Limitar o salário de CEOs pode ajudar a resolver a desigualdade econômica

Pode parecer contraditório, mas o capitalismo diz que todo incentivo tem limites para funcionar — inclusive os super-salários dos executivos.

Renato Pincelli
7 min readJan 21, 2019
Tim Cook, CEO da Apple e sucessor de Steve Jobs.

Por Mark R. Reiff, no Big Think (nov./2018). Tradução de Renato Pincelli.

NO CAPITALISMO, dizem seus defensores, é cada um por si. Através da busca incansável do interesse próprio, todo mundo seria beneficiado — como se uma mão invisível guiasse cada um de nós rumo ao bem comum. Consequentemente, todo mundo deveria acumular tanto quanto possível, não apenas em bens mas também em salário. Não importa qual seja o preço do mercado, ele deverá ser pago pelo comprador. Tanto a noção de que deve haver um salário mínimo, a ideia de um salário máximo parece minar a própria liberdade que o livre-mercado deveria assegurar.

Tal ponto de vista, entretanto, tem consequências dramáticas. Um é a explosão da desigualdade econômica experimentada por quase todas as democracias liberais capitalistas nos últimos 30 a 40 anos. A diferença entre o teto e o piso da distribuição de renda encontra-se agora em níveis semelhantes aos da Belle Époque e dos anos 1920, às vésperas da Grande Depressão. Diferente desses outros períodos, esse aumento da desigualdade econômica não foi impulsionado pela valorização de bens de capital. Dessa vez, um dos fatores mais importantes para a desigualdade tem sido o pagamento de compensações extraordinariamente altas para os executivos de grandes corporações. Em 2017, por exemplo, os 200 CEOs mais bem-pagos dos EUA receberam, cada um, compensações entre 13,8 milhões de dólares e US$ 103,2 milhões. São valores bem acima de linha que determina o 0,01% no topo da pirâmide de renda, que atualmente está em US$ 8,3 milhões. O problema é ainda maior porque, enquanto as recompensas dos executivos cresceu quase continuamente nesse período [de três a quatro décadas], os salários reais (ajustados pela inflação) de quase todo mundo continuam estagnados.

Muitas pessoas consideram isso preocupante, mas tendem a tratar o problema como algo que deve ser tolerado no capitalismo. Outros acham que é algo pelo qual o capitalismo deve ser aplaudido. Mas não existe nada no capitalismo dizendo que esses níveis astronômicos de compensação [aliás, notem que o termo usado aqui é sempre ‘compensação’ e não ‘salário’] sejam permissíveis. Em vez disso, o capitalismo diz que as pessoas precisam de incentivos para ser produtivas ao máximo. Mas alguém que recebe US$ 100 milhões por ano realmente dá mais duro do que alguém que faz US$ 10 milhões? Como tudo mais, a compensação tem o que os economistas chamam de “diminuição marginal de utilidade”. Isto é, quanto mais há um incentivo, menos efeito incentivador ele terá, até não haver efeito algum, pois as pessoas já estão se esforçando tanto quanto possível. Nesse ponto, o capitalismo sugere que não deveríamos pagar nem um centavo a mais pois não vamos ganhar nada em retorno.

Mas espere… os CEOs não estão sendo pagos por seu trabalho de acordo com as tarifas do mercado? A compensação deles é calculada segundo uma fórmula combinada no momento de sua contratação e, contanto que essa fórmula represente os salários em voga, é isso o que eles deveriam receber. No entanto, o valor de mercado do trabalho de um CEO não é ajustado de maneira competitiva. A fórmula é fixada por um grupo especial de diretores da empresa, o chamado “comitê de compensação”. Esse comitê encomenda um levantamento de mercado para ver quanto as companhias similares pagam aos seus CEOs. A resposta normalmente é apresentada como um intervalo. Embora esse intervalo varie de acordo com o tipo de empresa que se considera similar, vamos supor, para fins de ilustração numa determinada indústria de certo tamanho, que seja algo entre US$ 1 mi. e US$ 60 mi., com uma média de US$ 18 mi. Dado o fato de que o CEO estará em posição capaz de recompensar os membros do comitê de diversas maneiras, temos aqui oportunidades óbvias para corrupção.

Mesmo desconsiderando isso, existem outros problemas ao usar um levantamento para fazer uma oferta. O comitê não pode recomendar algo na parte inferior do intervalo, pois isso seria o mesmo que dizer que o candidato é visto apenas como tão bom quanto o CEO que ganha menos. Por outro lado, eles podem tentar oferecer algo acima do limite superior, só pra demostrar quão bem veem o candidato. No fim, o provável é que ofereçam algo um pouco acima da média pois ninguém quer sugerir que seu candidato está abaixo disso. Mas ao fazer isso, a média vai sendo inflacionada: da próxima vez que alguém contratar um CEO e outro comitê fizer outro levantamento, a média estabelecida será maior. Não é o mercado que está elevando o preço; o preço sobe simplesmente porque todo mundo quer superar a média corrente. Aqui nós temos o que os economistas chamam de falência de mercado. Estabelecer um salário máximo, portanto, não seria uma interferência na liberdade de mercado porque, nesse caso, o mercado já não funciona.

MAS SE NÃO pagarmos o valor corrente, como vamos ser capazes de contratar as melhores pessoas? Será mesmo que as melhores pessoas realmente vão para onde pagam mais? Isso só é um problema se aqueles que recebem a maior quantia de compensação realmente são os melhores, o que contraria as evidências. É muito difícil que alguém tenha tanto o talento quanto a habilidade para ser um CEO eficiente — e o desempenho passado não é garantia de sucesso no futuro: CEOs super bem-pagos já arruinaram suas companhias ao passo que algumas das empresas mais bem-sucedidas de hoje foram fundadas e administradas por gente que não tinha nenhuma experiência em negócios. Essas pessoas começaram a trabalhar por quase nada e mesmo assim transformaram suas firmas em empreendimentos monumentais. Steve Jobs é um excelente exemplo disso, pois a Apple derrapou quando ele saiu e voltou a avançar quando ele retornou, com um salário anual de 1 dólar. Assim, as companhias não deveriam ter medo de perder os melhores candidatos para alguém que paga mais. Pessoas muito boas vão trabalhar por, digamos, US$ 10 mi/ano, especialmente se tiverem a chance de administrar uma companhia — essas pessoas têm tantas chances de se sair bem quanto alguém que venha a exigir US$ 100 milhões.

Mesmo assim, isso não tira dos CEOs a compensação que eles merecem? Se a companhia vai bem, eles deveriam ir bem também. Só que o sucesso de uma corporação depende das contribuições de muitas pessoas. Se tentarmos determinar quanto compensação um CEO merece por sua contribuição à empresa, essa lógica deveria ser aplicada a todos os escalões: quando a empresa vai bem, todo mundo deveria receber uma porcentagem similar dos seus lucros. Mas não é isso que acontece. Pior: quando uma companhia vai mal, a compensação de um CEO não deveria subir, mas o aumento acontece com frequência. No mínimo, tal recompensa permanece numa discrepância enorme quando comparada com o mau desempenho da companhia, algo que parece contrariar a lógica do capitalismo. Para justificar isso, as companhias costumam argumentar que o CEO não deveria ser culpado pelas flutuações “do mercado”. Ora, se há muitos fatores a se considerar o motivo do mau desempenho de uma empresa, também existem muitos fatores para determinar seu sucesso. Apontar qual empregado, individualmente, “merece” recompensa numa grande corporação é virtualmente impossível de modo razoável.

ENTÃO ONDE deveríamos fixar o máximo? Podemos sintonizar melhor à medida que ganhamos experiência, mas para começar eu proponho um limite de 10 milhões de dólares em compensações totais para o CEO de qualquer companhia que tenha negócios nos EUA, sendo que ninguém na companhia ou em suas subsidiárias teria permissão para receber acima disso. Isso colocaria o CEO numa sólida posição dentro do 0,01% do topo da distribuição de renda norte-americana, o que seria incentivo o bastante para atrair gente muito boa de qualquer parte do mundo. Para companhias que têm negócios nos EUA, mas não são sediadas ali, nem são listadas nas bolsas de valores norte-americanas, nem têm uma operação substancial e com muitos empregados, mantendo contatos com outros lugares, seria calculado um limite similar segundo distribuição de renda do país em questão.

Para evitar que as pessoas tentem distorcer o sistema, as empresas com contratos substanciais em diversas jurisdições teriam um limite que seria ajustado para refletir a verdadeira fonte de atividade econômica da companhia. Se 40% da atividade econômica real estiver num país com limites inferiores ou (mais raramente) superiores, o limite de US$ 10 mi. seria proporcionalmente reduzido ou aumentado. Seja como for, tal limite ajudaria a frear o crescimento da desigualdade econômica e prevenir que CEOs imprudentes tomem decisões motivados apenas pela perspectiva de subida de preço das ações de suas companhias e, consequentemente, de seus bônus. Ao mesmo tempo, seria desencorajada a mudança de empresas para paraísos fiscais, permitindo a ascensão de lideranças mais jovens, menos tradicionais e potencialmente mais criativas.

MARK R. REIFF é professor de filosofia e já deu aulas de filosofia política, filosofia legal e filosofia moral nas Universidades de Manchester, de Durham (ambas no Reino Unido), da Califórnia e na Estadual de Sonoma (EUA). Seus livros mais recentes são “On Unemployment [Do Desemprego, em 2 volumes, 2015]” e “Exploitation and Economic Justice in the Liberal Capitalist State [Exploração e Justiça Econômica no Estado Capitalista Liberal, 2013]”. O artigo que aqui traduzimos foi publicado no “Big Think” em 12/11/2018.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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