EUA, o Sacro Império do século XXI

Engessados por uma Constituição do século XVIII e um sistema eleitoral arcaico, os Estados Unidos guardam muitas semelhanças com o malfadado Sacro Império Romano-Germânico

Renato Pincelli
6 min readOct 30, 2020
Ainda que se considerassem sucessores dos césares romanos, os imperadores do chamado Sacro Império tornaram-se cada vez mais irrelevantes com o passar dos séculos. Trump pode ser mais um desses imperadores sem império.

Por Ryan Cooper, na The Week. Tradução [e notas] de Renato Pincelli.

ATUALMENTE, a Alemanha é uma potência de primeira linha: rica, forte e com um governo eficiente. Mas há pouco mais de 200 anos, a maior parte de seu território era uma bagunça estrambótica — parte do Sacro Império Romano, que mesmo na época já era reconhecido como um anacronismo, um fóssil político. Com mais de 1000 anos àquela altura, o império era uma colcha de retalhos com centenas de ducados, eleitorados, principados, reinos, territórios eclesiásticos, etc. Alguns desses territórios tinham apenas algumas dúzias de acres (Liechtenstein é uma dessas relíquias sobreviventes), com um rolo excepcionalmente complicado e ilógico de instituições legais sobre todos eles. Ultrapassada pela história, a confederação estava pronta para ser tomada por um tirano oportunista.

Os Estados Unidos de hoje têm uma semelhança desconfortável com aquele império condenado. A Constituição americana é a mais velha do mundo ainda em vigor [Nota do Tradutor: é a mesma desde 1787] e está desatualizada há mais de um século [na verdade, 12 emendas constitucionais foram aprovadas entre 1913 e 1992, mas nenhuma trata dos problemas discutidos a seguir, como o Colégio Eleitoral e a ausência de uma justiça eleitoral federalizada]. Metade dos mecanismos governamentais estão ou emperrados ou são uma caricatura grosseira de seus princípios fundadores. Países que não conseguem se manter atualizados dessa forma dificilmente sobrevivem.

Vamos começar com o Colégio Eleitoral, que desenvolveu um claro favor pelos Republicanos — uma vitória por voto popular de Biden por 2 a 3 pontos porcentuais significaria uma embolação segundo suas regras e ele precisaria de uns 5% de vantagem para ter certeza. Como já argumentei em detalhes anteriormente, este é o método de seleção de chefe de governo mais esdrúxulo de qualquer país rico, talvez de todo o mundo. Ele não só entregou a presidência ao perdedor do voto popular duas vezes em menos de duas décadas como torna mecanicamente possível ganhar mesmo perdendo no voto popular numa proporção de 4 para 1.

Além disso, sua estrutura winner-take-all [o vencedor leva tudo] significa que os candidatos presidenciais só precisam dar atenção a um punhado de Estados com um equilíbrio partidário frágil [os chamados swing states ou Estados-pêndulo]. A vasta maioria dos Estados, grandes e pequenos, são virtualmente ignorados pelas campanhas porque seus votos eleitorais podem ser tomados como certos e, uma vez empossado, um presidente [pode achar que] não tem a obrigação de servir aos Estados que não votaram para ele.

Como escreve Michael Kazin no The Nation, o Colégio Eleitoral foi uma balbúrdia desde o momento em que sua forma atual entrou em vigor, motivo pelo qual quase foi abolido diversas vezes (e ainda estão tentando até hoje). Nenhuma das defesas do sistema pelos conservadores, que gostam dele porque o percebem como uma vantagem partidária momentânea, resiste a um escrutínio mais sério.

Pior ainda, o Colégio Eleitoral nem precisa, legalmente, executar as regras que descrevi acima. Por exemplo: é (provavelmente) legal que legislaturas estaduais simplesmente ignorem o resultado dos votos em Novembro e mandem um grupo de eleitores para apoiar qualquer candidato que quiserem — inclusive alguém que não esteja nas urnas. Em alguns Estados, os eleitores podem até fazer isso por iniciativa própria. Conforme o artigo extremamente duro de Barton Gellman para a The Atlantic, a campanha de Trump, bem como os oficiais republicanos de alguns Estados-pêndulo, já consideram planos para virar os resultados da eleição nas assembleias estaduais. Lawrence Tabas, presidente do Partido Republicano na Pensilvânia, disse a Gellman on the record [explicitamente] que ele está considerando isso: “é uma das opções legais disponíveis colocada pela Constituição.”

Naturalmente, a lei que governa o atual processo de apuração dos votos do Colégio Eleitoral tem 133 anos e é tão vaga que poderia ser interpretada em meia dúzia de maneiras mutuamente excludentes e nunca foi posta à prova.

Essa confusão é reforçada por outro aspecto tosco do governo americano: gerrymandering. Hoje, na maioria dos Estados, é perfeitamente legal que os membros das assembleias legislativas desenhem os limites de seus próprios distritos — são eles quem escolhem seus eleitores e não o contrário. Isso é veementemente proibido em quase todas as democracias avançadas, porque constitui manipulação eleitoral [e só acontece porque não há, nos EUA, um sistema como a justiça eleitoral, o que leva a votação a ser organizada e apurada por deputados estaduais segundo regras que variam muito de um lugar para outro, mesmo para cargos federais]. Aliás, os distritos que elegem apenas um representante estão desatualizados há décadas (as democracias mais avançadas de hoje usam distritos com múltiplos representantes ou algum tipo de representação proporcional).

Obviamente, em diversas assembleias estaduais, os Republicanos usaram o gerrymandering para dar a si mesmos uma vantagem quase insuperável — em Winsconsin, por exemplo, eles receberam 46% dos votos em 2018, mas ficaram com 64% das cadeiras da legislatura. Em outras palavras, diversas maiorias legislativas que têm o potencial de roubar a próxima eleição para Trump são, em si mesmas, produtos de trapaças escancaradas.

Enquanto isso, o Senado é eleito de forma direta mas sua estrutura é antiquada e injusta, dando a cada Estado dois senadores independente da população [a eleição direta para o Senado só foi estabelecida em 1913]. O Estado mediano tende a favorecer o GOP [apelido do Partido Republicano] por cerca de 7 pontos. Isso dá aos Republicanos uma grande vantagem pela simples coincidência de que os estados menos populosos favorecem seu partido.

Não havia princípio algum envolvido nisso — como preço por fazer parte do novo país, os Estados menores queriam uma vantagem sobre os maiores quando a Constituição estava sendo escrita, o que conseguiram. Outra maneira de ver o problema é que, teoricamente, seria possível direcionar o Senado de tal forma que os Democratas teriam uma supermaioria, bastando apenas a migração estratégica de algumas centenas de milhares de liberais sólidos da Califórnia e Nova York para os rincões inabitados dos estados do Oeste.

Temos, assim, um documento fundador que declara que “todos os homens são criados iguais” e uma carroça do século XVIII no lugar de uma constituição, que permite o roubo eleitoral e distribui aleatoriamente aos habitantes de um Estado 70 vezes a influência de outro sobre uma das câmaras do Congresso.

E isso tudo é só o começo dos problemas mecânicos da política neste país. O simples ato de votar é um complicado e doloroso pé no saco em muitos Estados [é comum, por exemplo, a exigência de se registrar para votar sempre que há uma eleição; alguns Estados ainda restringem ou até proíbem o voto de pessoas presas ou com ficha na polícia]. Os votantes precisam, rotineiramente, esperar por horas nas filas ou enfrentar complexidades administrativas ridículas. Na Pensilvânia, por exemplo, graças a uma lei muito vaga e uma recente decisão judicial idiota, os que votam pelo correio [o voto por carta é outra jabuticaba eleitoral americana] são legalmente obrigados a colocar seus votos num “envelope secreto” inútil antes de colocá-lo num envelope comum. Basta não fazer isso, como acontece com 5 a 6% dos eleitores correspondentes, e seu voto será anulado.

Não é coincidência que o estado de bem-estar americano e a burocracia nacional estejam claramente com duras gerações de atraso em relação aos países do mesmo nível. Nosso sistema não foi projetado para permitir um governo eficiente e humano.

O Sacro Império Romano seria finalmente dissolvido quando Napoleão, no comando do primeiro exército nacional moderno, atropelou a coalizão adversária na Batalha de Austerlitz, em 1805. Metade do território imperial foi unido numa breve Confederação do Reno, um Estado-fantoche francês; Francisco II, o último imperador, abdicou do trono. Na Alemanha, Napoleão varreu todo o entulho feudal, substituindo-o por seu famoso código legal, que influenciaria fortemente os fundamentos legais dos alemães.

Claro que esse não vai ser o destino dos EUA e que essa analogia está longe de ser perfeita em todos os aspectos. Mas a lição mais clara é que os sistemas políticos precisam de manutenção e atualização regulares para ficar a par dos desenvolvimentos históricos. Vários buracos no tecido nacional americano tem sido abandonado, ficando sem emendas nas últimas décadas. Agora, um partido mais extremamente conservador do que nunca explora essas brechas para tentar conquistar permanentemente a república americana — e eles podem muito bem conseguir.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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