Economia positiva: um novo sistema financeiro para lidar com as mudanças climáticas

Abolir o sistema monetário baseado em dívidas não é uma ideia nova, mas pode ser o segredo para acabar com o vício de crescimento eterno que tanto prejudica o meio-ambiente

Renato Pincelli
5 min readMar 17, 2019
Notas de dólar recém-impressas são conferidas no US Bureau of Engraving and Printing em 1929. Hoje, 90% do dinheiro em circulação nem tem existência concreta: é criado pelos bancos ao fazer empréstimos. [Foto: FPG/Getty Images]

Por Jason Hickel, no Guardian (5/11/2016).
Tradução de Renato Pincelli.

QUANDO SE FALA DE aquecimento global, sabemos que o verdadeiro problema não está apenas nos combustíveis fósseis e sim na lógica de crescimento interminável sobre a qual se constrói nosso sistema econômico. Se a economia global não cresce 3% ao ano, tudo afunda numa crise. Isso significa que, só pra nos manter de pé, temos que dobrar o tamanho da economia a cada 20 anos. Não é preciso ser um gênio para perceber que esse imperativo de crescimento exponencial faz pouco sentido diante dos limites de nosso planeta finito.

As rápidas mudanças climáticas são o sintoma mais óbvio dessa contradição, mas também estamos vendo outros como o desmatamento, a desertificação e uma extinção em massa, na qual espécies morrem em velocidade alarmante em meio a habitats destruídos pelo nosso consumo dos recursos naturais. Até 10 anos atrás era impensável dizer isso, mas hoje estamos cada vez mais cientes dessas crises e de sua causa: nosso sistema econômico é incompatível com a vida na Terra.

A questão é o que fazer a respeito. Como redesenhar a economia global para adequá-la aos princípios da ecologia? A resposta mais óbvia é deixar de usar o PIB como medida de progresso e substituí-lo por uma medida mais ponderada — uma que leve em conta os impactos ecológico e social da atividade econômica. Há anos que economista proeminentes como Joseph Steiglitz, vencedor do Nobel, têm apontado para a necessidade dessa mudança. É hora de ouvirmos esses especialistas.

Deixar o PIB de lado é apenas o primeiro passo. Embora isso ajude a mudar o foco das políticas econômicas para o que realmente importa, não resolve o principal motor do crescimento: dívidas. Dívida é a razão pela qual o crescimento econômico tem de estar em primeiro lugar. Como a dívida sempre vem com juros, ela cresce exponencialmente. Assim, se uma pessoa, uma empresa ou um país quiser quitar sua dívida a longo prazo, precisa se esforçar para crescer tanto quanto cresce seu endividamento. Sem crescimento, as dívidas se acumulam, o que eventualmente leva a uma crise econômica.

Uma maneira de aliviar a pressão pelo crescimento sem fim pode ser o cancelamento da dívida: uma espécie de jubileu dos débitos. Mas essa seria apenas uma solução de curto prazo e não alcançaria a raiz do problema. Afinal o sistema econômico global depende de dinheiro que, em si mesmo, é dívida.

Isso pode parecer esquisito, mas é bem simples. Quando entra num banco para fazer um empréstimo, você supõe que o banco te empresta o que tem em suas reservas — o dinheiro que você tira sai de algum cofre, onde se acumulam os depósitos de outras pessoas. Só que não é bem assim. Os bancos só mantém reservas equivalentes a mais ou menos 10% dos valores que emprestam. Em outras palavras, os bancos emprestam 10 vezes mais dinheiro do que realmente têm. Isso é a chamada reserva bancária fracionada.

Então de onde vem todo aquele dinheiro adicional? Os bancos criam esse dinheiro do nada quando fazem empréstimos — eles emprestam-no para a existência. Isso equivale a quase 90% do dinheiro que circula na economia atualmente. Não é um dinheiro criado pelo governo, como pensa a maioria das pessoas: é grana criada por bancos comerciais na forma de empréstimos. Em outras palavras quase todo dólar [ou real] que passa em nossas mãos representa uma dívida que alguém tem. E cada dólar de uma dívida tem de ser quitado com juros. Como nosso sistema monetário é baseado em dívidas, o imperativo do crescimento é uma característica intrínseca. Podemos dizer que nosso sistema monetário está esquentando nosso planeta.

Ao perceber isso, a solução torna-se clara: precisamos fazer os bancos manter uma fração maior de reservas para os empréstimos que fazem. Esse seria o caminho para diminuir a quantidade de dívidas que inundam nossa economia, o que ajudaria a reduzir a pressão pelo crescimento econômico.

Mas nós podemos considerar uma solução ainda melhor. Poderíamos abolir completamente o sistema monetário baseado em débito e inventar um novo sistema completamente livre do débito intrínseco. Em vez de deixar os bancos criar dinheiro a partir do nada, deveríamos ter o Estado criando dinheiro e investindo-o. O novo dinheiro seria bombeado para a economia real em vez de ser desviado para especulações financeiras que inflam bolhas que beneficiam apenas os mega-ricos.

A responsabilidade pela criação de dinheiro seria colocada nas mãos de uma agência independente que — ao contrário dos nossos bancos — seria democrática, transparente e accountable [responsabilizável], de modo que o dinheiro seria um bem verdadeiramente público. Bancos comerciais ainda poderia emprestar dinheiro a juros, mas os empréstimos teriam de ter paridade com as reservas — ou seja, a fração de reserva exigida seria de 100%.

Essa não é uma proposta de lunáticos. É algo que remonta aos anos 1930, quando um grupo de economistas de Chicago apresentou essa ideia para acabar com os empréstimos desenfreados que levaram à Grande Depressão. O chamado Plano Chicago voltou às manchetes em 2012 quando economistas progressistas do FMI apontaram-no como estratégia para prevenir a recorrência da crise financeira global. Eles ressaltaram que tal sistema reduziria drasticamente tanto a dívida pública quanto as privadas e deixaria a economia mundial mais estável.

O que eles não perceberam é que a abolição do sistema monetário baseado em dívidas também é o segredo para acabar com o vício do crescimento de nosso sistema, algo crucial para controlar as mudanças climáticas. Reinventar o sistema monetário é fundamental para nossa sobrevivência no Antropoceno — pelo menos tão importante quanto abandonar os combustíveis fósseis. Essa ideia já começa a ganhar tração: no Reino Unido o grupo de ativistas Positive Money está chamando a atenção com uma série de vídeos excelentes.

Evidentemente, essa ideia tem seus inimigos. Se mudarmos para um sistema monetário positivo, os grandes bancos não vão ter mais o poder de fazer dinheiro ex nihilo e os ricos não vão mais acumular milhões a cada bolha financeira. Sem surpresa, nenhum dos dois grupos gosta desse prospecto. Mas se quisermos construir uma economia ecologicamente sólida e mais justa, esta é uma batalha da qual não podemos fugir.

JASON HICKEL é antropólogo na London School of Economics e autor de “The Divide: A Brief Guide to Global Inequality and its Solutions [A Divisão: um breve guia à desigualdade global e suas soluções]”. Hickel é colunista regular do jornal britânico “The Guardian”, onde este artigo foi publicado originalmente em 05/11/16.

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Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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