Economia — a disciplina que se recusa a mudar
A Economia Comportamental derrubou a ideia de que os humanos agem apenas de maneira racional e em seu próprio interesse. Então por que os estudantes da área mal aprendem algo sobre isso?
Por Antara Haldar, na Atlantic (Dez/2018). Tradução de Renato Pincelli.
NO FINAL DO SÉCULO XIX, entrou em cena um dos personagens ficcionais mais duradouros de todos os tempos. Não, não estou me referindo a Sherlock Holmes ou Oliver Twist, mas a um indivíduo que, embora seja menos conhecido provavelmente é muito mais influente: o Homo economicus.
Apesar do nome Homo economicus, que significa literalmente “homem econômico”, as origens do termo são um tanto obscuras — as mais antigas referências podem ser ligadas ao economista C. S. Devas, de Oxford, em 1883. Mas suas características tornaram-se bastante familiares: ele é infinitamente racional e possui tanto uma capacidade cognitiva ilimitada quanto acesso à informação. Sua personalidade, porém, é como a do Marlboro Man — rudemente auto-centrado, materialista sem remorsos e completamente solitário. O Homo economicus, criado para personificar o modo supostamente racional com que os humanos se comportam em mercados, logo tornou-se uma teoria econômica dominante.
Só que aí vieram os anos 1970, quando os psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky fizeram uma grande descoberta. Partindo de evidências psicológicas, os dois acadêmicos demonstraram que as ações dos seres humanos desviam-se da racionalidade férrea do Homo economicus de várias maneiras. As pessoas cometem erros sistemáticos de julgamento — podendo ser, por exemplo, excessivamente apegadas às suas posses — e, ao mesmo tempo, também são bem mais generosas e cooperativas do que parece.
Essas descobertas levaram à fundação de um novo campo, a Economia Behaviorista [ou Comportamental]. Tal nome tornou-se lugar-comum há dez anos, quando Cass Sustein e Richard Thaler publicaram o best-seller Nudge [Nudge: O Empurrão para a escolha certa, na edição em português] e mostraram como esse novo entendimento do comportamento humano poderia ter sérias consequências políticas. No ano passado [2017], Thaler ganhou o Nobel de Economia e prometeu gastar o prêmio de 1,1 milhão de dólares “tão irracionalmente quanto possível.”
APESAR DE TUDO, o Homo economicus continua teimando em aparecer nos currículos de Economia. Mesmo que os cursos de Economia Comportamental estejam na moda para a maioria dos Departamentos de Economia [das universidades], as exigências fundamentais em Economia em muitas faculdades são normalmente limitadas a somente dois grandes cursos. Um é o de Microeconomia, que olha como os indivíduos otimizam suas decisões econômicas; o outro é o de Macroeconomia, voltado para os mercados regionais ou nacionais como um todo.
O estudo da Economia Comportamental não é apenas opcional na prática mas na teoria também: os livros-texto usados por muitos estudantes universitários fazem referências escassas às inovações behavioristas. Em Intermediate Microeconomics [Microeconomia Intermediária], Hal Varian dedica apenas 16 de suas 758 páginas à economia comportamental, desprezando-a como uma mancha no grande esquema das coisas, uma “ilusão de ótica” que desapareceria “se as pessoas tirassem tempo para pesar as escolhas cuidadosamente — aplicando o metro da racionalidade desapaixonada.” O livro-texto padrão na Macroeconomia, escrito por Gregory Mankiw, dá um espaço ainda mais curto às abordagens comportamentais, deixando de mencioná-las quase por completo.
Em vez disso, a maioria esmagadora dos cursos de Economia frequentados pelos estudantes pesam a mão em estatísticas e econométrica. Em 2010, o Institute for New Economic Thinking [Instituto pelo Novo Pensamento Econômico] reuniu uma força-tarefa para estudar os currículos universitários de Economia, dando seguimento a um relatório feito em 1991. O grupo descobriu que naquele período houve “um aumento nas sofisticações técnica e matemática” que foi “insuficiente para fomentar hábitos de questionamento intelectual.” Em outras palavras, o Homo economicus está sendo reforçado nas salas de aula e livros-texto do país [dos EUA].
A resistência dos economistas em abraçar a sabedora das abordagens behavioristas pode parecer uma questão frívola e confinada às torres de marfim acadêmicas, mas tem consequências sérias. O que os estudantes aprendem nas aulas de Economia pode distorcer perversamente modelos e tabelas, tentando encaixar a realidade aproximada nos ideais teóricos. A maioria dos estudantes de Economia é apresentada ao Homo economicus enquanto são calouros impressionáveis, que internalizam seus valores. Há estudos que demonstram, por exemplo, que frequentar cursos de Economia pode tornar as pessoas ativamente mais egoístas.
As consequências são mais sérias se pensarmos no fato de que Administração — espécie de versão técnica de Economia — é o curso mais popular para estudantes universitários nos Estados Unidos, onde cerca de 40% dos graduandos faz pelo menos alguma disciplina ligada à Economia. Quando a Economia Comportamental é minimizada e tratada como aberração pelo mainstream, temos um grande impacto no modo como os estudantes enxergam os mercados e o mundo.
O que mais surpreende sobre essa hesitação dos economistas em absorver os aprendizados da economia comportamental é que, até o surgimento do Homo economicus, invocar a psicologia no ensino de economia era o padrão. Na Universidade de Cambridge, por exemplo, antes de ser estabelecida como um departamento independente em 1903, a Economia era ensinada junto com Psicologia e Filosofia. Foi só depois da II Guerra Mundial, quando o centro de gravidade da disciplina atravessou o Atlântico, que a ruptura tornou-se definitiva. O nascimento da Era Americana na Economia marcou um comprometimento ainda maior com as análises matemáticas, às custas de todo o resto.
Essa profunda mudança no currículo econômico resultou numa disciplina que não é apenas estéril, surda e desprovida de pulso emocional mas que também mostrou-se ineficaz em suas capacidades de explicar e prever fenômenos. Os economistas não têm um bom histórico quando se trata de antecipar os problemas pertinentes mais recentes. Como um todo, a área foi tomada de surpresa pela Grande Recessão de 2008 e demorou a reconhecer o aumento estratosférico na desigualdade [sócio-econômica]. A Economia está ainda mais despreparada para lidar com as mudanças sísmicas que aparecem no horizonte, como os efeitos acelerados da mudança climática ou o impacto dos avanços em inteligência artificial na vida dos trabalhadores. Dado o papel bastante inflado que os economistas profissionais têm em todas as esferas políticas, o grau de descolamento entre a Economia e a realidade se torna ainda mais alarmante.
Tornar a Economia Comportamental obrigatória não vai ser uma panaceia para os males da disciplina econômica. Mas fazer isso seria um grande passo para encorajar os estudantes a pensar seus modelos econômicos a partir de seres humanos reais em vez da caricatura que é o Homo economicus. Se podemos tirar uma lição mais profunda da revolução behaviorista é que a vagueza do comportamento humano torna [a economia] muito difícil de modelar como uma ciência pura e exata. Os economistas têm muito a aprender com outras disciplinas, inclusive as Ciências Sociais e as Ciências Humanas. Isso pode significar uma dose de humildade para os economistas mas enriqueceria tanto a educação que seus estudantes recebem quanto as perspectivas de criar mudanças positivas no mundo real.
Portanto, embora os rumores sobre a morte do Homo economicus tenham sido bastante exagerados, os professores de Economia ainda têm a chance para enterrar esse personagem antiquado de uma vez por todas.
Professora de Direito na Universidade Cambridge (Reino Unido), a Drª. ANTARA HALDAR atua na intersecção entre os campos de Direito, Desenvolvimento e Economia. Seus trabalhos, que buscam derrubar as barreiras entre o Direito e a sociedade e o Direito e a Economia, cobrem tópicos que vão das microfinanças e direitos de propriedade à epistemologia e problemas de raça e gênero. Antara participou de iniciativas do Institute for New Economic Thinking, foi consultora de projetos da ONU e professora-visitante na Universidade Lund, na Suécia, além de colaborar em projetos com especialistas na Índia, no Canadá e na África do Sul. O presente artigo foi publicado originalmente na revista “Atlantic” em 14/12/18.