Eu não sou “abençoada”

Uma ateia explica que não precisa de Deus para sentir e demonstrar gratidão

Renato Pincelli
7 min readFeb 19, 2020

Por Jennifer Furner, no HuffPost Personal. Tradução de Renato Pincelli.

AS DOBRADIÇAS envelhecidas chiam enquanto abro a pesada porta de madeira. Atrás dela está uma sala cavernosa, com paredes feitas de pedra. Lá no fundo, uma lareira me olha com um porta-lenha de ferro fundido que me lembra uma aranha gigante. Ao seu redor, as pedras estão manchadas com cinza negra.

Está escuro aqui, as duas janelinhas hexagonais deixam apenas uma fração de luz entrar nesse dia relativamente brilhante de novembro. Um cálice repousa em cada peitoril e algumas pedras ressaltam-se da parede. Nelas, há resquícios de velas.

Embora tenha um ar vagamente druida, essa capela lembra muito a igreja da religião organizada da qual saí há muitos anos. Eu vim aqui para agradecer, mas a capela pede-me para me ajoelhar, rezar, acender uma vela, coisas que não me parecem mais autênticas. Fora da religião, como alguém pode dar graças?

Eu dou graças aos meus amigos, à família, aos desconhecidos que preparam meu café. Mas também sou grata a uma benevolência que não pode ser atribuída aos meros mortais — uma benevolência que, sinto, é maior do que somos. Claro, eu alcancei sozinha coisas que contribuíram para minha felicidade. Só que não sinto que devo receber todos os créditos por isso. Então, quem merece tal crédito? O universo? A energia ao meu redor? A Terra? Não está claro, mas o que está claro pra mim é que não se trata de uma divindade.

Eu vim à capela para dizer “obrigado” mas acabei por dizer “não, obrigado”. Fechei a porta e dei as costas à estrutura de pedra construída na encosta da colina. Essa capela é apenas um dos muitos marcos religiosos nos mais de 60 acres [cerca de 30 hectares] desta propriedade usada para retiros, onde passo alguns finais de semana por ano. Há estátuas de Maria ou José espiando entre os arbustos e também Budas sentados serenamente ao lado de bancos. Algumas cruzes parecem brotar no meio do mato, mas também há símbolos de outras fés e modos de pensar. Este lugar celebra o sagrado, seja lá como ele for para você.

Não tenho preferência nem pelos símbolos cristãos nem por aqueles de qualquer outro sistema de crença. Para desgosto de minha mãe, não acredito mais num ser superior. Ela é uma católica devota e buscou nos criar da mesma forma. Nossa comunidade católica foi uma parte importante da minha infância e, por essas lembranças, sempre serei grata.

Mas grata a quem? A ninguém, eu acho.

Se fosse criança, eu agradeceria a Deus. Colocaria os joelhos no chão, as mãos postas e olharia para o céu: “Obrigado por manter eu e minha família em segurança” era parte das minhas orações noturnas. Outra parte eram meus pedidos por alguma coisa: mais proteção, mais amor, mais paciência. “Por favor, Deus, me ajude a…” Se eu não recebesse o que pedia, sentia que era minha culpa. Eu havia falhado em agradar a Deus, não era digna de receber o que havia desejado.

Nos EUA, Deus e gratidão costumam ser inseparáveis. Quando as pessoas sentem-se gratas, costumam usar a palavra “blessed [abençoado/a]”. Deus as abençoou, abençoou suas vidas, as escolheu por qualquer razão divina para derramar Suas graças sobre elas. E, em troca, elas O adoram — a não ser que sejam ingratas e aí, dizem, merecem ir para o inferno.

Eu não uso mais a palavra “blessed”. Em vez disso, digo “lucky [afortunado, com boa sorte]”. Não que eu acredite realmente em sorte, só na arbitrariedade da minha boa fortuna. Minha vida é apenas um conjunto de circunstâncias vagas. Se qualquer dessas circunstâncias fosse modificada de qualquer jeito ao logo do caminho, minha vida seria diferente.

Eu prefiro esse ponto de vista pois não vou acreditar num Deus que escolhe quais pessoas vão sofrer. Se as pessoas sofrem é por causa das circunstâncias, do que acontece na vida. Quaisquer que sejam essas circunstâncias, elas podem ou não causar sofrimento. Similarmente, não acredito que gente boa ganha recompensa só por ser boa. Não acredito que os astros pop ganham prêmios por rezar mais que os outros. Não acredito que jogadores de futebol [americano] marquem touchdowns [isto é, gols] porque foram escolhidos por Deus.

Não acho que houve um dia em que acordei e decidi ser ateia. Isso aconteceu aos poucos, à medida que eu experimentava as desigualdades do mundo, que aprendia mais sobre ciência, que testemunhava mais sofrimento. Meus pais lamentam que, um dia, eu não poderei me juntar a eles no céu. Mas o único lugar que planejo ir agora é ao solo, onde meu corpo pode nutrir a terra e minha energia poderá dar vida a outra coisa.

Nós acreditamos naquilo que nos dá mais conforto. Para meus pais, a eternidade é um conforto. Pessoalmente, gosto da ideia de um fim mais definitivo. Isso dá mais sentido ao intervalo que tenho aqui na Terra, porque sei que só tenho um número limitado de batimentos cardíacos, o que me faz tentar ser a melhor pessoa que posso ser todos os dias. E, desde que abri mão de Deus, sinto-me mais satisfeita em ser a melhor pessoa que puder em vez de seguir as instruções alheias sobre a vida.

Agora, aos 30 e poucos anos, costumo refletir sobre quem me tornei e para onde vai a minha vida. Sou afortunada por ter privilégios suficientes para ter tempos e meios para visitar essa bela propriedade algumas vezes por ano a fim de limpar minha cabeça, escrever um pouco e estar em comunhão com a natureza.

Eu gostaria de mostrar minha apreciação por tudo que tenho e por todas as coisas que aprendi até aqui. Mas como? Para quem ou o quê dou minhas graças?

Enquanto caminho em meio à pradaria, longe da capela de pedras, considero o próximo feriado, dedicado à ação de graças. Penso na minha família — meu irmão, nossos cônjuges, nossos filhos e minha mãe — , que logo estará reunida em torno de uma mesa cheia de alimentos deleitosos.

Nossa criação católica nos inculcou desde a infância com a noção de que o jantar só começa depois que unimos as mãos, baixamos a cabeça e minha mãe recita “Ó Senhor, abençoe a nós e tudo isso que nos deste” — ou o meu irmão oferecendo uma lista de como todos nós fomos abençoados por Deus. Eu seguro suas mãos mas em vez de baixar a cabeça e fechar os olhos, simplesmente espero. Aprecio a gratidão deles e sou grata pelas mesmas coisas que eles. Mas ao sentar na mesa de olhos abertos e boca fechada, eu pareço ingrata para a família.

Daí, pouco depois, chega o Natal. Algumas pessoas se esforçam para nos lembrar que “Cristo é a razão da estação” e insistem que a maneira correta de cumprimentar as pessoas é “Merry Christmas [Feliz Natal]” em vez do mais inclusivo “Happy Holidays [Boas Festas]”. Sua insistência de que toda gratidão e celebração deve ser devotada apenas ao Deus cristão exclui não apenas pessoas de outras fés mas os que, como eu, são ateus. Isso cria uma espécie de culpa em gente que só quer curtir a neve, as árvores, as luzinhas brilhantes. Eles anulam nossa perspectiva ao nos dizer que não basta desejar uma boa temporada festiva uns aos outros — não, as graças só podem ser dadas a Deus.

Mas a minha experiência após deixar o catolicismo mostra que não é bem assim. Mesmo que Deus se perca, a gratidão permanece. Sem Deus, tenho mais consciência de como minhas ações afetam os outros e o ambiente ao redor. Eu não espero que Deus salve o nosso planeta, então tenho mais cuidado ao evitar desperdício e comer menos carne. Eu não espero que Deus salve a humanidade, então manifesto-me contra o ódio e tento ser mais paciente e carinhosa com meus companheiros humanos. Quando a desgraça chega, não mando pensamentos e orações; dou abraços, alimentos e ajudo como puder.

Há momentos em que lamento não ser parte da grande comunidade cristã deste país. Normalmente, parece-me que estou numa minoria em vez de maioria. Mas daí lembro que agora sou parte de uma comunidade maior ainda — a comunidade humana, a comunidade dos que vivem na Terra. Desde que cortei Deus da minha vida, tenho muito mais espaço para me importar com todo mundo.

Apesar de seu ateísmo, Jennifer Furner costuma visitar lugares como essa igrejinha de pedra nos retiros que faz algumas vezes por ano.

Tomo uma senda de cascalho que me conduz a um vale. Naquele vale, um labirinto foi escavado em meio ao mato alto. É uma tarde de outono perfeita para se lançar ao labirinto. Quando entro, os altos talos de feno amarelecido balançam ao vento e pintam minhas mãos e bochechas. Junto folhas secas na ponta do sapato para chutá-las e ouvir seu farfalhar. Sinto as faces avermelhadas pelo ar cortante e paro para me voltar ao sol. Levanto o rosto, fecho os olhos e permito que os raios solares aqueçam minhas bochechas gélidas. Depois, com um sorriso nos lábios, prossigo.

Ao chegar à clareira no fim do labirinto, encontro um buquê de flores ressecadas amarradas por um cordel e pousadas sobre uma pedra. É um altar. Sinto-me compelida a ajoelhar-me diante dele, unir as mãos e dar graças por esse dia esplêndido, de perfeita beleza, por ter sido capaz de observar e apreciar tudo.

Caio mesmo sobre os joelhos, mas, em vez de juntar as mãos em oração, planto-as no solo e sigo-as com minha testa. Eu abraço o chão e mando minhas preces sussurradas não para o céu mas para a grama.

JENNIFER FURNER tem um mestrado em literatura e mora em Grand Rapids, Michigan, com o marido e a filha. Ela é escritora e editora freelance, trabalha numa livraria e prepara a publicação de sua primeira memória. Mais textos dela podem ser encontrados em seu site ou em sua página do Medium (Jennifer Furner).

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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