Japão: o amor e o temor aos gatos

De pestinhas metamórficos a demônios comedores de cadáveres, os gatos sobrenaturais ocupam há séculos o folclore japonês

Renato Pincelli
11 min readDec 7, 2020
Embora sejam onipresentes no Japão, os gatos vieram do exterior e essa origem é parte do fascínio que exercem sobre os japoneses. [Pintura do Período Heian]

Por Zack Davisson, no Zócalo Public Square. Tradução de Renato Pincelli.

GATOS SÃO ADORADOS NO JAPÃO. Basta dar uma olhada em qualquer coisa relacionada à cultura pop japonesa e você vai ver: Hello Kitty. Cat cafes. Orelhinhas de gato eletrônicas que se usam na cabeça e respondem ao seu estado emocional. Quadrinhos superpopulares como What’s Michael? e A Man and His Cat. A popularidade de um destino turístico como Gotokuji, templo da área de Setagaya, em Tóquio, que diz ser o lar original do ubíquo Maneki Neko, o Gato da Sorte. O famoso santuário felino Nyan Nyan Ji, em Kyoto, que tem um gato-monge de verdade com vários gatinhos-acólitos.

O Japão tem gatos por todos os lados. Embora seja fácil ver como eles são bem-amados, os japoneses também temem os gatos. O país tem um longo — e frequentemente assustador — histórico de folclore com o envolvimento de gatos sobrenaturais. O catlore japonês é largo e profundo — vai do fantástico gato metamórfico (Bakaneko) aos felinos comedores de cadáveres (Kasha).[Nota do Tradutor: catlore é neologismo criado pelo autor para se referir ao folclore que envolve gatos]

Bakaneko da Era Edo, período em que os gatos — reais e sobrenaturais — ganharam popularidade no Japão.

Comecei a pesquisar esse catlore japonês enquanto trabalhava na HQ Wayward, da Image Comics. Escrito pelo canadense Jim Zub, com artes do Steve Cummins, americano radicado no Japão, e da colorista Tamra Bonvillain, Wayward era uma estória clássica de mudanças de crenças sociais, com a velha questão de sempre: os homens criaram os deuses ou os deuses criaram os homens? A obra põe os yokai do folclore nipônico com jovens poderes em ascensão capazes de suplantá-los [Yokai são entes sobrenaturais, de diversas formas, com características fantasmagóricas e que podem ou não ser malignos]. Uma de nossas protagonistas era Ayane, moça-gato do tipo conhecido como Neko Musume. Ayane era formada por gatos unidos numa fusão mística para criar um avatar vivo de gato.

Como consultor, meu trabalho em Wayward era criar material suplementar para acompanhar as histórias. Isso quer dizer que eu pesquisava e escrevia sobre temas tão vários quanto o sistema policial do Japão, os terríveis demônios chamados Oni e os incêndios que assolaram Tóquio entre 1600 e 1868. E, claro, gatos mágicos. Pesquisei o catlore japonês para incorporá-lo à personagem Ayane. Normalmente meu trabalho era um bate-pronto: assim que concluía um tópico partia para o seguinte. Mas com os gatos, bem… Acho que posso dizer que eles meteram as garras em mim — e ainda não me largaram.

Como nesta pintura, os gatos, portadores de comportamentos noturnos e boêmios, passaram a representar figuras da comunidade artística.

Estudar folclore significa seguir caminhos tão distantes quanto se pode ir, sabendo que você nunca vai alcançar seu destino. Quanto mais você descasca as camadas do tempo, mais nebulosas as coisas se tornam. Você sai do que pode comprovar e entra no reino difuso do “melhor indício”.

O fato é que os gatos existem no Japão, mais ninguém sabe exatamente como eles chegaram lá. O “melhor indício” é que eles viajaram pela Rota da Seda, do Egito para a China e a Coreia e depois cruzaram o mar. Eles vieram ou como rateiros para guardar os preciosos sutras budistas escritos em velino ou como presentes caríssimos trocados entre imperadores em troca de favores. O mais provável é que as duas coisas tenham acontecido em diferentes épocas.

Os Bakanekos podiam, ainda, ser usados como representação de personagens menos nobres, como a prostituta desta ilustração.

Mas nosso primeiro registro confirmado de um gato no Japão — onde podemos apontar com confiança uma data e dizer “Sim! Isso indubitavelmente é um gato!” — encontra-se nas páginas empoeiradas de um antigo diário. Foi em 11 de Março de 889 que, aos 17 anos, o Imperador Uda escreveu o seguinte:

Sexto Dia do Segundo Mês do Primeiro Ano da Era Kampo. Tirando um momento do meu tempo livre, gostaria de expressar minha alegria pelo gato. Ele veio de barco como dádiva ao falecido imperador, recebido pelas mãos de Minamoto no Kuwashi.

A cor de seu pelo é incomparável. Ninguém pôde encontrar palavras para descrevê-lo, embora alguém tenha dito que lembra o mais escuro tom de tinta [nanquim]. Tem um ar ao seu redor que se assemelha a Kanno. Seu comprimento é 5 sun e sua altura, 6 sun. Fixei um laço em seu pescoço, mas não permaneceu ali muito tempo.

Em rebelião, ele afila os olhos e expõe suas agulhas. Mostra suas costas.

Quando deita-se, curva-se num círculo, feito uma moeda. Não dá pra ver seus pés, é como se fosse um disco circular. Quando levanta-se, seu choro expressa uma profunda solidão, como um dragão negro a flutuar sobre as nuvens.

Por natureza, gosta de perseguir pássaros. Abaixa sua cabeça e rodeia sua cauda. Pode esticar sua espinha e elevar sua estatura em até 2 sun. Sua cor permite-lhe desaparecer na noite. Estou convencido de que ele é superior a todos os outros gatos.

Imperador ou lavrador, os donos de gato pouco mudaram ao longo dos milênios. Posso falar para qualquer um que ouve como meu gato (um belo de um Maine coon monstrão chamado Shere Khan com quem coexisto num equilíbrio de amor puro a guerra aberta) é superior a todos os demais gatos.

Bakanekos em festa.

Embora tenham inicialmente sido tratados como objetos de valor inestimável no Japão, esses tesouros eram capazes de fazer algo que coisas como ouro, seda ou pedras preciosas não fazem — multiplicar-se. Gatos geram mais gatos. Ao longo dos séculos os gatos cresceram e se multiplicaram e, pelo século XII, eles já estavam em todas as ilhas.

Foi então que eles começaram a se transformar.

O Kasha — felino demoníaco, devorador de cadáveres — era (e ainda é) o extremo oposto dos gatinhos fofos ou brincalhões.

Existe há muito tempo no Japão uma antiga crença popular, segundo a qual uma coisa que vive muito passa a manifestar poderes mágicos. Existem muitas velhas histórias que explicam o porquê disso para raposas, tanuki [texugo ou cão-guaxinim], cobras e até cadeiras. Entretanto, os gatos parecem se destacar pela miríada de poderes que podem apresentar — e pela sua multidão de formas. Talvez seja porque eles não são nativos do Japão.

Enquanto a sociedade japonesa evoluiu na companhia de raposas e tanukis, os gatos possuem uma aura de terem vindo do além. Combine isso com o mistério natural dos felinos, sua capacidade de se esticar em proporções aparentemente grotescas, seu andar mudo e seus olhos brilhantes que mudam de forma à noite e você tem a receita perfeita de um animal mágico.

A primeira aparição conhecida de um gato sobrenatural no Japão se deu no século XII. Segundo relatos, um gigantesco gatuno de dois rabos, comedor de gente, batizado de Nekomata circulava pelos arredores de Nara, então capital do Japão, cercada por montanhas e florestas. Caçadores e lenhadores entravam regularmente nestes bosques ao redor da cidade para seus serviços. Eles conheciam os riscos comuns, mas aquele brutamontes estava além do que esperavam encontrar.

Segundo notícias da época, vários morreram nas garras do Nekomata. Gigantes e poderosos, eles mais pareciam tigres de dupla cauda do que os pets amáveis do Imperador Uda. O Nekomata, de fato, deve ter sido um tigre mesmo. Hoje existe a especulação de que as lendas dos Nekomata surgiram da fuga de um tigre trazido da China, talvez como parte de uma menagerie ou então foi algum outro bicho infectado com raiva.

Após o fim do século XII, as narrativas de Nekomata e outros felinos supernaturais caíram num sono secular. Com a chegada da Era Edo, a população de gatunos mágicos do Japão explodiu.

Maneki Neko, a estatueta do gatinho de boa sorte: de conto folclórico a figura mundialmente conhecida.

Por volta de 1600, a Terra do Sol Nascente viveu uma primavera artística e cultural. O teatro Kabuki. Sushi. Xilogravuras Ukiyo-e. Gueixas. As primeiras imprensas. Todos esses fenômenos da Era Edo levaram ao florescimento da indústria de material de leitura para todas as classes — de certa maneira, um antepassado dos mangás. Como os escritores e artistas logo descobriram, o povo tinha fome de contos de magia e de yokai. Qualquer peça de teatro ou obra de arte com elementos sobrenaturais era certeza de sucesso de público.

Nessa era dourada apareceu uma nova espécie de felino sobrenatural — o metamórfico Bakeneko. Conforme o Japão se urbanizava, as populações de humanos e gatos cresciam juntas. Agora, os gatinhos estavam por toda parte, não só como bichos de estimação e caça-ratos mas como bandos sem rumo que se alimentavam nas ruas das sobras das recém-criadas barraquinhas de sushi e rámem. Com eles vieram histórias de gatos capazes de se transformar em seres humanos.

As casas japonesas eram geralmente iluminadas por lâmpadas a óleo de peixe. Os gatos adoravam rodear as lamparinas e, à noite, diante de sua luz mortiça, eles lançavam enormes sombras nas paredes. Assim, pareciam se transformar em criaturas enormes e bípedes enquanto se espreguiçavam. Segundo o folclore, os bichanos que eram extraordinariamente longevos evoluíam em Bakanekos, matavam seus donos e assumiam seus lugares.

Porém, nem todos os Bakanekos eram letais. Por volta de 1781, espalharam-se rumores de que alguns cortesãos nos palácios dos distritos murados da capital, Edo, nem eram mais humanos pois todos haviam se tornado Bakanekos. A ideia de que atravessar os portões de Yoshiwara significava flertar com o sobrenatural era de uma delícia irresistível. Logo, essas estórias foram além dos cortesãos, abarcando um submundo inteiro de gatos, formado por atores de kabuki, artistas, comediantes e outros profissionais de má fama. Quando esses gatos deixavam suas casas à noite, saíam de quimono, viravam o saquê, batucavam o shamisen e basicamente festavam pra valer até o sol raiar, quando se esgueiravam de volta ao lar.

Essas narrativas também foram irresistíveis para os artistas e ilustradores, que pintavam imagens de um mundo cheio de gatos selvagens, bebendo e dançando até tarde da noite. Ainda que os Bakanekos fossem capazes de assumir formas inteiramente humanas, os gatos eram representados de forma antropomórfica, híbridos humano-felinos. Eles fumavam cachimbos e jogavam dados, metendo-se em todo tipo de encrenca — coisa que um fazendeiro que trabalhava duro só podia sonhar. Os artistas também criavam réplicas felinas das celebridades populares no mundo do entretenimento.

Como seus donos humanos, os gatos japoneses se urbanizaram com o passar dos anos. O Onsen dos Gatos, caricatura de Utagawa Kunitoshi (1884).

Os Bakanekos podem até ser os mais numerosos e populares entre a população de gatos mágicos do Japão — e certamente os de maior apelo artístico — mas os felinos também se encontram em cantos mais sombrios.

O Kasha, por exemplo, é um demônio infernal que se alimenta de cadáveres. Como os Nekomata e os Bakaneko, os Kasha já foram gatos domésticos normais. Mas, segundo as estórias, o aroma de corpos mortos deixaram-nos embriagados, com um desejo incontrolável de devorar, transformando-os em demônios. Com seus poderes necromantes, eles seriam capazes de manipular cadáveres como marionetes, fazendo-os andar e dançar. O Kasha continua presente como parte da cultura funerária. No Japão, é costume após o falecimento de um parente reunir a família e fazer o velório em casa. Nesse dia, os gatos são postos para fora do cômodo onde se realiza a solenidade.

Outras criaturas felinas, como o Neko Musume, são consideradas híbridos gato-humanos. Eles seriam fruto de uma maldição dos gatos sobre os fabricantes de shamisen, um instrumento tradicional que é um tambor feito com couro de gato. Um fabricante de shamisen muito ganancioso poderia ser castigado com uma filha Neko Musume. Em vez de uma filha adorável, eles ganhariam um gato de forma humana, incapaz de falar, que vive comendo ratos e arranhando as coisas.

O mais persistente dos gatos sobrenaturais do Período Edo deve ser o Maneki Neki, conhecido em inglês pelo apelido Lucky Cat. Embora realmente seja uma criação comercial, esse onipresente felino de pata balançante tem origens folclóricas — no plural, pois são duas. No templo Gotokuji, conta-se que um gato sortudo salvou um samurai de uma queda de raio durante um temporal. O guerreiro, agradecido, deu seu patrocínio ao templo, que existe até hoje e vende alegremente milhares de réplicas do gatinho aos turistas ávidos.

A outra origem viria de uma mulher pobre e velha, cujo gato lhe apareceu em sonho para dizer que ela deveria esculpir um gato de argila e vender no mercado. A mulher apregoava tanto o gato quanto sua narrativa, vendendo cada vez mais gatinhos até se aposentar rica e feliz. São as mesmas estatuetas felinas vendidas hoje no mundo todo como Maneki Neko.

Obviamente, ambas as histórias não podem ser verdadeiras, mas nada disso impede a comercialização das figuras felinas. Aliás, não é incomum rastrear a origem de um conto folclórico e descobrir, na outra ponta, alguém tentando fazer dinheiro. E como os velhos artistas descobriram com seus Bakaneko impressos, os gatos sempre fazem bem às vendas.

Atores de Kabuki representados como felinos.

Quanto mais você mergulha no catlore japonês, mais pérolas vai encontrar. Do Gotoko Neko — um velho Nekomata que misteriosamente acende fogueiras ou liga a calefação das casas para ficar aquecido — às ilhas de gato de Tashirojima, onde os gatos superam a população humana em mais de 5 para 1 e os ameaçados Yamapikaryaa, que só sobreviveriam nas remotas ilhas Iriomote. A maior parte dessas criaturas nasceu na Era Edo, mas muitas são parte do folclore expandido e locais do mundo real. O catlore do Japão continua a crescer e eu não tenho dúvida de que novas formas sobrenaturais estão sendo gestadas ainda agora.

Para mim, o catlore nipônico nada deve à erva-de-gato. Quanto mais aprendo, mais tenho vontade de conhecer. Após terminar minha pesquisa para Wayward, continuei mergulhando cada vez mais fundo, até acumular pilhas de contos folclóricos traduzidos e textos históricos sobre os gatos do Japão. Não planejava fazer nada com isso, que era apenas uma obsessão pessoal. Até que meu editor notou aquilo e disse: “Ei, acho que sabemos sobre o que vai ser seu próximo livro”. Assim nasceu Kaibyō: The Supernatural Cats of Japan [Kaibyō: Os Gatos Sobrenaturais do Japão], livro que não pretendia escrever e que, até hoje, dificilmente está acabado. Acho que jamais estará — e que Shere Khan concorda.

Considerado um sucessor espiritual de Lefcardio Hearn, ZACK DAVISSON é folclorista, escritor e tradutor. Seu trabalho foca nas relações entre o folclore, as tradições japonesas e a moderna cultura dos mangás e animes. Além de participar de convenções de fãs do gênero, Davisson já deu palestras em instituições como Duke University, University of California-Los Angeles (UCLA) e University of Washington. Como tradutor, atua principalmente na versão para o inglês de mangás — experiência que rendeu o livro “Confessions of a Manga Translator [Confissões de um Tradutor de Mangá]”. Este ensaio, publicado no Zócalo em 10/09/2020, é uma síntese de sua obra mais recente, “Kaibyō: The Supernatural Cats of Japan [Kaibyō: os gatos supernaturais do Japão]”.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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