Enchendo de cores: uma pré-história dos livros de colorir para adultos

A onda mais forte já passou, mas o mar de livros de colorir pra gente grande está longe de acabar. Para satirizar ou relaxar, esse tipo de publicação já existe há séculos.

Renato Pincelli
10 min readApr 9, 2019
Sem cores: retratos dos artistas envolvidos na produção de “De historia stirpium commentarii insignes” (1542). [Fonte]

Por Melissa N. Morris & Zach Carmichael, na The Public Domain Review (fevereiro de 2019). Tradução de Renato Pincelli.

PARA MUITOS EDITORES ao redor do mundo o ano de 2015 foi, em termos financeiros, excelente. Foi um empurrão bem-vindo numa década de incertezas. Mas esse impulso veio de uma fonte surpreendente: livros de colorir pra gente grande. Que estranhos ventos levaram multidões de adultos a buscar seus lápis de cor depois de tanto tempo? Qualquer que seja o motivo, as vendas decolaram: a [editora norte-americana] Nielsen registrou a venda de 12 milhões de exemplares nesta categoria em 2015, um estouro em comparação com um único milhão no ano anterior. Em fevereiro de 2016, com a febre ainda em alta, a New York Academy of Medicine Library [Biblioteca da Academia de Medicina de Nova York ou NYAML] lançou uma iniciativa chamada Color Our Collections Week.

Três anos mais tarde, a campanha continua: na primeira semana de cada fevereiro essa e outras instituições acadêmicas liberam imagens de arquivo, coleções especiais e até livros inteiros em suas mídias sociais para que o público possa colorir. Embora essas obras estejam em domínio público, o que significa que (pelo menos nos EUA) podem incluir materiais publicados até 1924, as imagens destes livros de colorir geralmente foram feitas entre os séculos XV e XVIII. E são nestas imagens — publicadas bem antes do advento da impressão a cores — que podemos encontrar um precedente para essa modinha aparentemente moderna. Assim, iniciativas como a Color Our Collections Week, que à primeira vista parecem estar apenas seguindo o bonde dos adultos com lápis de cor, têm também um foco naturalmente histórico e lançam luzes (e cores) sobre uma tradição bastante antiga.

Para promover o evento do ano passado, a NYAML escolheu uma imagem do monumental livro de botânica de Leonhart Fuchs, De historia stirpium comentarii insignes [Comentários Notáveis sobre a História das Plantas] (1542). No Twitter, um arquivista da Coleção de História da Ciência da Universidade de Oklahoma chamou a atenção para o fato de que seu exemplar desse livro já havia sido colorido manualmente.

Página colorida a mão no exemplar de “De historia stirpium commentarii insignes” da Univ. de Oklahoma. [Fonte]
A mesma página do mesmo livro, com outras cores, pode ser encontrada na Wellcome Library. [Fonte]

Deveríamos nos surpreender com isso? A Color Our Collections Week poderia dar a impressão de que essas imagens, de uma era pré-colorida, estariam finalmente ganhando cores — e, portanto, estariam sendo resgatadas de sua existência enfadonha e monocromática. Só que não: imagens impressas desde o início do período moderno eram coloridas à mão com frequência.

Tal prática remonta aos primórdios da imprensa, no século XV. Artistas, impressores, livreiros, consumidores e leitores: todo mundo aplicava cores em imagens que originalmente estavam em preto-e-branco. Antes da notável invenção dos tipos móveis por Gutemberg, tanto xilogravuras quanto águas-fortes [gravações à base de ácido sobre chapas metálicas] e suas imagens eram populares na Alemanha e em partes da Europa Central. Essas ilustrações eram usadas de muitas formas e muita gente fazia o mesmo que nós: enquadrava para colocar na parede de casa.

Com o surgimento do livro impresso, a tendência colorista continuou. Ilustrações coloridas eram comuns nos livros manuscritos medievais, principalmente nas intricadas obras com iluminuras produzidas pelas casas monásticas. Os primeiros livros impressos, nos séculos XV e XVI, costumavam imitar o design textual e as ilustrações daqueles livros manuscritos. Aliás, manuscritos iluminados e livros impressos não eram mutuamente excludentes: alguns livros impressos contém iluminuras, enquanto alguns manuscritos apresentam ilustrações impressas coladas em suas páginas. Parece óbvio que pelo menos alguns dos primeiros impressores e leitores tentaram criar ilustrações a cores para suas obras do único modo que sabiam fazer: colorindo os desenhos com suas próprias mãos.

Este herbário datado de 1493 mostra como os primeiros impressores se esforçavam para imitar o estilo dos manuscritos e suas iluminuras. [Fonte]

As imagens seguintes demonstram essa transição entre os períodos medieval e pré-moderno na produção de livros e o papel desempenhado pelas ilustrações coloridas. Ambas as ilustrações são de De Claris Mulieribus [Das Mulheres Ilustres], livro trecentista de Giovanni Bocaccio (o mesmo autor do Decameron). Tratava-se de uma compilação de biografias de mulheres, reais e míticas, famosas e infames. Mulieribus começou a circular como manuscrito e os exemplares existentes são ricamente ilustrados por retratos das mulheres representadas. Esse livro foi um dos primeiros a fazer a transição do formato manuscrito para impresso, levando junto suas ilustrações. Assim, para recriar a sensação das versões anteriores, era necessário ter ilustrações a cores. As imagens abaixo são, adequadamente, da pintora e escultora (e aparente criadora prolífica de auto-retratos) Iaia de Cyzicus, também conhecida como Marcia [de Varronis]. As primeiras duas imagens são de versões manuscritas do livro e mostram Marcia esculpindo e pintando.

Marcia esculpindo, em edição do “De Claris Mulieribus” do século XV [Fonte]
Nesta edição de 1403, Marcia é representada enquanto faz uma pintura. [Fonte]

As ilustrações seguintes vêm de edições impressas do livro. Na edição latina [abaixo], há apenas algumas letras iluminadas, enquanto a versão alemã [mais abaixo] é inteiramente colorida.

Edição latina de “Mulieribus” (1473) [Fonte]

A MAIORIA DAS ILUSTRAÇÕES encontradas nos livros dos primeiros dias da imprensa são xilogravuras e águas-fortes. As xilogravuras eram mais compatíveis com os tipos móveis porque ambas usavam o relevo para imprimir e assim os primeiros impressores podiam imprimir tanto texto quanto ilustração.

Por causa do processo de escavação [da madeira] e sua menor durabilidade, as xilogravuras têm designs mais simples, com menos sombreamento. São, portanto, ótimas para páginas que podem ser coloridas — e a Color Our Collections frequentemente escolhe esse tipo de imagem. Além disso, a historiadora da arte Susan Dackerman afirma que elas eram feitas para serem coloridas. Muitas dessas ilustrações a cores eram criadas na própria oficina de impressão, como uma colaboração entre gravador, impressor e um colorista. Segundo Dackerman, a “vasta maioria” das xilogravuras do século XV foram coloridas manualmente e foram feitas às dezenas de milhares.

Algumas imagens, como uma xilogravura alemã do Cristo crucificado (séc. XV, abaixo), só ficam completas quando coloridas. Nesse caso, os anjos que suportam a taça para pegar o sangue precisam ser acrescentados com tinta. A National Gallery of Art [do Reino Unido] possui diversos exemplares dessa xilogravura, cada qual com uma coloração diferente. Algumas foram deixadas em branco e poucas tiveram apenas o acréscimo de sangue para completar a imagem. Entre as que foram mais coloridas, podemos observar uma espécie de licença artística.

“Cristo na Cruz com Anjos” (1481). Repare que o sangue é o único detalhe a cores. [Fonte]

De acordo com Dackerman, os historiadores e colecionadores de arte do século XX desprezaram essas cores, considerando-as pouco mais que um meio de esconder as falhas de xilogravuras e águas-fortes mal-feitas. Gravuras bem-feitas, diziam, não necessitariam de cor alguma. Essa linha de argumentação remonta aos debates que surgiram durante o Renascimento italiano, sobre o que seria mais importante: o desenho ou a cor (disegno/colore).

Feita alguns anos mais tarde, por volta de 1490, esta versão do “Cristo na Cruz com Anjos” traz mais detalhes e cores em todos os seus elementos. [Fonte]

Em muitas dessas imagens, a tinta parece ter sido aplicada apressadamente. Essa colorização acelerada era mais porque o artista tinha muitas cópias para pintar do que por falta de habilidade. Os artistas aplicavam tinta à mão-livre, com um pincel, mas às vezes faziam uso de um estêncil feito a partir de sobras de impressões para conseguir pintar mais rapidamente.

Idem, circa 1483. Note que embora as cores sejam mais fortes, não são tão detalhadas, o que pode indicar uma execução rápida. [Fonte]

Muitas outras obras eram colorizadas não por profissionais mas por seus leitores. Dentre os vários exemplos que encontramos, muitos vêm de ilustrações de obras botânicas e herbários coloridas à mão. Um exemplar do Herball de John Gerard (1636), por exemplo, tem apenas uma seleção de imagens coloridas — o que sugere que foi o leitor que as pintou, talvez como modo de registrar as plantas que ele ou ela viu pessoalmente. A botânica e a pintura eram os passatempos preferidos dos cavalheiros e das damas da nobreza dessa época. Assim, não surpreende que algumas dessas pessoas fizessem as duas coisas ao mesmo tempo.

Embora os editores pudessem esperar que essas imagens monocromáticas fossem coloridas por alguns leitores, foi só no século XVIII que a prática foi formalizada com os primeiros livros feitos como propósito explícito de colorir. Mais uma vez, a ligação se dá entre as obras de botânica e pintura. The Florist, de Robert Sayer (Londres, 1760), foi um dos primeiros livros onde o autor indicava claramente aos leitores que esperava que suas imagens fossem colorizadas. Com desenhos de vários tipos de flores, esse livro dá aos seus leitores (presumivelmente) adultos instruções em detalhes sobre a mistura de tintas e a escolha de tons (entre os quais um curioso “marrom cálculo-renal”).

Os cravos em “The herball, or, generall historie of plants”, de Gerard (1636). A planta colorida provavelmente foi observada de perto pelo dono deste exemplar. [Fonte]

Obras de botânica eram particularmente adequadas aos leitores que queriam interagir diretamente com um livro, pois ofereciam imagens de coisas que podiam ser observadas no mundo natural. Embora esse exemplar específico de The Florist tenha sido deixado em branco, seu proprietário usou o livro para para comprimir plantas de verdade entre suas páginas. Muitos livros botânicos eram pesadamente anotados, às vezes até por sucessivos proprietários, e é comum encontrar plantas comprimidas entre suas páginas.

Exemplo de Ilustração do The Florist [Fonte]
Em The Florist, havia uma seção dedicada a indicar como cada planta deveria ser colorida. [Fonte]

The Florist foi produzido para “uso & entretenimento de Damas e Cavalheiros”, mas mais tarde os livros de colorir foram criados com as crianças em mente. Por volta do século XIX, eles se tornaram cada vez mais populares. Apesar de ajudar a desenvolver as habilidades artísticas dos pequenos, a criatividade não era lá muito buscada. Em The Young Artist’s Coloring Guide [Guia de Colorir do Jovem Artista], série publicada nos anos 1850, uma versão completamente colorida acompanhava a imagem em branco, com o claro propósito de induzir a imitação.

Duas páginas do “The Young Artist’s Coloring Guide. №12” (c. 1850). [Fonte]

No Walter Crane’s Painting Book [Livro de Pintar de Walter Crane], publicado originalmente nos anos 1880, as ilustrações também são acompanhadas por versões a cores. No entanto, como se trata de uma obra de um dos maiores ilustradores do século XIX, o material é significativamente mais bonito e pode ter atraído tanto adultos quanto crianças.

Duas páginas do “Crane’s Painting Book” (1880). [Fonte]

Crane [1845–1915] não foi o único ilustrador famoso da época a emprestar seu nome para um livro desse gênero. Um ano antes saiu The “Little Folks” Painting Book [Livro de Pintar dos “Baixinhos”], publicado pelos Irmãos McLoughlin com ilustrações da notável artista Kate Greenaway [1846–1901]. Sem a orientação das cópias a cores, era um pouco menos didático do que o de Crane — mas ainda aconselhava as crianças a usar uma “seleção adequada de cores” e havia um frontispício pré-colorido, que podia funcionar como uma espécie de guia para o esquema de cores.

Duas versões distintas para a mesma página do “Little Folks” (1879) [Fonte]

Evidentemente, no caso desses exemplares vitorianos, bem como no antecedente do Florist, a colorização é a própria raison d’être do livro. Não se pode dizer o mesmo dos títulos pré-modernos. Isso não quer dizer que os leitores dos primórdios da modernidade não se divertissem quando queriam colorir suas xilogravuras e águas-fortes, com aquela mesma excitação de encher de cores o que estava em branco. Parece que os efeitos terapêuticos de tal atividade também não passaram despercebidos naqueles tempos. Em The Compleat Gentleman (1622), Henry Peachman, num capítulo onde encoraja a prática de colorir mapas impressos, fala de como “o exercício da mão instrui a mente com agilidade e reforça intensamente a memória mais do que qualquer coisa.”

Quanto à tendência recente dos livros de colorir para adultos, seus críticos têm atacado os adultos armados com seus marcadores, considerando-os infantilizados e alegam que o sucesso desse tipo de publicação seria resultado de um emburrecimento cultural. Pode até ser uma modinha, mas ela tem uma longa história. Por isso, da próxima vez que você comprar seu livro de colorir para adultos ou ficar animado com os lançamentos da Color Our Collections Week, saiba que você não está sendo infantil. Ao contrário: você está participando de uma longa tradição de imagens impressas feitas para serem coloridas.

MELISSA N. MORRIS (@ook_wow) é professora-assistente de História na Universidade de Wyoming. Ela tem pós-doutorado em História pela Columbia University, tendo escrito uma dissertação sobre como as plantas intermediaram as relações entre europeus e ameríndios no século XVII.

ZACH CARMICHAEL (@5__dinos) é especialista nível II em História Local e Genealogia na Carnegie Library em Muncie [Indiana, EUA]. Possui mestrado em História da Arte pela Miami University, com um estudo sobre as tavernas da Nova Inglaterra Colonial, e um Mestrado em Biblioteconomia pela Universidade de Pittsburgh, onde se especializou em Arquivística.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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