Os impactos psicológicos da pobreza infantil, segundo a ciência

Fatores tão simples quanto mais áreas verdes e mais conversas com os pais podem melhorar a vida das crianças pobres — contanto, claro, que haja segurança alimentar

Renato Pincelli
7 min readDec 11, 2019
Crescer em áreas urbanas pobres pode levar a problemas graves para a saúde física e mental de crianças. No entanto, as soluções podem ser mais simples do que parece.

Por Emma Young, no Research Digest. Tradução de Renato Pincelli.

PARA UM PAÍS “rico” pelos padrões globais, o Reino Unido tem muita gente que não é rica: 14 milhões de pessoas — um quinto da população — vive na pobreza. Desses, 4 milhões estão mais de 50% abaixo da linha de pobreza e 1,5 milhão são classificados como destituídos, incapazes de bancar as necessidades mais básicas da vida.

Para as crianças criadas na pobreza, os impactos vão muito além das limitações materiais. Segundo o UNICEF, as “crianças experimentam a pobreza como um ambiente que prejudica seus desenvolvimentos físico, mental, emocional e espiritual”. Claramente, existe uma demanda crítica para a pesquisa psicológica nessa área. Primeiro, para revelar o que a pobreza faz com crianças e adultos — mas também para desenvolver estratégias para amenizar esses impactos.

A literatura sobre os efeitos psicológicos das crianças que crescem na pobreza não é agradável. Num estudo de 2009, publicado no Journal of Cognitive Neuroscience, foram observadas crianças de 9 e 10 anos, cuja única diferença era seu status socioeconômico. Diferenças notáveis foram descobertas na atividade do Córtex Pré-Frontal (CPF), área crítica para a cognição complexa. A reação do CPF de muitas crianças pobres diante de vários testes foi similar à de algumas vítimas de derrame cerebral. “As crianças de níveis socioeconômicos mais baixos mostraram padrões de fisiologia cerebral semelhantes ao de alguém que realmente teve uma lesão cerebral no lobo frontal depois de adulto”, comentou Robert Knight, professor de psicologia na Universidade da Califórnia em Berkeley e autor principal do estudo.

Os tipos de déficits observados pelos pesquisadores podem causar problemas com a auto-regulação e o comportamento (ambos já documentados entre crianças mais pobres), além de dificuldades de raciocínio. “Isso é um sinal de alerta”, prossegue Knight. “Não é apenas que essas crianças são mais pobres e tem mais tendência a ter problemas de saúde, mas elas podem realmente não conseguir um desenvolvimento cerebral pleno por causa do ambiente estressante e empobrecido associado ao status socioeconômico mais baixo: há menos livros, menos leitura, menos jogos, menos visitas ao museu.

Desde então, diversos outros estudos têm revelado como a pobreza prejudica os cérebros infantis. Em 2014, experiências lideradas por Michele Tine revelaram claros déficits nas memórias verbais, visuais e espaciais de crianças pobres. No ano seguinte, um paper publicado no JAMA Paediatrics documentou o “desenvolvimento cerebral irregular” entre as crianças de baixa renda, com atrasos no desenvolvimento dos lobos temporal e frontal ligados a notas significativamente menores em provas de leitura e matemática. Segundo os pesquisadores, o desenvolvimento do hipocampo, que envolve a memória, foi particularmente influenciado pelos estresses experimentados por essas crianças.

Tais impactos podem ser duradouros. Um estudo longitudinal, publicado por Gary Evans na PNAS em 2016, descobriu que adultos que eram pobres durante a infância apresentaram déficits de memória e experimentavam maior sofrimento psicológico. Em 2019, um estudo de longo prazo envolvendo quase 4000 famílias canadenses, coordenado por Paul Hastings, reportou que crescer num bairro urbano pobre está associado com o dobro do risco de desenvolver um transtorno do espectro da psicose por volta da meia-idade.

Essas pesquisas pintam um quadro bastante sombrio dos efeitos da pobreza. Mas é claro que nem todas as crianças pobres são afetadas da mesma maneira — nem toda criança miserável no estudo sobre o funcionamento do CPF mostrou déficits. Isso sugere que pode haver fatores de proteção. Pesquisas adicionais na área indicam que os níveis gerais de estresse e também o comportamento das pessoas ao redor das crianças podem fazer uma grande diferença.

Algo tão simples quanto o plantio de mais árvores em escolas de áreas desfavorecidas pode ajudar, segundo uma pesquisa de uma equipe da Universidade do Illinois, publicada em 2018. Ming Kuo e seus colegas quantificaram a área de cobertura verde nos pátios de 318 escolas fundamentais (nas quais 87% dos alunos caíam na categoria de famílias de baixa renda) e encontraram uma correlação com as notas de leitura e matemática — quanto maior o número de árvores, melhor o desempenho.

Parcialmente inspirada por outro trabalho, que encontrou uma ligação entre a abundância vegetal e o desempenho acadêmico fora de um ambiente de baixa renda, Kuo considera que há uma ligação significativa entre as duas coisas. “Não é surpresa pra ninguém que, quando não se provê ar-condicionado ou aquecimento numa escola, as crianças não vão bem.”, lembra ela. “Mas essa é a primeira vez que começamos a suspeitar que a falta de paisagismo, de árvores, pode explicar, em parte, seus resultados piores.”

Um estudo britânico, publicado no mesmo ano [2018], deu apoio a essas conclusões. Nesse caso, foram estudadas 4758 crianças de 11 anos, moradoras de áreas urbanas da Inglaterra. A descoberta é que as crianças que viviam em vizinhanças mais verdes saíam-se melhor em testes de memória de trabalho espacial (um efeito notado tanto em áreas favorecidas quanto desfavorecidas). “Nossos resultados sugerem um papel positivo da área verde no funcionamento cognitivo”, afirma o pesquisador Eirini Flouri, da University College de Londres. Que papel seria esse? É possível que seja o de relaxar o cérebro, restaurando a capacidade de concentração.

Intervenções cujo foco está nas famílias de crianças criadas na pobreza também podem ser úteis. A equipe que observou os déficits no CPF considera que, teoricamente, essas limitações poderiam ser prevenidas ou eliminadas. Estudos antecedentes já mostraram que crianças em famílias pobres ouvem cerca de 30 milhões de palavras a menos quando chegam aos quatro anos do que seus pares de famílias de classe média. Simplesmente falar mais com as crianças pode dar um impulso à performance do córtex pré-frontal. Assim, segundo os pesquisadores, a mudança no desenvolvimento observado pode envolver algo tão simples quanto enfatizar aos pais a importância de conversar com seus filhos.

Crianças que crescem em famílias de baixo status socioeconômico também tendem a ter taxas relativamente altas de doenças crônicas na vida adulta — mais uma vez, isso não é inevitável. Uma mãe atenciosa, que nutre e apoia emocionalmente os filhos, pode amortecer os impactos da pobreza na saúde física, segundo um estudo de 2011 liderado por G. E. Miller e publicado na Psychological Science.

Outra pesquisa, feita por Sophie Wickham, da Universidade de Liverpool, em 2014, indica que as percepções de uma pessoa sobre seus níveis de estresse, confiança e apoio social amenizam o impacto da pobreza sobre índices de depressão e paranoia. Isso reforça o potencial da sociedade mais ampla na mitigação dos efeitos da pobreza nos indivíduos que foram a comunidade. Conduzida em duas áreas de Birmingham [Inglaterra], a pesquisa aponta que a resiliência da comunidade a fatores como desemprego e baixa renda pode ser melhorada e isso depende principalmente dos relacionamentos “não apenas entre os membros da comunidade, mas também entre organizações, especificamente entre o terceiro setor, o setor público e a economia local.”

Claro que a maneira mais evidente de resolver os impactos psicológicos negativos da pobreza é resolver a própria pobreza.

Amenizar tensões financeiras pode fazer uma diferença real, de acordo com uma pesquisa publicana na PNAS no ano passado. Nesse estudo, com pessoas de baixa renda categorizadas como “cronicamente endividadas”, descobriu-se que um programa de perdão de dívidas (bancado por uma instituição filantrópica) reduziu a ansiedade dos participantes, melhorou suas funções cognitivas e lhes permitiu tomar melhores decisões financeiras depois de três meses.

Como argumentam os cientistas, pensar e se preocupar com dívidas impagáveis é tão cansativo mentalmente que contribui para a armadilha da pobreza. “Nosso estudo mostra que, como o endividamento afeta o funcionamento psicológico e a tomada de decisões, sair da pobreza seria extremamente desafiador até para a pessoa mais motivada e talentosa”, afirma Ong Qiyan, da Universidade Nacional de Singapura. “Em vez disso, o pobre deve ou ter qualidades excepcionais ou ser excepcionalmente sortudo para sair da pobreza. Ser pobre é difícil, bem mais do que pensamos.

As pessoas que não são pobres nem têm dívidas, ressalta a equipe, simplesmente não experimentam tal dreno mental. “Os resultados desse estudo abrem uma oportunidade pragmática para projetar bons programas de alívio às dívidas para domicílios de baixa renda”, argumenta Qiyan. Mesmo que as dívidas não sejam zeradas, reduzi-las a ponto de serem mentalmente administráveis pode ajudar, segundo a equipe.

Em 2015, o governo do Reino Unido se comprometeu a alcançar, até 2030, as Metas de Desenvolvimento Sustentável [MDS] da ONU. A primeira é “acabar com a pobreza”; a segunda, “zerar a fome”. Entretanto, em 2019, o Comitê Ambiental da Câmara dos Comuns [i.e., dos Deputados] apresentou um relatório segundo o qual a insegurança alimentar é “crescente e significativa” no Reino Unido. São índices que estão entre os piores da Europa, especialmente para crianças.

Uma em cada dez casas da Inglaterra, de Gales e da Irlanda do Norte tem “segurança alimentar baixa ou muito baixa”, sendo outros 10% classificados como “marginalmente seguros”. O uso dos Food Bank [bancos de alimentos, que podem ou não ser instituições governamentais e funcionam à semelhança dos bancos de sangue] está em alta — entre 1 de abril de 2018 e 31 de março de 2019, o Trussell Fund [principal ONG de bancos alimentares do Reino Unido] distribuiu 1,6 milhão de suprimentos emergenciais de alimentos (que duram três dias) para pessoas de todo o país. É um aumento de 19% em relação ao ano anterior e mais de meio milhão desses suprimentos vai para crianças.

Essas estatísticas são desesperadoras. Prover as escolas de locais desfavorecidos com mais áreas verdes ou disponibilizar programas de apoio para mães de baixa renda pode até minimizar os feitos da pobreza sobre as crianças. Mas quando a criança vem de uma família que não consegue alimentá-la, não é difícil imaginar o impacto que tais medidas realmente pode ter. Passado um terço do prazo de 15 anos para o Reino Unido alcançar as MDS, temos uma jornada extraordinariamente longa pela frente.

Formada em Psicologia pela Universidade de Durham (Reino Unido), a australiana EMMA YOUNG é escritora e jornalista com 20 anos de carreira e já escreveu colunas e matérias sobre ciência e saúde para o ‘Guardian’, o ‘Sydney Morning Herald’ e a ‘New Scientist’. Atualmente, faz parte da redação do ‘Research Digest’, órgão de divulgação da Sociedade Psicológica Britânica. Além de livros de ficção e não-ficção para adultos, Emma publicou duas obras infantis de divulgação científica e recebeu diversos prêmios nos últimos anos por seus trabalhos jornalísticos. O presente artigo sobre a pobreza na infância e seus efeitos psicológicos foi publicado originalmente na Research Digest em 03/12/19.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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