Empurroterapia Intensiva

Décadas após pesquisas derrubarem procedimentos comuns, eles continuam sendo buscados por pacientes e praticados por médicos. O resultado é uma epidemia de tratamentos desnecessários e inúteis.

Renato Pincelli
35 min readJun 11, 2019
A grande questão é: como um procedimento tão contraindicado pelas pesquisas pode ser tão comum? [Ilustração de Axel Pfaender para a Atlantic]

Por David Epstein na Atlantic, em colaboração com a ProPublica (Fevereiro de 2017).
Tradução de Renato Pincelli.

VAMOS COMEÇAR COM a história que tem final feliz. Aos 61 anos, o executivo gozava de excelente saúde. Sua pressão sanguínea estava um pouco elevada, mas todo o resto estava em ordem e ele se exercitava com regularidade. Então, veio o susto: ele saiu para uma rápida caminhada após o almoço num dia frio de inverno e seu peito começou a doer. De volta ao escritório, sentou-se e a dor passou tão rápido quanto havia aparecido.

Naquela noite, ele pensou mais sobre o caso: homem de meia-idade, pressão alta, trabalho estressante, desconforto no peito. No dia seguinte, foi para um pronto-socorro local. Os médicos determinaram que o homem não havia sofrido um ataque cardíaco e que a atividade elétrica de seu coração continuava normal. Tudo indicava que aquele executivo tinha uma angina estável — uma dor que ocorre quando o músculo cardíaco recebe menos sangue oxigenado do que o necessário, geralmente por causa do bloqueio parcial de alguma artéria.

Um cardiologista recomendou ao empresário que fizesse um angiograma coronário — quando um catéter é inserido numa artéria até o coração, injetando uma tintura especial que mostra bloqueios no raio-X — com urgência. Se o exame encontrasse um bloqueio, explicava o cardiologista, o executivo deveria implantar um stent, um tubinho metálico que é colocado numa artéria para mantê-la aberta à força.

Enquanto esperava no pronto-socorro, o executivo pegou seu telefone e pesquisou por “tratamento de doença arterial coronária”. De imediato, ele descobriu informações de revistas de medicina indicando que medicamentos — como aspirina e redutores de pressão — deveriam ser a primeira linha de tratamento. Esse homem era um paciente notavelmente auto-controlado, que perguntou ao cardiologista sobre o que havia acabado de descobrir. O cardiologista deu de ombros e disse que o homem precisava “fazer mais pesquisas”. Insatisfeito, ele recusou o angiograma e recorreu ao seu médico de família.

O médico familiar sugeriu um tipo diferente de angiograma, que precisava não de catéter mas de múltiplas radiografias para dar uma imagem das artérias. O exame revelou uma artéria parcialmente bloqueada por uma placa de gordura. Embora o coração daquele homem bombeasse o sangue normalmente, o exame era incapaz de determinar se o bloqueio era perigoso. Mesmo assim, o médico familiar seguiu o cardiologista de plantão e sugeriu que o executivo fizesse um angiograma com catéter, possivelmente seguido de um implante de stent.

O homem chegou a marcar com o médico recomendado para o cateterismo, mas quando tentou contatá-lo antes da hora, foi informado de que o médico não poderia atendê-lo antes do procedimento. Assim, ele foi procurar um terceira opinião e desse modo chegou ao Dr. David L. Brown, professor do departamento cardiovascular da Escola de Medicina da Universidade Washington, em Saint Louis. O executivo disse que se sentia pressionado pelos outros médicos e desejava receber mais informações. Ele estava disposto a tentar todo tipo de tratamento não-invasivo — de dietas rigorosas a aposentar-se de seu trabalho estressante — antes de ter um stent implantado.

O executivo foi inteligente em buscar mais informação e, ao chegar a Brown, também foi bastante sortudo. Brown faz parte da RightCare Alliance, uma colaboração entre profissionais da saúde e grupos comunitários que busca reverter a tendência de custos médicos elevados sem elevação no bem-estar dos pacientes. Como diz Brown, a RightCare está “colocando a medicina de volta ao equilíbrio, onde todo mundo recebe o tratamento que necessita e ninguém recebe o que não precisa.”

Um implante de stent é um exemplo clássico de tratamento desnecessário. Em 2012, Brown foi co-autor de um paper que examinou cada teste clínico comparando o implante com formas de tratamento mais conservadoras. Ele descobriu que stent para pacientes estáveis previne zero ataques cardíacos e dá um aumento nulo na expectativa de vida. Em geral, segundo o médico, “a não ser que esteja passando por um ataque cardíaco, ninguém precisa de um stent”. Ele lembra que stents podem aliviar a dor peitoral em alguns pacientes, ainda que transitoriamente. Mesmo assim, centenas de milhares de pacientes estáveis recebem stents todos os anos e 1 em cada 50 vai sofrer uma séria complicação ou até morrer em decorrência da cirurgia de implante.

Para o executivo, Brown explicou que aquele bloqueio era parte de uma condição mais difusa, que seria inalterada pela abertura de um simples tubo. O sistema cardiovascular, afinal, é bem mais complicado que uma pia de cozinha. O executivo passou a se medicar e melhorou sua dieta. Três meses mais tarde, seu colesterol teve uma melhora significativa, ele perdeu uns 7 kg, e a dor no peito nunca mais voltou.

AGORA, OUÇA a história com final infeliz. Pouco depois de ajudar o executivo, Brown e seus colegas precisaram analisar o caso de um homem de 51 anos, vindo de uma cidadezinha minúscula do Missouri. Esse indivíduo havia se recuperado com sucesso de um linfoma Hodgkin, mas a radiação e os seis ciclos de quimioterapia o deixaram com lesões progressivas crescendo em seus pulmões. Ele estava sufocando em seu próprio corpo e foi transferido para o Barnes Jewish Hospital, onde Brown trabalha, para um transplante pulmonar. Mas quando o homem chegou em St. Louis, a equipe de transplante não podia operá-lo.

Quatro meses antes, o homem havia dado entrada em outro hospital por seus problemas respiratórios. Lá, apesar do histórico do tratamento de linfoma e das consequentes lesões pulmonares, o cardiologista imaginou que a falta de fôlego poderia ser por causa de uma artéria bloqueada. Tal como no caso do executivo, o cardiologista recomendou um cateterismo. Porém, diferente do executivo, esse homem fez como a maioria dos pacientes e concordou com o procedimento. Foi revelado um bloqueio parcial numa artéria coronária.

Aí, os médicos implantaram um stent, mesmo sem qualquer evidência clara de que o bloqueio fosse o responsável pela falta de fôlego daquele paciente — que, na verdade, era causada pelo pulmão lesionado. Por fim, o homem recebeu medicações pós-implante para garantir que não desenvolveria um coágulo no local do stent. Só que esse tipo de remédio torna as cirurgias potencialmente letais, colocando o paciente em risco extremamente elevado de morte por hemorragia durante o transplante. A operação, portanto, teve que ser adiada.

Enquanto isso, o tecido pulmonar do homem continuava a endurecer feito a lava derretida que resfria e se solidifica até virar pedra. Até que um dia ele já não conseguia mais respirar. Esse homem sobreviveu a um linfoma em estágio avançado só pra morrer num hospital, à espera de um transplante adiado por causa de um stent desnecessário.

AMBAS AS HISTÓRIAS têm um ponto em comum: nenhum dos pacientes precisava de um stent. Graças a uma mente inquisitiva e um smartphone, um conseguiu escapar ileso. A grande questão é: como um procedimento tão contraindicado pelas pesquisas pode ser tão comum?

Quando visita um médico, você provavelmente supõe que o tratamento que recebe é apoiado em evidências de pesquisas médicas. O remédio que ele lhe prescreve ou a cirurgia à qual você vai se submeter não seriam tão comuns se não funcionassem, certo?

Em meio a todas as maravilhas da medicina moderna — tecnologias de imagem que permitem cirurgias de precisão, transplantes de órgãos rotineiros, cuidados que transformam bebês prematuros em crianças saudáveis, tratamentos quimioterápicos imbatíveis — é preocupantemente banal que pacientes recebem tratamentos demonstrados como ineficazes ou perigosos pelas pesquisas. Algumas vezes, os médicos não acompanham o ritmo da ciência. Em outros casos, os médicos conhecem perfeitamente bem o estado da arte, mas continuam a entregar tais tratamentos porque eles são lucrativos — ou mesmo porque são populares e até exigidos pelos pacientes. Alguns procedimentos são aplicados com base em estudos que não comprovaram se eles realmente funcionam. Outros eram inicialmente sustentados por evidências, até que surgiram evidências melhores contraindicando-os e mesmo assim eles foram mantidos como padrão por anos ou décadas.

Mesmo que você tome um medicamento que foi estudado em milhares de pessoas e comprovadamente salva vidas, existe a chance de que não vai funcionar pra você. A boa notícia é que ele provavelmente também não vai te fazer mal. Para o bem ou para o mal, a maioria dos medicamentos mais prescritos têm efeitos pouco significativos para a maioria das pessoas que os consomem.

Em 2013, dezenas de médicos dos EUA examinaram todos os 363 artigos publicados no New England Journal of Medicine entre 2001 e 2010. Eram artigos que pesquisavam uma prática clínica de uso corrente, como o uso de antibióticos para tratar pessoas com sintomas persistentes da doença de Lyme (o que não ajuda) ou o uso de esponjas especializadas para prevenir infecções em pacientes de cirurgias colorretal (o que causa mais infecções). Os resultados dessa meta-análise, publicados na Mayo Clinic Proceedings, registram 146 estudos que comprovam ou dão fortes indícios de que uma prática padrão atual ou não tinha benefício algum ou era inferior ao procedimento antigo. Outros 138 artigos apoiavam a eficácia de uma prática em uso e os restantes 79 foram considerados inconclusivos. Naturalmente, houve bastante discordância quanto às conclusões desse estudo.

Algumas das práticas contraindicadas têm o potencial de afetar milhões de pessoas diariamente: remédios fortes para manter a pressão sanguínea em baixos níveis nas pessoas diabéticas causavam mais efeitos colaterais e não eram melhores na prevenção de ataques do coração ou mortes do que tratamentos mais leves, que permitem uma pressão um pouco mais alta. Outras práticas desafiadas pela pesquisa são menos comuns — como o uso de testes genéticos para determinar se um afinador de sangue é adequado para determinado paciente — mas estão se tornando populares apesar das evidências em contrário. Alguns exemplos desafiam a intuição: a respiração boca-a-boca não é mais eficaz numa emergência do que o uso exclusivo de massagens cardíacas e as sobreviventes de câncer de mama, que recebem a recomendação de não levantar peso por causa do inchaço dos membros, deveriam fazer justamente isso para aliviar seus sintomas.

Um estudo independente porém similar foi financiado em 2012 pelo Departamento de Saúde e Envelhecimento da Austrália, com o objetivo de reduzir gastos com procedimentos desnecessários. No mesmo intervalo de tempo [2001–2010], foram observadas e identificadas 156 práticas médicas que são provavelmente ineficazes ou inseguras. A lista continua: uma recente revisão de 48 estudos independentes — abrangendo mais de 13 mil clínicos-gerais — verificou como os médicos percebem os exames de doenças e descobriu que eles tendem a subestimar os riscos em potencial dos exames que pedem, sobrestimando os possíveis benefícios. Um editorial na American Family Physician, co-escrito por um dos editores daquela revista científica, reparou que uma “característica notável” das pesquisas recentes é o quanto elas contradizem a opinião médica tradicional.

Isso não deve mudar tão cedo. O 21st Century Cures Act [Lei de Curas do Século XXI] — uma rara iniciativa bipartidária, impulsionada por mais de 1400 lobistas e sancionada em dezembro [de 2016]reduz as exigências baseadas em evidências para novos usos de drogas e para a aprovação e comercialização de alguns dispositivos médicos. Além disso, no mês passado [jan/2017], o presidente Donald Trump deu uma bronca no FDA [espécie de Anvisa americana] pelo que considera a retenção de drogas de pacientes moribundos. Ele prometeu cortar regulações “em grandes números… poderia ser até 80%” das regulações em vigor no FDA. Para isso, um dos principais candidatos do presidente à chefia do FDA, o investidor Jim O’Neill, defende abertamente que os remédios sejam aprovados antes que se demonstre seu funcionamento: “Deixe que as pessoas comecem a usá-los por seu próprio risco”, argumenta O’Neill.

[N. do T.: nesse ponto, encontramos mais uma semelhança entre Trump e Bolsonaro, que fez defesa populista da fosfoetanolamina, liberada antes de ter sua eficácia comprovada. A “fosfo” caiu nas graças da imprensa, mas pesquisas posteriores derrubaram a tese de sua ação anti-câncer.]

Embora os americanos possam esperar ver mais remédios e dispositivos disponibilizados para aqueles que precisam deles, também devem aguardar o agravamento do problema das terapias baseadas em evidências frágeis. Num recente artigo opinativo na Stat, dois médicos-pesquisadores da Johns Hopkins University consideram que o 21st Century Cures Act vai transformar o selo de aprovação do FDA “numa sombra do que já foi”.

Em 1962, o Congresso impôs uma célebre elevação dos padrões baseados em evidências para a aprovação de drogas. Isso aconteceu depois que milhares de bebês nasceram com mal-formações nos membros porque suas mães haviam consumido um remédio para dormir, a talidomida. Steven Galson, ex-contra-almirante, que foi médico oficial tanto do presidente George W. Bush quanto de Barack Obama, considera que o fortalecimento no processo de aprovação criado em 1962 foi “a maior contribuição à saúde” já feita pelo FDA. Galson afirma que, antes disso, “muitas medicações no mercado eram ineficazes para os usos indicados no rótulo.”

Buscar o equilíbrio certo entre inovação e regulamentação é bastante difícil, mas quando os remédios começam a ser usados — mesmo diante de evidências contrárias — eles tendem a continuar em uso. Uma pesquisa publicada em 2007 no Journal of the Medical Association, feita em coautoria por John Ioannidis — pesquisador médico e estatístico da Stanford University que ganhou importância por expor ciência médica de má qualidade — revelou que são necessários 10 anos para que a maioria da comunidade médica deixe de recomendar práticas populares depois que sua eficácia foi posta em xeque-mate pela ciência.

Para Vinay Prasad, oncologista e um dos autores do estudo que saiu na Mayo Clinic Proceedings, a medicina é apressada ao adotar práticas baseadas em evidências escassas e lerda para abandoná-las quando elas são derrubadas por provas contundentes. Quando jovem, Prasad teve uma experiência que o deixou determinado a acabar com os procedimentos ineficazes. Ele era o médico-residente numa equipe que cuidava de uma senhora de meia-idade com quadro estável de dores no peito. Ela recebeu um stent e sofreu um derrame, com sérias sequelas cerebrais. Prasad, que atualmente está na Oregon Health and Sciences University, ainda fica meio trêmulo ao falar desse caso.

Adam Cifu, médico e professor da Universidade de Chicago, teve uma experiência parecida. Durante anos, Cifu convencia pacientes em pós-menopausa a fazer uma terapia hormonal para manter a saúde do coração. Era um tratamento na moda na virada do milênio, com 90 milhões de prescrições anuais [só nos EUA]. Só que, mais tarde, uma pesquisa bem planejada demonstrou que não havia benefício cardíaco algum, e talvez até risco de danos. “Basicamente, tive que reverter todas aquelas decisões com as mulheres”, conta Cifu. “Rapaz, isso realmente te atinge, pois você ouve as pacientes dizendo: ‘achei que você havia dito que essa era a coisa certa’”.

Por isso, ele e Prasad escreveram um livro em coautoria em 2015: Ending Medical Reversal [Pelo Fim da Reversão Médica], onde clamam pela elevação dos níveis de rigorosidade na adoção de novos padrões médicos. “Temos um cultura que recompensa a descoberta, mas não recompensamos a replicação”, explica Prasad. A replicação é o processo de reexaminar uma descoberta científica original para ter certeza quanto à sua validade.

Pelo menos o caso dos stents está melhorando, segundo Steven Nissen, chefe de medicina cardiovascular na Cleveland Clinic. Ex-presidente do American College of Cardiology [Associação Americana de Cardiologia, ACC na sigla em inglês], ele ajudou a criar um guia para determinar se um paciente estável pode ser um candidato razoável para um implante de stent (Tanto Nissen quanto David Holmes, cardiologista da Mayo Clinic e ex-presidente da ACC, ressaltam que nos casos em que os pacientes não respondem às medicações ou têm dores no peito que alteram o cotidiano mesmo uma redução passageira dos sintomas pode justificar um stent).

Graças a essas diretrizes, a frequência de um implante de stent claramente impróprio caiu bastante entre 2010 e 2014. Ainda assim, os dados mais recentes de mais de 1600 hospitais americanos concluem que cerca de metade dos implantes de stent em pacientes estáveis eram total ou parcialmente injustificáveis. “As coisas melhoraram, mas não estamos onde deveríamos estar”, diz Nissen. Ele afirma que remover incentivos financeiros também ajudaria a modificar esse comportamento. “Tenho mais ou menos uma dúzia de cardiologistas e eles recebem os mesmíssimo salário, quer coloquem um stent quer não.”, explica Nissen. “Acho que isso fez uma diferença e manteve baixa nossa taxa de procedimentos desnecessários.”

Há dois anos, um trio de jornalistas da Bloomberg revelou que o Mount Sinai Hospital, em Nova York, estava marcando “emergências por agendamento” para os pacientes receberem stents. Segundo a reportagem, havia mais chance do plano de saúde pagar pelo procedimento se fosse uma situação de emergência — de fato, para quem está tendo um ataque cardíaco um stent pode ser a diferença entre vida ou morte. O laboratório de cateterismo do Mount Sinai divulga relatórios anuais gabando-se do número de stents implantados, estatística acompanhada de depoimento de pacientes como a Sra. Nelly Rodriguez, 77 anos, que ressalta que seu médico “me garante que, contanto que eu siga suas instruções, coma direito e fique longe do cigarro, os stents colocado nas minhas artérias ao longo dos anos vão durar e eu vou me sentir bem”. Na maioria dos casos, todas as palavras dessa frase situadas entre “cigarro” e “eu vou me sentir bem” poderiam ser deletadas e não faria a menor diferença.

EVIDENTEMENTE, não é fácil conseguir que qualquer profissional faça o certo quando recebe para fazer o errado. Mas existe algo além dessa perversão mercadológica. Recentemente, numa manhã nevosa em St. Louis, Brown deu um sermão em cerca de 80 médicos no Barnes Jewish Hospital. Logo no começo da palestra, ele apresentou resultados dos exames do executivo que ele tratou, aquele que evitou o stent. Depois, apresentou dados de milhares de pacientes em estudos controlados e randomizados comparando stents a procedimentos não-invasivos, esclarecendo que os stents não traziam benefícios aos pacientes estáveis. Depois, Brown pediu aos médicos presentes para levantar a mão se ainda mandariam um paciente com o mesmo diagnóstico do executivo para um cateterismo, que acabaria levando a um stent. Pelo menos metade das mãos das sala subiram, algumas envergonhadas. Brown ficou surpreso com a honestidade dos presentes. “Bem, nós sabemos o que fazemos”, justificou-se um dos médicos. Mas porquê?

Em 2007, após a realização do COURAGE trial — um estudo seminal que demonstrou a ineficácia dos stents na prevenção de ataques cardíacos ou mortes em pacientes estáveis — , um trio de médicos da Universidade da Califórnia em San Francisco organizou grupos focais de 90 minutos com cardiologistas para esclarecer a questão. Aos cardiologistas foram apresentados cenários ficcionais de pacientes com pelo menos uma artéria estreitada, mas sem sintomas. Depois, eles tinham que responder se recomendariam um stent pro caso apresentado.

Quase todos os médicos, inclusive aqueles cuja remuneração não estava atrelada a exames e procedimentos, deram respostas que se enquadram em quatro linhas de pensamento:

(1) os cardiologistas recordavam histórias de morte súbita — como o caso do guru de atletismo Jim Fixx, que recebeu bastante cobertura na mídia — e temiam se arrepender caso um paciente não fosse operado e acabasse caindo morto. Os autores desse estudo concluíram que tais cardiologistas estavam sob influência da “disponibilidade heurística”, termo cunhado pelos psicólogos Amos Tversky e Daniel Kahneman (ambos Nobel de Economia) para o instinto humano de basear uma decisão importante num exemplo dramático e memorável, mesmo que esse caso seja irrelevante ou incrivelmente raro.

(2) os cardiologistas acreditavam que um stent iria aliviar a ansiedade do paciente.

(3) os cardiologistas sentiam que poderiam se defender melhor num processo caso um paciente morresse depois de receber um stent em vez de morrer sem o dispositivo. Um dos médicos declarou que, “na Califórnia, se essa pessoa tiver uma ocorrência dentro de dois anos o médico que não fez [a intervenção] poderia ser processado com sucesso.”

E ainda havia uma razão mais poderosa e ubíqua: (4) apesar dos dados, os cardiologistas não conseguiam acreditar que os stents não fazem diferença: botar um stent faz tanto sentido! Se o paciente tem dor e o médico detecta o bloqueio, como é que abrir a barreira não faria diferença?

No fim dos anos 1980, quando já começavam a se acumular evidências de que abrir vasos sanguíneos à força era menos eficaz e mais arriscado do que os tratamentos não-invasivos, o cardiologista Eric Topol cunhou o termo “reflexo oculostenótico”, do latim Oculo (olho) e do grego Stenotic (estreito como numa artéria apertada). O significado é o seguinte: se você vê um bloqueio, você vai consertá-lo por reflexo.

Topol descreveu “o que parece ser uma tentação irresistível para alguns cardiologistas invasivos”, de colocar um stent sempre que veem uma artéria bloqueada — e danem-se as evidências de milhares de pacientes em estudos randomizados. Botar um stent é o que os cientistas chamam de solução bio-plausível — aquela cujo funcionamento é sugerido pela intuição. Só que o corpo humano está mais para [algo sobrenatural como] o Livro de Jó do que para o encanamento doméstico: ele não foi inventado por humanos, é realmente complicado e a gente costuma ter um entendimento limitado de suas causas e efeitos.

Para um médico, é difícil convencer os pacientes “quando eles tomam uma pílula, veem uma melhora nos seus índices e pensam que sua saúde melhorou.” [Axel Pfaender/Atlantic]

HÁ UMA BOA chance de que você ou algum familiar tenha tomado uma medicação ou recebido um procedimento que é bio-plausível, mas não funciona. Segundo os Centers for Disease Control and Prevention [Centros de Controle e Prevenção de Doença, espécie de Vigilância Sanitária dos EUA], cerca de 1 em cada 3 americanos tem hipertensão. A pressão sanguínea é uma medida da intensidade com que o sangue pressiona as paredes dos vasos sanguíneos através do corpo: quanto maior a pressão, maior o desgaste do coração. Pessoas com pressão alta têm risco extremamente elevado de doenças cardíacas (causa mortis nº. 1 do país) e derrame (na terceira posição).

Por isso, não é difícil entender porque Sir James Black ganhou um Prêmio Nobel em consequência de sua descoberta dos beta-bloqueadores — que reduzem a frequência cardíaca e a pressão sanguínea — nos anos 1960. O comitê Nobel elogiou a descoberta como a “maior inovação farmacêutica contra doenças do coração desde a descoberta do digitalis há 200 anos”. Em 1981, o FDA aprovou um dos primeiros beta-bloqueadores, o atenolol, depois de ficar demonstrado que ele reduzia drasticamente a pressão sanguínea. O atenolol se tornou um tratamento tão onipresente que virou padrão de referência para comparações com outras drogas para pressão sanguínea.

Em 1997, um hospital sueco deu início a um estudo com mais de 9000 pacientes hipertensos, que receberiam aleatoriamente ou o atenolol ou um remédio concorrente ao longo de quatro anos. O grupo da concorrência teve menos mortes (204) do que o do atenolol (234) e menos derrames (232 versus 309). Mas o estudo também descobriu que ambas as drogas reduziam a pressão sanguínea por um valor exatamente igual. Então porque o glorioso atenolol não estava salvando mais vidas?

O resultado incomum suscitou um estudo subsequente, que comparou o atenolol ao consumo de pílulas de açúcar. A conclusão é que o atenolol não prevenia ataques cardíacos nem mortes, só abaixava a pressão do sangue. Em 2004, uma análise de testes clínicos — entre os quais oito exames controlados por randomização, somando mais de 24 mil pacientes — também concluiu que o atenolol não reduzia os ataques cardíacos ou mortes em comparação com nenhum tratamento. A única diferença é que os pacientes que recebiam atenolol tinham menos pressão sanguínea quando morriam.

“Sim, é possível alterar um número”, diz John Mandrola, “mas isso não necessariamente se traduz em resultados melhores”. Mandrola é eletrofisiologista cardíaco em Louisville e defensor de mudanças no estilo de vida para tratar a saúde. Para ele, é difícil convencer os pacientes “quando eles tomam uma pílula, veem uma melhora nos seus índices e pensam que sua saúde melhorou.”

O panorama dos beta-bloqueadores é complicado. Alguns beta-bloqueadores, por exemplo, têm uma comprovação clara de que reduzem os riscos de derrame ou ataque cardíaco em pacientes com doenças do coração. Mas a revisão mais recente sobre beta-bloqueadores feita pela Cochrane Collaboration — um grupo de pesquisadores independente e internacional, que busca sintetizar as melhores pesquisas disponíveis — considera que esses medicamentos “não são recomendáveis como primeira linha de tratamento quando comparados ao placebo devido ao seu efeito modesto sobre o derrame e por não ter nenhuma redução significativa na mortalidade ou na doença coronária do coração”.

No Lancet, pesquisadores questionam o uso do atenolol como padrão de comparação com outras drogas, acrescentando que o “derrame também foi mais frequente no tratamento com atenolol” do que com outras terapias. Entretanto, segundo um estudo de 2012 publicado no Journal of the American Medical Association, mais de 33,8 milhões de prescrições para atenolol foram emitidas [nos EUA], a um custo de mais de 260 milhões de dólares.

Existe alguma evidência de que o atenolol pode reduzir o risco de derrame em pacientes mais jovens, mas também há indícios de que ele aumenta esse mesmo risco nos pacientes mais velhos — e são os idosos que estão recebendo receitas em massa. Numa consulta da ProPublica ao banco de dados de prescrições do Medicare [programa de saúde popular do governo americano] em 2014 o atenolol foi prescrito para mais de 2,6 milhões de beneficiários do programa, sendo a 31ª. droga mais receitada entre 3362.

Só um doutor, Chinh Huynh, médico de família em Westminster (Califórnia), escreveu mais de 1100 receitas para atenolol para pacientes com mais de 65 anos em 2014 — o que o torna um dos prescritores mais prolíficos do país. Procurado em seu consultório, o Huynh declarou que o atenolol “é muito comum para hipertensão, não sou só eu”. Questionado porque ele continua a receitar esse remédio com tanta frequência mesmo à luz de tantas pesquisas controladas e randomizadas mostrando sua ineficácia, Huynh disse que lê “um monte de revistas médicas, mas não tinha visto isso”. Ele acrescenta que seus pacientes “vão muito bem, obrigado” e pediu que os artigos científicos relevantes fossem enviados a ele via fax.

Para Brown, o cardiologista da Washington University, quando os médicos terminam os estudos, “vira um trabalho, onde tentam ganhar dinheiro e não necessariamente se manter atualizados. Assim, as maiores mudanças tendem a ser geracionais.” Dados compilados pelo QuintilesIMS, que provê serviços de tecnologia da informação para a indústria de saúde, mostram que as prescrições de atenolol vem caindo e tiveram uma queda de 3 milhões por ano no último quinquênio. Nesse ritmo, o atenolol vai deixar de ser prescrito quase duas décadas após pesquisas de ponta mostrarem que ele simplesmente não funciona.

SE O SISTEMA cardiovascular não é uma pia de cozinha, o musculoesquelético tampouco é um guindaste. As relações de causa e efeito são frequentemente ilusórias. Pense na mais amaldiçoadas das juntas, o joelho. Um procedimento conhecido como APM (meniscectomia astroscópica parcial, na sigla em inglês) é feito cerca de meio milhão de vezes por ano, a um custo de uns US$ 4 bilhões.

O menisco é um pedaço de cartilagem fibrosa em forma de lua crescente que ajuda a estabilizar e amortecer a articulação do joelho. Com o envelhecimento, as pessoas sofrem desgastes no menisco que nem sempre se devem a lesões agudas. A APM serve para aliviar a dor genicular porque limpa o menisco, raspando a cartilagem excedente até a forma crescente original. Não é uma cirurgia rara: nos últimos anos tem sido um dos procedimentos cirúrgicos mais populares do Ocidente. Só que um crescente conjunto de evidências diz que ela não funciona para as variedades mais comuns de dor no joelho.

Assim, ocorre uma espécie de reflexo oculostenótico com o joelho: o paciente aparece com dor e uma ressonância magnética mostra um menisco desgastado. Naturalmente, o paciente quer uma solução e o cirurgião resolve com uma operação e um encaminhamento para a fisioterapia. E os pacientes melhoram, ainda que não necessariamente pela cirurgia.

Em 2013 um estudo com pacientes acima de 45 anos foi conduzido em sete hospitais dos EUA e descobriu que a APM seguida de fisioterapia produzia os mesmos resultados que apenas a fisioterapia para a maior parte dos pacientes. Outro estudo, realizado em dois hospitais públicos e duas clínicas fisioterapêuticas, achou o mesmo resultado após dois anos de tratamento.

Na Finlândia, um estudo fora do comum em cinco clínicas ortopédicas comparou a APM com uma “pseudo-cirurgia”. Nesse caso, os cirurgiões levavam os pacientes com dores de joelho às salas de operação, faziam incisões, fingiam uma cirurgia completa e suturavam o ferimento. Nem os pacientes nem os médicos sabiam quem havia passado por cirurgias pra valer e quem havia ganhado uma cicatriz por nada [N. do T.: isso é exemplo de um estudo duplo-cego, onde nem pesquisadores nem pesquisados sabem quem está no grupo de controle e quem está no procedimento sob exame]. Um ano mais tarde, não havia como distinguir os dois grupos: a pseudo-cirurgia funcionou tão bem quanto a de verdade. A diferença é que, a longo prazo, a cirurgia verdadeira pode aumentar o risco de osteoartrite no joelho. Além disso, a cirurgia é cara e, embora a APM seja extremamente segura, o combo de cirurgia com fisioterapia tem maiores chances de efeitos colaterais do que apenas a fisioterapia.

Pelo menos 1/3 dos adultos com mais de 50 anos vão apresentar desgaste meniscal numa ressonância magnética. Mas desses, 2/3 não vão ter sintoma algum — e para os que realmente sofrem com dor, deve ser por osteoartrite, não pelo menisco desgastado. Essas pessoas nunca saberiam que têm um desgaste no joelho se não fosse pelo exame de imagem. Mas depois desse exame, elas podem acabar passando por uma cirurgia para um problema que elas não têm.

Por razões óbvias, é difícil fazer uma pesquisa à base de placebo com cirurgias. A questão principal permanece: por que, mesmo diante de evidências de alto nível que contradizem uma prática comum, pouca coisa muda? Pra começar, os resultados desses estudos não provam que a operação seja inútil — mas mostram que ela é feita numa imensa quantidade de pessoas, que provavelmente não terão benefício algum.

Lesões no menisco são tão diversificadas quanto as pessoas nas quais ocorrem e mesmo as pesquisas de maior escala podem não captar todas as variações observadas pelos cirurgiões. No mundo real, existem resultados convincentes de que a cirurgia ajuda certos pacientes. “Acho que é uma intervenção extremamente útil nos casos em que o paciente não sofre da dor constante da artrite e sim de dores agudas e intermitentes, com bloqueio de movimento”, diz John Christoforetti, importante cirurgião-ortopédico de Pittsburgh. “Mas quando você fala do americano médio, sedentário, que sofre de uma dor que aparece gradualmente e continua capaz de se movimentar, muitos apresentam uma lesão meniscal mas não deveriam ter a cirurgia como opção primária de tratamento”.

Entretanto essa operação — e outras, de uso mais restrito — continua comum até pra quem não precisa. Os próprios pacientes são parte do problema. Segundo cirurgiões que entrevistei, muitos pacientes que recebem querem ou até exigem passar por uma cirurgia. E eles vão batendo de porta em porta até achar um médico disposto a operá-los. Christoforetti lembra de uma paciente que viajou uma longa distância para se consultar com ele, mas “absolutamente não era candidata a uma operação”.

Apesar do incentivo financeiro para operar, ele explicou à paciente e ao marido dela que a cirurgia não ajudaria. “Ela saiu com um sorriso”, recorda Christoforetti, “mas tão logo eles saíram, recebi uma notificação de que alguém havia nos avaliado [num site]. Era o marido dela, que passou a consulta inteira digitando no celular e deu uma nota de uma estrela, dizendo que eu era o tipo de cara tão insensível que ele não me entregaria nem o cachorro pra operar. Eles estavam online e acreditavam firmemente que ela precisava dessa operação e que eu era o cara que deveria fazê-la.”

Então, o que os cirurgiões fazem? Christoforetti explica a atitude da maior parte de seus colegas, que dizem: “olha, se livre dessa dor de cabeça e faça logo a cirurgia. Ninguém aqui vai ficar bravo contigo por fazer a cirurgia. Sua conta bancária não vai te matar por isso. Então simplesmente faça a cirurgia”.

TESTES RANDOMIZADOS e controlados por placebo são o padrão-ouro da pesquisa médica. Mas nem todos os RCTs [sigla em inglês desse tipo de estudo] nascem iguais. Mesmo dentro de um padrão de ouro, práticas bem intencionadas podem jogar um estudo na lama. Isso acontece especialmente com os testes do tipo crossover, que tornaram-se populares nas investigações de drogas oncológicas.

Numa pesquisa de câncer, um teste crossover significa que os pacientes no grupo de controle, que começam recebendo um placebo, acabam recebendo a droga experimental durante o estudo no caso da progressão da doença. Assim, eles deixam de fazer parte do grupo de controle. O lado positivo de um teste de crossover é que ele permite que mais pessoas com condições graves tenham acesso a um medicamento experimental. O lado negativo é que há a possibilidade de que o estudo seja alterado de tal forma que a eficácia da droga em teste seja ofuscada.

Graças à força de um teste de crossover, em 2010 o Provenge foi a primeira vacina de câncer aprovada pelo FDA. Uma vacina anti-câncer é uma forma de imunoterapia, isto é, o sistema imune do próprio paciente é estimulado por uma droga a atacar células cancerígenas. Dada a extraordinária dificuldade de tratar metástases e as altas expectativas criadas após o fracasso devastador de outras vacinas, a aprovação do Provenge foi recebia com entusiasmo e êxtase. Um artigo anunciou-o como “o portal para um paradigma animador”. No entanto, o Provenge não impedia nenhum crescimento tumoral e é difícil saber se ele realmente funciona.

O Provenge foi aprovado com base num “estudo IMPACT”, uma pesquisa com controle por placebo e randomizada que, inicialmente, deveria verificar se o medicamento poderia impedir a progressão de câncer da próstata — não impedia. Três meses e meio após o começo do estudo, os pacientes de câncer que receberam Provenge e os que receberam um placebo haviam progredido de modo similar. Entretanto, os pacientes que receberam Provenge acabaram tento uma sobrevida média quatro meses mais longa do que os do placebo. Porém, devido ao modo como o IMPACT foi desenvolvido, não dá pra dizer que o Provenge foi o verdadeiro responsável por essa taxa de sobrevida.

Como o Provenge não barrava o crescimento tumoral, muitos pacientes que começaram o estudo com esse remédio também receberam Docetaxel, uma droga quimioterápica que é um tratamento bem-estabelecido para câncer da próstata avançado. Os cânceres dos pacientes no placebo também avançaram, então eles “cruzaram a linha” [crossover em inglês, daí o nome] e receberam Provenge após certo prazo. Como a progressão deles continuava, muitos acabaram, depois de outro prazo, por receber Docetaxel. No fim, poucos pacientes do grupo que começou sob placebo receberam Docetaxel e, quando receberam, foi mais tarde. Por isso, o Provenge pode ter funcionado mas é impossível ter certeza: o ligeiro aumento na sobrevivência de um grupo seria porque ele recebeu Provenge mais cedo ou porque o outro grupo teve Docetaxel mais tarde?

Um ano após a aprovação do Provenge, a Agência de Pesquisa e Qualidade em Saúde, ligada ao governo federal [dos EUA; AHRQ, na sigla em inglês], divulgou um relatório de “avaliação de tecnologia”, examinando todas as evidências sobre a eficácia do Provenge. O relatório afirma que é “moderada” a evidência de que o Provenge trata o câncer efetivamente, mas ainda destaca o fato de que mais pacientes que receberam o Provenge no início dos testes também receberam mais doses de quimioterapia e mais cedo. A conclusão, segundo o relatório, é que o efeito do Provenge é aparente “apenas no contexto de uma quantidade substancial de um eventual tratamento quimioterápico”. Em outras palavras, não fica claro quais os efeitos do teste foram do Provenge e quais foram da quimioterapia.

“As pessoas que foram expostas ao Docetaxel o foram porque sua doença estava progredindo, o que já quebra a randomização”, explica Elise Berliner, diretora do Programa de Avaliação de Tecnologia da AHRQ. Prasad, o oncologista que defende padrões mais rigorosos para a aprovação baseada em evidências, foi menos diplomático: “Se o tratamento fosse a base de Pixy Stix [bala em forma de canudo, com sabor agridoce], o efeito seria similar. Um grupo recebe Pixy Stix e, à medida que seu caso progride, passa para o tratamento real.”

O problema não é o Provenge em si, mas o modo específico com que ganhou a aprovação do FDA. É frequente a aprovação para um uso com base em testes clínicos incapazes de comprovar seu funcionamento. “Quase todos os testes clínicos têm problemas assim”, diz Berliner, “e é muito difícil fazer testes controlados e randomizados após a aprovação das drogas.”

Segundo um novo paper que saiu no Journal of the American Medical Association Oncology, mesmo quando um medicamento oncológico funciona claramente nos testes, ele geralmente não funciona ou funciona bem menos no mundo real — talvez porque os sujeitos testados não são representativos dos pacientes típicos. Berliner espera expandir e melhorar os registros que rastreiam grandes populações de pacientes no mundo real, que podem ser usados como fonte de informação complementar. “Faz 15 anos que estou aqui produzindo esses relatórios”, diz ela. “E estou ficando frustrada.”

IDEALMENTE, AS PESQUISAS que sugerem que uma terapia funciona e as que indicam que não funcionam deveriam receber um grau de atenção equivalente ao seu rigor científico, sobretudo nos estágios iniciais da exploração. Mas as revistas científicas, os cientistas e a mídia, todo mundo prefere as pesquisas que concluem que aquele tratamento novo e promissor realmente funciona.

Um 2012, uma equipe de cientistas da Universidade da Califória em Los Angeles publicou um artigo no proeminente New England Journal of Medicine (NEJM), a revista médica mais citada do mundo. A pesquisa demonstrava que a estimulação cerebral profunda — aplicada através de eletrodos implantados no cérebro de pacientes com mal de Parkinson — melhorava, e muito, a memória espacial.

Compreensivelmente, a amostra era minúscula — apenas sete sujeitos — pois há pouquíssimas pessoas com eletrodos implantados no cérebro. A descoberta foi coberta em jornais como o New York Times (sob o título “Estudo explora estimulação elétrica como auxílio à memória”), The Wall Street Journal (“Memória ganha impulso em pesquisa cerebral”) e em sites como LiveScience (“Onde foi que estacionei? Tratamento cerebral pode melhorar a memória espacial”). O próprio NEJM publicou, na mesma edição, um editorial destacando que o estudo era “preliminar, baseado em amostras pequenas e que necessita de replicação”, mas era digno de ser seguido por “estudos bem-projetados”.

Dado o potencial impacto dessa descoberta, uma equipe liderada por Joshua Jacobs — professor de Engenharia Biomédica na Universidade Columbia — buscou replicar o estudo inicial com uma amostra maior. “Se funcionasse mesmo, seria uma abordagem muito importante, que poderia ajudar as pessoas”, disse Jacobs. Sua pesquisa levou vários anos e testou 49 indivíduos para entregar um resultado estatisticamente confiável.

Os cientistas ficaram meio desorientados: a estimulação cerebral profunda, na verdade, piorava a memória espacial. Era um resultado desapontador, mas mostrava que a estimulação cerebral era capaz de afetar a memória de alguma forma — um passo importante para compreender como utilizar essa tecnologia. Assim, eles sentiram-se na obrigação de submeter seus resultados à NEJM. Afinal, é desse jeito que a ciência deveria funcionar pois deixar de publicar resultados negativos é visto como uma fonte de desinformação científica.

A replicação de resultados científicos foi cause-célèbre no ano passado, graças à crescente percepção de que os pesquisadores estão sendo incapazes de repetir muitos resultados de alto nível. Há 10 anos, Ioannidis, da Stanford, publicou um paper alertando a comunidade científica: “A maioria das descobertas publicadas são falsas” (e em 2012, ele foi co-autor de um paper demonstrando que quase tudo em sua geladeira poderia tanto causar quanto prevenir câncer — menos o bacon, que aparentemente só causa câncer). A presciência de Ioannidis levou seu artigo a ser citado em outros artigos científicos mais de 800 vezes só em 2016. O motivo é que a sensibilidade da comunidade científica aos problemas de replicação está num ápice histórico. Por isso, Jacobs e seus colaboradores ficaram surpresos quando o NEJM rejeitou seu paper.

Um dos revisores (o processo de revisão por pares é feito anonimamente) que o rejeitou deu o seguinte feedback: “Seria muito mais interessante ter encontrado um conjunto de parâmetros de estimulação que iriam melhorar a memória”. Em outras palavras, o artigo seria melhor se, como o estudo original, tivesse encontrado um resultado positivo em vez de negativo (na primavera passada, a ProPublica escreveu sobre as pesadas críticas à relutância do NEJM em publicar pesquisas que questionam descobertas anteriores em suas páginas).

Outro revisor notou que, na maioria dos indivíduos, os eletrodos da replicação foram colocados de modo diferente do estudo original. Diante disso, Jacobs e seus co-autores analisaram resultados apenas dos pacientes cujos eletrodos encontravam-se na exata posição do estudo original — e os resultados não mudaram. Três autores do grupo replicaram à NEJM, destacando erros nos comentários dos revisores e receberam uma notinha declarando que a rejeição do artigo “não havia se baseado nos comentários específicos dos revisores que vocês discutem em sua carta-resposta.”

Além disso, a revista alegou que recebia mais artigos do que conseguia publicar. Isso é até verdade, especialmente para as publicações mais importantes. Em seguida, a Neuron, uma das mais renomadas revistas especializadas em neurociência, aceitou rapidamente o artigo, publicando-o no mês passado (diferente do original, essa publicação não virou atração de um circo midiático e não recebeu quase nenhuma cobertura jornalística, com exceção do The Wall Street Journal).

Na mesma semana em que o paper saiu na Neuron, a Universidade Columbia realizou um simpósio para discutir a questão das replicações e seus problemas. Entre os oradores estavam o presidente da Academia Nacional de Ciências [dos EUA] e o diretor do Departamento de Integridade em Pesquisa dos Estados Unidos — e também Jeffrey Drazen, editor-chefe do NEJM. Jacobs estava presente na audiência.

Ao final, na sessão de perguntas e respostas, Jacobs procurou um dos microfones da plateia e perguntou a Drazen se as revistas científicas não teriam a obrigação de publicar tentativas de replicação bem-feitas de estudos de ponta, revelando que a sua equipe havia sido rejeitada pelo NEJM. Drazen declinou discutir o paper de Jacobs, mas disse que, “como editores, estamos impotentes” e que o ônus deveria ficar entre os pesquisadores da replicação (ou do “reclamante”, como o chamou) “e o autor [da pesquisa original], que devem trabalhar em conjunto rumo à verdade. Não estamos dizendo quem está certo e quem está errado; tentamos descobrir o que precisamos saber. Veritas, para o avanço da saúde humana. Simples assim.”

Jacobs não achou a resposta tão simples; achou-a estranha. Num painel sobre transparência e replicação, Drazen parecia dizer que as revistas científicas — principais meios para disseminar informação e fórum primário para a replicação na ciência — podem fazer pouco e que os “reclamantes” deveriam se entender com os “réus”. Muitos médicos, cientistas, defensores de pacientes e jornalistas científicos buscam novos desenvolvimentos através de publicações de primeira, como o NEJM. Mas quanto menor o desafio público a uma descoberta científica fragilizada, mais chances ela tem de cair no conhecimento comum.

A MIRÍADE DE inovações médicas claramente facilita e salva vidas, mas mesmo enquanto os cientistas ampliam as fronteiras da medicina, o National Center for Health Statistics divulgou no mês passado [jan/2017] que a expectativa de vida [americana] caiu ligeiramente. Entretanto, existe algo que tem o poder assegurado de impulsionar a expectativa de vida: iniciativas sustentadas de saúde pública.

Nesse sentido, a medicina pode ser como os vinhos: às vezes o alto preço pode ser um falso sinal de qualidade. A longo prazo, mesmo os maiores triunfos da medicina moderna, como a vacina da pólio, tiveram menos impacto na saúde humana quando comparados às consequências de melhores técnicas de higiene e conservação dos alimentos.

Graças ao tabagismo e aos maus hábitos, o câncer pulmonar — que não matava quase ninguém nos EUA do começo do século XX — é atualmente o câncer que mais mata. Felizmente, a pressão pública para combater o tabagismo tem colocado as mortes por câncer no pulmão em declínio acentuado após um pico nos anos 1990. As mortes por câncer pulmonar devem continuar a cair, já que estão intimamente correlacionadas com a frequência do tabagismo. Só que essa redução vem com um atraso de décadas: o câncer de pulmão passa a declinar 20 anos após a queda nas taxas de tabagismo.

Os problemas de saúde que mais afetam o público americano são, em grande parte, motivados por hábitos e estilos de vida — fumo, má alimentação, falta de atividade física, etc. Em novembro, uma equipe liderada pelos pesquisadores do Massachusetts General Hospital reuniu dados de dezenas de milhares de pessoas, colhidos em quatro estudos sobre saúde distintos, feitos entre 1987 e 2008. Essa equipe descobriu que mudanças simples e moderadas no estilo de vida reduzem drasticamente o risco de doenças cardíacas, principal causa mortis do país, responsável por um quarto dos falecimentos.

Pessoas classificadas no grupo de alto risco genético de doença cardíaca cortavam pela metade seus riscos se cumpriam três dos quatro critérios a seguir: (1) não fumar (mesmo que já tivessem fumado); (2) não ser obeso (ainda que pudessem ter algum sobrepeso); (3) praticar exercício uma vez por semana e (4) ingerir mais comida real que processada. Estar enquadrado em duas dessas categorias já reduz bastante o risco. Em agosto [de 2016], a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer divulgou relatório onde concluía que a obesidade tem ligação com uma variedade extraordinária de cânceres, de tireoide e ovário a fígado e cólon.

Ao mesmo tempo, os pacientes e até os próprios médicos muitas vezes não se sentem seguros sobre o grau de eficácia dos tratamentos ou como mensurar e expressar tal coisa. Graham Walker, médico de emergência em San Francisco, colabora com um site mantido por médicos voluntários, o The NNT, onde ajuda médicos e pacientes a entender qual o impacto dos medicamentos — muitas vezes, nenhum.

“NNT” é a abreviação de “número necessário para tratar”, tal como em “quantos pacientes precisam ser tratados para que a droga ou procedimento tenha o benefício esperado para um único paciente?”. Em quase toda a mídia popular, os efeitos de um remédio são apresentados pelo risco de redução relativa [vide esse exemplo de cobertura da CNN]. Para entender isso, vamos usar uma doença fictícia — o mal de Hogwarts — e digamos que uma reportagem afirme que determinada droga reduz suas chances de morrer por mal de Hogwarts em 20%.

Parece muito bom, mas isso significa que se normalmente morrem 10 pessoas a cada 1000 que contraem o mal de Hogwarts, e todos os pacientes passam a receber essa medicação, 8 em 1000 ainda vão morrer por Hogwarts. Assim, para cada 500 pessoas que recebem o medicamento, um será salvo da doença de Hogwarts — o que quer dizer que essa substância tem um NNT de 500. Isso ainda pode parecer bom, mas se o NNH — número necessário para prejudicar, na sigla em inglês — for 20 e o efeito colateral for severo, para cada pessoa salva, 25 pacientes sofreriam sérios danos. De repente, o negócio parece ser sombrio demais.

Agora, vamos considerar uma droga bastante real e conhecida, a aspirina. Para as mulheres idosas que a tomam diariamente durante um ano para prevenir o primeiro ataque cardíaco, a aspirina tem um NNT estimado de 872 e um NNH de 436. Isso significa que se 1000 velhinhas tomam aspirina todo dia ao longo de uma década, 11 vão evitar um ataque cardíaco. Ao mesmo tempo, o dobro vai sofrer uma grave hemorragia gastrointestinal que não aconteceria sem o uso da aspirina.

Como acontece com a maioria dos remédios, a aspirina não vai causar nada particularmente bom ou mau para a maioria das pessoas que a consomem. Esse é o problema com os remédios na sua caixinha: é significativamente improvável que ele lhe ajude ou lhe prejudique. “Muitas pessoas se debatem com a noção de que medicamentos dependem de probabilidade”, afirma Aron Sousa, reitor associado da Universidade Estadual de Michigan. E a métrica mais comum, o risco relativo? Sousa a considera horrível: “não são apenas as farmacêuticas que a usam, os médicos também. Eles querem que seu trabalho pareça mais útil, acreditam piamente que os pacientes precisam tomar [aquele remédio] e consideram o risco relativo mais convincente que o NNT. O risco relativo é só outra maneira de mentir.”

Mesmo os remédios que funcionam extraordinariamente bem podem parecer menos impressionantes quando vistos pelo NNT. Antibióticos para uma sinusite resolvem os sintomas mais depressa em 1 de cada 15 pessoas que os recebem, sendo que 1 em 8 vai experimentar efeitos colaterais. Uma meta-análise de remédios para dormir em adultos idosos descobriu que de 13 pessoas que tomam um sedativo como o Ambien, só uma teve o sono melhorado — em média, cerca de 25 minutos por noite. Enquanto isso, 1 em 6 passavam por um efeito colateral, sendo o mais grave o risco elevado de acidentes de trânsito.

“Temos essa dissonância cognitiva, quase uma depressão profissional”, diz Walker. “Você pensa: ‘meu Deus, sou médico, tenho que dar todas essas drogas porque elas ajudam as pessoas’. Eu quase me tornei fatalista, principalmente trabalhando com emergências.” Walker argumenta que, se realmente quisermos um grande impacto numa grande população, “precisamos de muito mais dietas, exercícios e coisas de estilo de vida. De longe, essas eram as coisas mais difíceis pra eu entender conceitualmente antes de começar a encarar os estudos de forma crítica.”

Os historiadores da saúde pública sabem que o grosso dos avanços em longevidade nos últimos dois séculos veio de inovações nas áreas sanitária, alimentícia e higiênica. A chamada Primeira Revolução da Saúde Pública (1880–1920) resultou no maior aumento de longevidade, mesmo antecedendo coisas como antibióticos e cirurgias modernas.

Nos anos 1990, o comitê diretor da Sociedade Americana de Câncer lançou o desafio de cortar os índices de doenças oncológicas após o pico de 1990. Desde então, de modo encorajador, as mortes por todos os tipos de câncer estão em queda nos Estados Unidos. Ainda assim, falta um longo caminho para retornar aos índices dos anos 1930. Claro que as inovações da medicina ajudaram, mas a saúde pública tem sido geralmente o motor dessa mudança social, coisa em que muita gente não acredita.

Em 2014, dois pesquisadores da Bringham Young University fizeram entrevistas com americanos e perceberam que os adultos típicos atribuem uns 80% do aumento na expectativa de vida desde meados do século XIX à medicina moderna. “O público sobrestima bastante o grau do aumento da longevidade que deveria ser atribuído aos cuidados médicos”, escreveram esses pesquisadores. “e muitos praticamente ignoram o papel crítico desempenhado pela saúde pública e a melhoria nas condições sociais determinantes.” Para eles, essa percepção equivocada pode dificultar o financiamento da saúde pública e ainda “pode contribuir o inchaço do setor médico da economia, impedindo esforços para reduzir os gastos com planos de saúde.”

É uma conclusão pesada, mas lembre-se dos US$ 6,3 bilhões liberados sob aplausos no Congresso pelo 21st Century Cures Act. Quem pode discordar de uma lei criada, em parte, para impulsionar a pesquisa sobre câncer? Entre outros, os chefes da Academia Americana de Médicos de Família e da Associação Americana de Saúde Pública.

Eles se opõem à nova lei porque ela vai tirar 3,5 bilhões de dólares de programas de saúde pública para financiar pesquisas em novas tecnologias e drogas, incluindo a “bala de prata do câncer” do ex-vice-presidente Joe Biden. Essa nova lei extrai dinheiro de programas — como campanhas de vacinação e anti-tabagistas — que comprovadamente previnem doenças para aplicar em trabalhos que poderiam, algum dia, tratar doenças. A legislação também permitirá que o FDA aprove novos usos para medicamentos com base em estudos de observação ou até “revisões sumárias” de dados apresentados pelas companhias farmacêuticas. Prasad tem sido um crítico enérgico e barulhento da medida, tuitando que “as únicas pessoas que não gostam [dessa] lei são as que estudam a aprovação e segurança de drogas e as que não são pagas pelas Farmacêuticas.”

Pode ser um exagero de tuiteiro, claro. De qualquer forma, a pesquisa médica é, por natureza, uma busca progressiva por conhecimento. Inicialmente, exploram-se avenidas que não tardam a virar becos sem saída — o que é a regra e não exceção no processo. Pode até ser que a nova lei, de fato, acelere a chegada de curas que sejam eficazes e duradouras. Mas é bom lembrar uma das lições da medicina moderna, que deveria estar bem clara: curas ineficazes também podem ter vida longa.

Jornalista investigativo com especialização em temas científicos, DAVID EPSTEIN começou a carreira na Sports Illustrated, onde revelou o escândalo de doping de uma estrela do baseball em 2003. Dez anos mais tarde, escreveu The Sports Gene, livro sobre a ciência por trás de desempenhos esportivos extraordinários. Sua obra mais recente é Range: Why Generalists Triumph in a Specialized World [Escopo: Por que os generalistas triunfam num mundo especializado]. Atualmente na agência investigativa americana ProPublica, Epstein colabora esporadicamente com a revista Atlantic desde 2013. Originalmente intitulada “Quando as evidências dizem não, mas os médicos dizem sim”, a grande reportagem que traduzimos aqui foi publicada na Atlantic em 22/02/2017.

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Renato Pincelli
Renato Pincelli

Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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