de Dodo, seu lulu-da-pomerânia (outros competidores tiravam sarro de suas excentricidades ao pregar emblemas caninos em seus capacetes).

The Woman and the Car: publicado em 1909, o livro de Levitt conta com instruções simples de mecânica, regras de trânsito e o que a autora considera “etiqueta” sobre rodas.

The Woman and the Car é um guia prático para quem queria botar o pé na estrada mas não sabia bem como começar. Muitas de suas detalhadas recomendações tratam de mecânica, etiqueta e das tentações que a cultura automotiva reconhece até hoje. Sempre houve, por exemplo, lemons [jabiracas] pois Levitt mantém-se cética diante da compra de carros de segunda mão “tão bom quanto novo”. Como muitos entusiastas, ela se recusava a passar o volante. “Tenho para mim uma regra de jamais permitir que alguém dirija meu carrinho — regra esta que todo mundo achará útil.”

No “pequeno manual” de Levitt encontramos uma sede de liberdade na estrada semelhante à que dominaria a imaginação americana em meados do século — algo explorado em romances como Pé na estrada e Lolita, além de filmes como Easy Rider — e que continua presente no escapismo mecânico do programa de TV britânico Top Gear:

Pode haver prazer em ser conduzido pelo campo por seus parentes e amigos ou num carro dirigido por seu chofer; mas o verdadeiro e intenso prazer se concretiza apenas quando você dirige seu próprio carro como passatempo.

Muito antes de se tornar tarefa aborrecida de ir e voltar, dirigir tinha a mística de um individualismo emergente — especialmente entre certa classe de moças ociosas, com chofer e amigos do campo. “Se você passar a noite na casa de um amigo” — diz Levitt, sem muita clareza — “vai verificar de manhã, com as varetas de medição, que os tanques de água e petróleo foram reabastecidos.” Quem dera ter amigos como os de Levitt…

Outros conselhos no “livrinho” são maravilhosamente datados, representando uma imagem fossilizada de outra era automotiva. Ela recomenda, por exemplo, que as mulheres optem pelos motores de um cilindro só. E sua prosa se derrama na descrição de um protótipo de porta-luvas: “Esta gavetinha é o segredo da motorista elegante”.

Mulher ao volante: Levitt pode ter sido a primeira pessoa a instalar uma gaveta para guardar luvas (ou um revólver) em um automóvel. Ela também recomendava o uso de um protótipo de espelho retrovisor.

Quanto ao vestuário, Levitt é taxativa: “Para a cabeça, não há questão: o boné redondo ou o turbante de pele bem amarrado são os mais confortáveis e adequados.” Caso a moça se veja dirigindo sozinha em estradas e lugares ermos, ela considera indispensável levar um revólver e até indica uma marca específica: “Tenho um Colt automático e ele me parece muito fácil de manejar pois praticamente não dá coice.” Ela admite, porém, que isso só funciona se, como ela, a moça “treina constantemente num tiro-ao-alvo”.

Seu pragmatismo é implacável. Embora Levitt aconselhe “soar a buzina” ao se aproximar de pedestres, ela não tem tempo para as outras criaturas que se metem nas estradas: “Cães, galinhas e outros animais domésticos soltos na estrada não são pedestres. Se alguém dirige dentro dos limites de velocidade, não tem responsabilidade pelo fim prematuro deles.” Acima de tudo, The Woman and the Car soa como um panfleto de empoderamento petro-feminista:

Você pode, como eu, ter medo de conduzir um cabriolé pelas ruas apinhadas da cidade — pode ter medo de um camundongo ou ser nervosa a ponto de se assustar com o menor ruído — e ainda assim pode ser uma motorista habilidosa e desfrutar das delícias deste que é o maior de nossos passatempos ao ar livre, contanto que você seja dotada de paciência — a capacidade de aguentar dores.

Ela termina seu tratado com uma reflexão sobre um progresso histórico recente. “Há vinte ou trinta anos, duas características fundamentais para uma motorista — alguma noção de mecânica e a capacidade de compreender a topografia local — eram consideradas coisas além da capacidade de um cérebro feminino”.

Levitt não só foi influente na inclusão de mulheres ao volante mas mudou para sempre a forma do automóvel. Décadas antes dos retrovisores serem itens de série, ela recomendava às moças que levassem um espelho de mão para visualizar o que vinha por trás daquelas estradas poeirentas.

Nota do Tradutor

Apesar de seu livro ser considerado influente na motorização das mulheres britânicas, pouco se sabe sobre Dorothy Levitt após a publicação desta obra. Em 1910, tentou tirar brevê para pilotar aviões mas, apesar do treinamento, foi reprovada. Levitt manteve, por alguns anos, colunas de automobilismo nos jornais The Graphic e Yorkshire Evening Post. Ela continuou participando de algumas competições até por volta de 1912.

Seu paradeiro durante e após a I Guerra Mundial é desconhecido e ela parece ter se retirado da vida pública subitamente. Não há evidências de que Dorothy tenha se casado nem que teve filhos durante esse período. Seu último registro histórico é seu atestado de óbito, datado de 1922. A causa mortis foi dada como overdose acidental de morfina, em consequência de uma doença cardíaca.

Um exemplar de The Woman and the Car, na edição original de 1909, foi digitalizado pela biblioteca da Universidade McGill (Canadá) e pode ser lido ou baixado no Internet Archive.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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