O Fim do Fogo

A verdade é nova e contra-intuitiva: já temos a tecnologia necessária para nos livrar rapidamente dos combustíveis fósseis.

Renato Pincelli
33 min readMay 2, 2022
Para controlar um mundo em chamas, é preciso parar de queimar as coisas. [Ilustração de Álvaro Bernis para a New Yorker]

Por Bill McKibben, na New Yorker [Março de 2022].
Tradução [e alguns complementos] de Renato Pincelli.

NO ÚLTIMO DIA de Fevereiro o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas apresentou seu relatório mais assombroso até agora. O secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou “ter visto muitos relatórios científicos na vida, mas nada como este”. Deixando de lado a linguagem diplomática, ele descreve o documento como “um atlas do sofrimento humano e uma condenação contundente do fracasso da liderança climática” e considerou que “os maiores poluidores do mundo são culpados por incendiar nossa única casa”. Horas depois, na abertura de uma rara sessão de emergência da Assembleia-Geral da ONU, Guterres listou os horrores da invasão da Ucrânia por Putin e pediu um basta. Ao citar a declaração de alerta nuclear de Putin, ele ressaltou que a guerra poderia escalar para um conflito atômico, “com implicações potencialmente desastrosas para todos nós”.

O que une ambas as crises é a combustão. Queimar combustíveis fósseis empurrou a temperatura do planeta para níveis mais elevados do que nunca, derretendo a maior parte do gelo no verão ártico, distorcendo as correntes de jato e enfraquecendo a corrente do Golfo. E foi a venda de combustíveis fósseis que deu a Putin tanto o dinheiro para equipar um exército — o petróleo e o gás respondem por 60% das rendas de exportação da Rússia — quanto o poder de intimidar a Europa ao ameaçar cortar seu fornecimento. Os combustíveis fósseis são o fator dominante sobre o planeta há séculos e nada tem sido feito para alterar profundamente tal quadro. Após a invasão de Putin, o Instituto Americano do Petróleo insistiu que a melhor maneira de atravessar a crise é extrair mais petróleo. As conferências climáticas em Glasgow, no outono passado, descritas por John Kerry, o enviado americano, como “a última boa esperança” para a Terra, resultaram em promessas vagas sobre “carbono zero até 2050”. Foi um festival de obscurantismo, eufemismos e greenwashing, no que foi resumido como “blá-blá-blá” pela jovem ativista do clima, Greta Thunberg. Mesmo quem tenta prestar atenção ao assunto não consegue acompanhar o que deveria ser a batalha mais decisiva da História humana.

Então, vamos repensar a disputa. Além de discutir taxas de carbono e créditos tributários para a energia verde, em meio ao foco momentâneo de paralisar os bancos russos e derrubar o rublo, existe uma realidade mais básica, mais fundamental: a era da combustão em larga escala precisa acabar, e depressa. Se entendermos que esse é o gol, podemos finalmente avançar e acertar o chute. Na terça passada, o presidente Biden baniu a importação de petróleo russo. Este ano, pode ser necessário compensar isso com hidrocarbonetos americanos mas, como observou um oficial-sênior do governo, “o único meio de eliminar a capacidade de Putin e todos os outros produtores de usar óleo como arma econômica é reduzir nossa dependência de petróleo”. Considerando que somos um dos maiores produtores de petróleo e gás do mundo, esta é uma admissão notável. É um chamado para apagar o incêndio.

NÃO SABEMOS quando nem onde os seres humanos começaram a fazer fogueiras: como em todas as coisas primordiais, existem disputas. Mas não há dúvidas sobre o impacto de tal momento. O fogo nos permitiu cozinhar alimentos e a comida cozida rende muito mais energia do que a crua. Com isso, nossos cérebros cresceram e nossas tripas, com menos trabalho de processamento, encolheram. O fogo nos manteve aquecidos e os humanos puderam alcançar regiões que de outro modo seriam frias demais. E, à medida que nos reuníamos ao redor das fogueiras, criamos os laços que nos levaram à formação de sociedades. Não surpreende que Darwin tenha descrito o fogo como “a maior descoberta já feita pelo homem, com exceção da linguagem.”

Darwin escreveu isso pouco depois da Revolução Industrial, quando aprendemos a transformar carvão em energia a vapor, gás em iluminação, óleo em locomoção, tudo por meio de combustão. Nossa espécie depende da combustão: foi ela que nos fez humanos e, depois, nos fez modernos. Mas, depois de passar milênios aprendendo a dominar o fogo e três séculos usando-o para moldar o mundo como o conhecemos, temos que passar os próximos anos erradicando-o sistematicamente. Pois, em conjunto, tais chamas — os fogos sob o capô de 1,4 bilhão de veículos e nos lares de bilhões de pessoas, nas usinas de energia, nas caldeiras de fábricas e nas turbinas de aviões — são mais destrutivos que o mais poderoso dos vulcões, deixando no chinelo o Krakatoa e o Tambora. A fumaça e o smog destes motores e queimadores matam diretamente nove milhões de pessoas por ano, mais do que a soma das mortes causadas por guerra e terrorismo, além de malária e tuberculose (em 2020, a poluição por combustíveis fósseis matou três vezes mais gente do que a COVID-19). Essas chamas, claro, também derramam o dióxido de carbono, invisível e inodoro, numa taxa sem precedentes. É tanto CO2 que o clima do planeta já está sendo alterado, ameaçando não apenas aqueles que vivem no mundo hoje mas todos os que virão depois de nós.

“Observamos os preços do carvão por mais de 140 anos e esses preços não caíram.” (Doyne Farmer, pesquisador da Universidade de Oxford)

Mas existem boas notícias, que tornam este exercício de apagar as chamas mais do que mera retórica. Os rápidos avanços na tecnologia de energia limpa significam que essa destruição toda já não é mais uma necessidade. Ao invés destas chamas que mantemos acesas dia e noite, é possível se apoiar no fato de que existe uma fogueira no céu — uma grande bola de gás em combustão, a 150 milhões de quilômetros de distância, cuja energia pode ser captada em painéis fotovoltaicos e que aquece gradualmente a Terra, gerando ventos que podem ser usados com grande eficiência por turbinas. A eletricidade produzida dessa forma pode aquecer e resfriar nossas casas, cozinhar nossos alimentos, mover nossos carros, nossas bicicletas e nossos ônibus. Com o sol em chamas, não precisamos nos queimar.

As energias do sol e do vento não são uma alternativa para tudo, pelo menos por enquanto. Três bilhões de pessoas ainda cozinham diariamente sobre chamas abertas e assim será até que tenham fornecimento confiável de eletricidade e talvez demore até mais, pois a cultura se modifica lentamente. Mesmo assim, ainda teremos chamas para queimar — em velas sobre bolos de aniversário, em churrasqueiras, em baseados (pelo menos até acertarem a dosagem para a versão comestível) — da mesma forma que ainda usamos o bronze muito depois do fim de sua era.

Existem algumas poucas indústrias de grande porte — viagens aéreas intercontinentais e certos tipos de metalurgia, como a fabricação de aço — que vão exigir a combustão, provavelmente de hidrogênio, por ainda mais tempo. Mas estas são partes relativamente pequenas do panorama energético. E, com o tempo, também poderão acabar sendo substituídas pela eletricidade renovável: fornalhas de arco-elétrico já produzem alguns tipos de aço e pesquisadores japoneses acabam de anunciar uma bateria tão leve que algum dia poderá transportar passageiros em voos transoceânicos. Na verdade, só enxergo um único uso a longo prazo para a combustão planejada em larga escala, sobre o qual falarei mais tarde. De modo geral, nosso trabalho como espécie está claro: precisamos parar de queimar.

Em 2022, essa tarefa é não apenas possível mas viável. Temos a tecnologia necessária para uma transição rápida e aplicá-la vai economizar nosso dinheiro. Esses são os pontos-chave que precisamos internalizar. São ideias novas e contra-intuitivas, mas algumas pessoas trabalham há anos para concretizá-las e suas histórias demonstram o poder do momento.

Quando Mark Jacobson estava crescendo no norte da Califórnia, nos anos 1970, mostrou talento para a ciência e para o tênis. Ele viajava para torneiros em Los Angeles e San Diego, cidade onde me contou, recentemente, como ficou chocado com a sujeira do ar: “Você ficava com os olhos irritados, a garganta começava a doer. Não dava para enxergar muito longe. Pensei: por que as pessoas vivem desse jeito?” Ele acabou indo para Stanford, como universitário e mais tarde, nos anos 1990, como professor de Engenharia Civil e Ambiental. Naquela época, estava claro que a poluição visível do ar era apenas parte do problema. Já havia a compreensão de que o gás invisível produzido pela combustão — o dióxido de carbono — representava uma ameaça ainda mais grave.

Para atacar esses problemas, Jacobson analisou dados para verificar se um protótipo de turbina eólica vendido pela General Electric poderia concorrer com o carvão. Ele explicou sua capacidade com cálculos da eficiência do equipamento em ventos de velocidade média. Num artigo que escreveu, publicado na revista Science em 2001, ele demonstrou que “seria possível eliminar 60% do carvão nos EUA com um número modesto de turbinas.” Para Jacobson, esse foi “o paper mais curto que já escrevi — três-quartos de página na revista — e o que teve mais feedback, principalmente de haters”. Ele os deixou de lado. Logo, passou a orientar um aluno para fazer o mapeamento de velocidades do vento ao redor do mundo e expandiu seu trabalho incluindo outras fontes de energia renovável.

Reprodução do artigo de Mark Jacobson publicado na Science em agosto de 2001: “o paper mais curto que já escrevi — três-quartos de página na revista — e o que teve mais feedback, principalmente de haters”.

Em 2009, Jacobson e Mark Delucchi, pesquisador da University of California, publicaram um artigo indicando que as energias solar, eólica e hidroelétrica poderiam, teoricamente, fornecer energia suficiente para suprir as demandas energéticas do mundo todo. O consenso da época dizia que as renováveis eram inseguras pois o sol insiste em se por ao anoitecer e o vento pode mudar de direção. Em 2015, Jacobson escreveu um artigo para a Proceedings of the National Academy of Sciences onde demonstrou o contrário: as energias solar e eólica podem manter a rede elétrica com segurança. A pesquisa ganhou um prêmio dos editores da revista [o Cozzarelli Prize], o que não evitou novas críticas — um grupo de vinte acadêmicos do país inteiro publicou uma réplica, argumentando que “tomadores de decisão devem ter cautela diante de qualquer visão de uma transição rápida, segura e barata para um sistema energético quase exclusivamente baseado em energias solar, éolica e hidroelétrica.”

O tempo, porém, está dando razão a Jacobson: alguns países — entre os quais Islândia, Costa Rica, Namíbia e Noruega — já produzem mais de 90% de sua eletricidade a partir de fontes limpas. Quando Jacobson começou suas pesquisas, as turbinas eólicas sobre os morros da Califórnia eram mais parecidas com brinquedos do que com geradores de energia. Hoje, a G.E. está habituada a montar turbinas três vezes maiores que a Estátua da Liberdade. Em Agosto [de 2021], uma companhia chinesa anunciou um novo modelo, cujas pás vão cobrir uma área equivalente a seis campos de futebol, com turbinas capazes de gerar energia para 20 mil residências (e com um benefício extra: turbinas maiores matam menos pássaros que as menores; de qualquer forma, os principais responsáveis pelas mortes de aves são arranha-céus, linhas de alta tensão e gatos). Em Dezembro, a equipe de Jacobson publicou uma análise atualizada, estimando que temos 95% da tecnologia necessária para a produção de 100% da demanda energética dos EUA com energia renovável por volta de 2035, com uma rede elétrica segura e confiável.

Tornar a energia limpa acessível é a outra metade do desafio e nisso as notícias são igualmente animadoras. Em Setembro, após quinze anos de trabalho, uma equipe de pesquisadores da Oxford University publicaram um paper, atualmente sob processo de revisão por pares mas que, dentro de meio século, poderá ser considerado um divisor de águas na luta contra a crise climática. Seu autor principal é Rupert Way, de Oxford, mas a equipe de pesquisa foi liderada por um americano chamado Doyne Farmer.

Matemático e físico precoce, Farmer cresceu no Novo México. Seu primeiro empreendimento, quando ainda era graduando na U. C. Santa Cruz, se chamava Eudaemonic Enterprises, em referência ao termo de Aristóteles para a prosperidade humana. O objetivo era bater as roletas dos cassinos. Para isso, Farmer usava um sapato (hoje guardado num museu alemão) que tinha um computador em sua sola. Ele observava o crupiê lançar a bola sobre a roleta e, ao notar a posição e a velocidade inicial da bola, apertava seu dedão para inserir a informação no computador. Os cálculos rápidos do aparelho lhe davam a chance de fazer uma aposta informada no intervalo de poucos segundos permitido pelo cassino. Esse trabalho o levou a construir algoritmos para bater o mercado financeiro — rendendo uma técnica de arbitragem estatística por trás de uma empresa que co-fundou, a Prediction Company, que seria vendida para o UBS, gigante suíço do ramo bancário.

Felizmente, Farmer direcionou seus talentos para algo com grande valor social: desenvolver um meio de prever os índices de progresso tecnológico. A base desse trabalho foi uma pesquisa publicada em 1936, quando Theodore Wright (executivo da Curtiss Aeroplane Company) percebeu que toda vez que a produção de aviões dobrava, os custos de fabricação caíam 20%. Farmer e seus colegas foram estimulados por essa “curva de aprendizado” (e a Lei de Moore, sua equivalente da era da informática): se puder entender quais tecnologias se ajustam à curva e quais não, pode ser possível antecipar o futuro. “Faz uns quinze anos”, contou Farmer, em Dezembro.

“Eu estava no Santa Fe Institute quando o chefe do Laboratório Nacional de Energia Renovável apareceu. Ele disse: ‘Pessoal, vocês entendem de sistemas complexos. Ajudem a gente a pensar fora da caixa. O que estamos deixando passar?’ Eu tinha, na época, um pós-doutorando da Transilvânia e ele começou a levantar um banco de dados — com a colaboração de colegiais, meninos do St. John’s College em Santa Fe, muita gente. E, à medida que observávamos, vimos essa tendência a aperfeiçoamentos persiste ao longo do tempo.”

A PRIMEIRA APLICAÇÃO prática da energia solar foi no satélite Vanguard I, de 1958 — prática para quem tivesse o orçamento de um programa espacial. Entretanto, o custo caiu de modo contínuo, à medida que surgiam aperfeiçoamentos a cada geração da tecnologia — não por causa de uma descoberta revolucionária ou de um indivíduo empreendedor e visionário mas pela constante melhoria incremental. Cada vez que dobra o número de painéis solares fabricados, o preço cai uns 30%, o que equivale a uma queda anual de quase 10%.

Mas — e esse é um ponto-chave — nem todas as tecnologias seguem essa curva. “Observamos o preço do carvão por mais de 140 anos”, explica Farmer. “As minas são mais sofisticadas hoje, a tecnologia para localizar depósitos é muito melhor. Mas os preços não foram reduzidos.” Uma explicação provável é que começamos por explorar tudo o que fosse fácil: o petróleo outrora borbulhava do solo mas hoje temos que perfurar bem no fundo dos oceanos para encontrá-lo. Em qualquer caso, por volta de 2013 o preço do kilowatt-hora da energia solar caiu mais de 99% desde sua primeira aplicação no Vanguard I. Enquanto isso, o preço do carvão continuou praticamente igual. É fácil começar com carvão, mas ele não fica mais barato.

Quanto mais dados são colhidos pelos pesquisadores da equipe de Farmer, mais robustos tornam-se seus índices. Assim, no outono de 2021, eles estavam prontos para publicar suas descobertas. Farmer e seus colegas descobriram que as curvas de preço dos combustíveis fósseis e dos renováveis já estão se cruzando. Os renováveis já são mais baratos que os fósseis e devem ficar mais ainda. Por isso, os pesquisadores argumentam que uma “transição decisiva” para a energia renovável economizaria ao mundo 26 trilhões de dólares em custos energéticos nas próximas décadas. Isso é exatamente o oposto de como temos visto a transição de energia.

Há muito ela tem sido considerada como uma tarefa economicamente assustadora: se tivermos que fazer a transição para evitar uma calamidade (e obviamente temos que fazer isso), devemos mudar tão devagar quanto possível. No ano passado, Bill Gates escreveu um livro em que afirma que os consumidores teriam que pagar um “green premium [sobretaxa verde]” pela energia limpa, o que seria muito caro. Mas Emily Grubert, engenheira da Georgia Tech que trabalha para o Departamento de Energia [dos EUA] demonstrou recentemente que seria mais barato substituir todas as usinas a carvão do país por recursos renováveis do que simplesmente mantê-las em atividade. É o que se pode chamar de “desconto verde”. Para Farmer, a queda constante do preço significa que ainda poderíamos nos movimentar com rapidez suficiente para cumprir o alvo determinado nos Acordos Climáticos de Paris (2016), limitando a elevação da temperatura [média global] em 1,5 grau Celsius. “Um ponto cinco vai ser uma droga”, disse Farmer. “Mas com certeza é melhor que três. Só precisamos tirar o dinheiro do bolso e fazer [a transição]. Há muita gente pessimista e desesperada e precisamos mudar isso.”

Números como os apresentados por Farmer são absolutamente surpreendentes até para quem trabalha no ramo há anos. Na COP 26, dei uma fugidinha do gigantesco centro de convenções de Glasgow para a calmaria relativa de uma pizzaria na zona universitária. Comigo estava um homem chamado Kingsmill Bond, que é inglês e ex-profissional de investimentos. Tem uma aparência típica: magro, com um terno justo e um bom corte de cabelo. Sua filha, contou, estava prestando o exame de admissão para Cambridge naquele dia — a mesma universidade que ele frequentara antes de sua carreira no Citi e Deutsche Bank levá-lo para Hong Kong e Moscou. Bond abandonou as finanças há alguns anos, com uma redução de renda que ele prefere não revelar. Depois trabalhou no Carbon Tracker Initiative, em Londres, e agora está no Rocky Mountain Institute, sediado no Colorado. Ambos os grupos são especializados em transição energética.

Animado, ele pegou um guardanapo para explicar os números do relatório de Oxford. Nós teríamos que construir uma rede elétrica para transmitir toda a energia nova, instalar milhões de carregadores de veículos elétricos [EVs, na sigla em inglês] e assim por diante, numa longa lista — talvez seja 1 trilhão de dólares a mais em gastos de capital a cada ano por duas ou três décadas. Mas, em compensação, explicou Bond, teríamos um prêmio econômico: “Nós economizaríamos uns dois trilhões de dólares por ano em rendas de combustíveis fósseis. Para sempre.” Renda de combustível fóssil é o nome que os economistas dão ao dinheiro que vai dos consumidores para os controladores da cadeia de produção de hidrocarbonetos. A Arábia Saudita, por exemplo, pode extrair petróleo de seu território por menos de 10 dólares o barril e vendê-lo a 50 ou 75 dólares cada (ou, durante a emergência causada pela guerra de Putin, mais de 100). A diferença é a renda que acumulam.

Bond insiste que as projeções mais elevadas para o custo da transição energética — uma análise recente da consultoria McKinsey prevê um custo trilhões acima da previsão da equipe de Farmer — ignoram essas rendas fósseis e ainda supõem que, dentro de pouco tempo, a energia renovável vai se descolar da curva de barateamento. Mesmo que você seja pessimista em relação ao valor do custo para fazer a mudança, é evidente que vai ser bem menos caro do que não acelerar a mudança — um custo que se mede não só em centenas de trilhões de dólares mas também em milhões de vidas e em qualquer valor que estimamos para a manutenção de uma civilização funcional.

Os novos índices viram de cabeça para baixo a lógica econômica à qual estamos acostumados. Há alguns anos, numa conferência da indústria petroleira no Texas, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeu deu uma declaração tão terrível quanto verdadeira: “nenhum país encontraria 173 bilhões de barris no subsolo e os deixaria lá”. Ele se referia às areias betuminosas de Alberta, onde se usa um terço do gás natural do Canadá para aquecer o óleo misturado ao solo a ponto de bombeá-lo à superfície para separá-lo da areia. Só a extração deste petróleo colocaria o Canadá além de sua cota de carbono determinada em Paris — e realmente queimar esse combustível todo aqueceria o planeta em meio grau, esgotando quase um terço da cota total remanescente. E os canadenses respondem por apenas 1,5% da população global.

Mesmo em termos puramente econômicos, tal lógica perde cada vez mais sentido a cada trimestre que passa. Isso é especialmente verdadeiro para os 80% da população mundial que vivem em países que precisam importar combustíveis fósseis — para eles, só há custos e nenhum ganho. Porém, mesmo para os petro-Estados, está cada vez mais difícil racionalizar o orçamento. Bond exemplifica com mais alguns números: o Canadá tem reservas fósseis equivalentes a um total de 167 petawatt-horas (um petawatt é um quadrilhão de watts), o que é muita coisa. Mas o mesmo país tem um potencial de energia renovável da ordem de 71 petawatt-horas por ano, só em energia solar e eólica. Seria razoável perguntar a Trudeau: que tipo de país acha um windfall como este e o deixa lá no céu? [aqui, um trocadilho intraduzível: windfall é uma riqueza súbita, geralmente por uma herança surpresa; ao mesmo tempo, a palavra pode ser interpretada, literalmente, como “pé de vento, ventania”]

Em 2020, a poluição por combustíveis fósseis matou três vezes mais gente do que a COVID-19.

EVIDENTEMENTE, não será fácil fazer a transição energética. Como estamos queimando combustíveis para ligar nossas economias há mais de dois séculos, colocamos em operação longas e robustas cadeias logísticas e uma profunda especialização técnica, tudo devotado à economia de combustão. “Nós tentamos pensar sobre as possíveis barreiras de infraestrutura que podem aparecer no caminho”, reconhece Farmer. Esta é a virtude desse tipo de análise baseada na curva de aprendizado: se a energia renovável já superou obstáculos antes para baixar seus custos, provavelmente continuará a fazê-lo. Há alguns anos, por exemplo, várias reportagens diziam que o negócio de turbinas de vento poderia quebrar pela falta da madeira balsa usada para fazer as pás das turbinas. Porém, um ano depois do aparecimento da escassez, os principais fabricantes passaram a substituir a madeira por um material sintético.

Agora, o foco está sobre os minerais, como o cobalto, que são usados em painéis solares e baterias. No ano passado, o New York Times publicou uma longa investigação sobre o sucesso que a China teve em controlar o fornecimento do metal, encontrado em abundância na República Democrática do Congo. Brian Menell, CEO da TechMet, uma fornecedora de cobalto e outros metais de uso especial, me contou que “corremos o risco de, dentro de cinco anos, ver as fábricas de EVs semi-ociosas porque as companhias — como a Ford, a General Motors, a Tesla, a VW — não vão ter segurança sobre o fornecimento para manter a capacidade que estão construindo hoje.” Mas o fato de que nomes como Ford e GM estejam na disputa significa que há peso político para o desenvolvimento do que Menell chama de “um esforço massivo e coordenado entre governo e usuários finais”. Humanos são bons em resolver o tipo de dilema que a escassez apresenta. Um porta-voz da Ford declarou ao Times que a empresa está aprendendo a reciclar cobalto e a desenvolver substitutos, acrescentando que “não vemos o cobalto como um problema limitador.”

Mais difícil será solucionar os desafios de direitos humanos que vêm com novos planos de mineração, como o uso da chamada “mineração artesanal” de cobalto, na qual trabalhadores miseráveis extraem o metal do solo com pás ou o projeto de construção de uma mina de lítio em uma área de Nevada que é sagrada para povos indígenas. Mas, à medida que trabalhamos para contornar tais problemas, é bom lembrar que uma transição para a energia renovável pode, segundo algumas estimativas, reduzir o impacto total da mineração mundial em até 80% — pois muito do que se escava hoje é queimado (e depois precisamos de novas escavações). O lítio se escava uma vez só e fica em uso durante décadas em um painel solar ou bateria.

Na verdade, a adoção de energia renovável reduzirá o impacto global em todos os tipos de sistema. Atualmente, cerca de 40% da carga levada por navios cargueiros é formada por carvão, gás, óleo e pellets de madeira — uma fila interminável de barcos repletos de coisas para queimar. Você também precisa de um cargueiro para transportar uma turbina de vento, se ela for importada, mas só precisa fazer isso uma vez. Um painel solar ou uma turbina eólica, depois de montados, duram por um quarto de século ou mais. As Forças Armadas dos EUA são o maior consumidor individual de combustíveis fósseis do mundo. Mas 70% de sua “carga útil” de logística é dedicada apenas ao transporte de combustíveis fósseis para manter o maquinário militar em operação.

Matérias-primas não são o único gargalo possível. Também nos faltam alguns tipos de especialistas. Saul Griffith deve ser o principal apóstolo mundial da eletrificação (seu livro de 2021 é intitulado Electrify). Nascido na Austrália, Griffith passou os últimos anos no Vale do Silício, convencendo empresários a instalar carregadores de EVs, bombas de troca de calor, fogões por indução, etc. Ele demonstra como esses itens compensam para os investimentos de donos de imóveis, imobiliárias e empresas. Ele também levantou números para mostrar como os bancos podem ganhar, na prática, ao estender as hipotecas em troca dessas melhorias.

No entanto, disse-me Griffith, para se manter dentro do limite de 1,5º. C, “os EUA vão precisar de um milhão de eletricistas a mais nesta década”. Não é algo impossível. Trabalhar como eletricista é um bom serviço e faculdades comunitárias e programas de profissionalização podem treinar muita gente para isso [nos EUA, as faculdades comunitárias são pequenas instituições de ensino superior, muitas vezes mantidas por Estados, municípios ou organizações filantrópicas]. Mas, como em tudo nessa transição, isso vai exigir liderança e colaboração para ser realizado.

Uma mudança em tal escala seria difícil mesmo se todo mundo estivesse trabalhando de boa fé, e nem todo mundo está. Até agora, por exemplo, as verbas climáticas do Build Better Act — que ajudariam, entre muitas outras coisas, a treinar operários de energia renovável — estão sendo bloqueadas não só pelos republicanos cobertos de óleo mas por Joe Manchin, o democrata que recebeu mais doações do setor fóssil na eleição passada do que qualquer um no Senado.

Os trinta anos de história da luta contra o aquecimento global podem ser resumidos na pressão da indústria fóssil para negar a necessidade de mudança ou, mais recentemente, insistir que a mudança seja feita lentamente. A indústria fóssil quer ser capaz de continuar queimando alguma coisa. Desse modo, pode manter tanto sua infraestrutura quanto seu modelo de negócios em uso. É praticamente uma indústria de piromania racionalizada. Há uns dez anos, o que queriam era passar a queimar gás natural. Como ele produz menos gás carbônico que o carvão, era apresentado como o “combustível-ponte” que nos levaria aos renováveis. A lógica parecia perfeita.

No entanto, pesquisadores liderados por Bob Howarth, da Cornell University, descobriram que produzir gás natural em larga escala libera grandes volumes de metano na atmosfera. E, como o CO2, o metano (CH4) é um potente gás de efeito estufa. Logo ficou claro que o gás natural é uma ponte para lugar nenhum — ficou claro para todo mundo, menos para a indústria. O chefe de uma grande firma de gás disse, numa conferência no Texas, na semana passada, que a indústria nacional de gás poderia manter a produção pelos próximos cem anos.

Outras áreas da indústria querem retroceder ainda mais e queimar madeira. A União Europeia e os EUA classificam oficialmente tal prática como “queima de biomassa”, neutra em carbono. A cidade Burlington, em meu Estado de Vermont, alega tirar toda sua energia dos recursos renováveis, mas a maior parte de sua eletricidade sai de uma usina que queima árvores. Novamente, a lógica parece sólida: se você corta uma árvore, outra cresce em seu lugar, eventualmente absorvendo o dióxido de carbono emitido pela queima da primeira. Só que o problema está no “eventualmente”.

A queima da madeira é altamente ineficiente e ainda libera um enorme pulso de carbono agora, quando o sistema climático global está mais vulnerável. As árvores, que levam algumas gerações para crescer, vão chegar tarde demais para salvar as calotas polares. A maior usina a queima de madeira do mundo fica na Inglaterra e pertence a uma empresa chamada Drax. Tal unidade queimava carvão e dificilmente causa menos danos do que já causou. Em Janeiro a Enviva, companhia de Maryland que é a maior produtora global de pellets de madeira, anunciou planos para dobrar sua produção.

Ou considere as enormes somas de dinheiro envolvidas no plano bipartidário de infraestrutura aprovado no ano passado [nos EUA], que dará apoio a outra tecnologia chamada captura de carbono. Isso significa cobrir usinas elétricas com tantos filtros e tubulações que elas podem continuar queimando carvão ou gás, mas capturando o CO2 que sai de suas chaminés para despachá-lo para longe — provavelmente numa velha mina de sal ou, ironicamente, num poço de petróleo esgotado, onde pode ser usado para empurrar mais óleo cru para cima.

Por enquanto esses sistemas de captura de carbono não funcionam para valer — e mesmo que funcionassem, por que gastar dinheiro para remendar sistemas com filtros e tubulações quando a energia solar já é mais barata que o carvão? Vamos ter que remover algum carbono da atmosfera e novas gerações de máquinas de captura aérea direta podem vir a ter um papel relevante, se seus custos se reduzirem depressa (essas máquinas usam substâncias químicas para filtrar o carbono do ar ambiente, como se fossem árvores artificiais). Mas usar essa tecnologia para prolongar a vida de usinas a carvão é só mais um presente para uma indústria politicamente influente.

Cada vez mais, a indústria fóssil está recorrendo ao hidrogênio como saída. O hidrogênio tem combustão limpa, que não contribui para o aquecimento global. Mas a indústria gosta do hidrogênio porque uma maneira de produzi-lo é pela queima de gás natural. E, como Howarth e Jacobson demonstraram numa pesquisa recente, mesmo combinando a queima desse gás com a custosa captura de carbono, o metano que vaza dos poços de fracking* é suficiente para tornar todo o processo ecologicamente arruinado. A ideia não faz sentido econômico sem grandes subsídios.

[*fracking é uma técnica de extração que consiste em injetar uma substância sob pressão, como água ou CO2, no fundo de um poço para forçar a saída de sobras de petróleo. É o equivalente petroquímico a apertar e enrolar um velho tubo de pasta de dente para forçar até a última gota. Tal técnica é ambientalmente arriscada e tem causado efeitos como a ocorrência de tremores de terra nas regiões onde se pratica.]

Existe outra maneira de produzir hidrogênio que, com o tempo, deverá se tornar o combustível dos últimos grandes incêndios artificiais do nosso planeta. Trata-se da eletrólise, na qual o hidrogênio é separado do oxigênio da água. Se a eletricidade usada no processo for produzida a partir de fontes renováveis, esse “hidrogênio verde” permitiria que países com pouco espaço para a geração de energia renovável — como Japão, Coreia e Singapura — possam manter suas redes ligadas.

Andrew Forrest, bilionário australiano e fundador do Fortescue Metals Group propõe o uso de energia solar para geração de hidrogênio verde, que ele poderia exportar para tais países. Em Janeiro, Mukesh Ambani, presidente da Reliance Industries e homem mais rico da Índia, anunciou planos para investir 75 bilhões de dólares nesta tecnologia. A Airbus estimou, recentemente, que o hidrogênio verde poderia abastecer seus aviões intercontinentais por volta de 2035. E a boa notícia é que os eletrólitos que usam energia solar para produzir hidrogênio parecem estar na mesma curva de redução de custos dos painéis fotovoltaicos, turbinas eólicas e baterias — ainda que Doyne Farmer recomende cautela, pois os dados a esse respeito são bastante escassos.

A certeza é que a indústria de combustíveis fósseis vai ter que enfrentar essas mudanças. No outono passado, uma companhia de infraestrutura do Oklahoma anunciou que cobraria 1400 dólares para cortar linhas residenciais de gás e adaptar fogões e aquecedores domésticos para eletricidade. Em poucos dias, outras empresas buscaram cobrir a oferta. Por isso, o movimento climático está fazendo pressão sobre os bancos que financiam a expansão das infraestruturas fósseis. No ano passado, a Agência Internacional de Energia declarou que essa expansão precisa ser interrompida imediatamente se quisermos cumprir os objetivos do Acordo de Paris.

No entanto, apesar de fazer barulho em torno do “carbono zero até 2050”, os maiores bancos do mundo continuam financiando novos poços e oleodutos. O problema ganhou destaque no início do ano, quando Joe Biden nomeou Sarah Bloom Raskin para o cargo de vice-supervisora do Federal Reserve [o Banco Central dos EUA]. “Existe uma oportunidade para ações antecipadas, preemptivas e ousadas pelos tomadores de decisões da política econômica que estejam dispostos a evitar a catástrofe”, escreveu Raskin em 2020 [no Wall Street Journal]. Por isso, certos legisladores se mobilizaram para barrar sua nomeação.

O senador Patrick Toomey (Pensilvânia) foi o sexto maior receptor de doações de petróleo e gás durante sua última campanha, em 2016. Ele, que não vai concorrer à reeleição este ano, disse que Raskin “tem pedido especificamente que o Fed pressione os bancos a cortar o crédito de companhias de energia tradicional”. Em outras palavras, Raskin tenta apagar um pouco as chamas — e na última segunda, para seu desgosto, Manchin [o petro-democrata] praticamente derrubou sua nomeação ao declarar que votaria contra: ela teria “falhado em responder satisfatoriamente às minhas preocupações sobre a importância de financiar uma política energética de múltipla escolha.” No dia seguinte, ela retirou sua candidatura.

O ABANDONO DA combustão é algo tão grande e tão novo que se choca contra as opiniões formadas por todo mundo — inclusive os ambientalistas. A luta contra a energia nuclear foi um dos motivadores do movimento verde: estava evidente que se algo desse errado, o erro seria terrível. Há mais de uma década, eu aplaudi a decisão da legislatura de Vermont, que votou pelo fechamento da velha usina nuclear do Estado ao fim de sua vida útil. Mas, hoje, eu não faria o mesmo. Já faz alguns anos que argumento que os reatores nucleares existentes ainda podem ser operados com tanta margem de segurança quanto possível enquanto fazemos a transição energética — o lixo nuclear que produzem é uma herança maldita para nossos descendentes, mas não é tão perigoso quanto uma Terra superaquecida (por mais que as cenas de tropas russas disparando contra usinas nucleares tenham devolvido o senso de terror ao planeta nas últimas semanas).

A rápida queda de custos dos recursos renováveis indica que novas usinas nucleares vão ter dificuldades em encontrar financiadores. A única grande vantagem da energia nuclear — que está sempre ligada — está se evaporando. Farmer e sua equipe de Oxford fizeram os cálculos e concluíram que “se o custo do carvão está estagnado, da solar está desabando, a nuclear é a rara tecnologia com custos em alta”. Seus defensores alegam que os custos sobem porque os temores de segurança encarecem a construção. “Mas o único lugar da Terra onde se encontra uma redução no custo da energia nuclear é a Coreia”, explica Farmer. “Mesmo lá, o ritmo de queda é de 1% por ano. Perto dos 10% das renováveis, não é o bastante para fazer diferença”.

Tolerar a energia nuclear por mais algum tempo não é o único conceito que os ambientalistas precisam rever. Um dos motivos para eu ter apoiado o fechamento da usina atômica de Vermont é que havia a promessa de a energia gerada por ela seria substituída por energia renovável. Entretanto, nos anos seguintes, defensores de vida selvagem, florestas e paisagens conseguiram vetar o uso das montanhas mais altas do Estado por turbinas eólicas. Mais recentemente, a comissão estadual de infraestrutura bloqueou a construção de uma fazenda solar de oito acres por motivos estéticos. Quem vive e ama as zonas rurais vai ter que aceitar que parte da paisagem terá que ser modificada para produzir energia. Mas não toda a zona rural, nem mesmo a maior parte dela: os números mais recentes de Jacobson indicam que a energia renovável na verdade utiliza menos terras que os combustíveis fósseis, que só na América do Norte exigem a perfuração de 50 mil poços por ano. Precisamos passar a ver nossa paisagem de modo diferente. Como Ezra Klein escreveu esta semana no New York Times, “para conservar qualquer coisa parecida com o clima que já tivemos, precisamos construir onde nunca construímos antes.”

Milharais, por exemplo, são uma paisagem tipicamente americana, mas são apenas outro tipo de coletores de energia solar — do tipo que precisa de aplicações anuais de fertilizantes, que se infiltram em lagos e rios, causando grandes surtos de algas. Mais da metade do milho plantado em Iowa acaba nos tanques de carros e caminhonetes como etanol — em outras palavras, esses campos já estão produzindo combustível, ainda que de forma ineficiente. Como painéis solares são bem mais eficientes que a fotossíntese e os veículos elétricos são mais eficazes que carros com motor a gasolina, os dados de Jacobson indicam que, ao trocar o etanol por energia solar, seria possível gerar uma autonomia automotiva oitenta vezes maior com o uso de uma área de terra equivalente. E a transição poderia trazer outras vantagens. O mercado de elétrons é previsível, de modo que painéis solares podem produzir um renda bem estável para os fazendeiros, que já começam a aprender a plantar colheitas tolerantes à sombra [dos painéis solares] ou a pastar animais ao redor e abaixo deles.

Outra concessão vai ser mais difícil de engolir para os ambientalistas do que uma paisagem modificada: a noção de que a crise climática forçaria mudanças drásticas no modo de vida das pessoas. A velha suposição é que a energia renovável seria cara e de distribuição limitada. Então, pensavam os ambientalistas, isso nos levaria a um modo de vida mais simples, menos intensivo em energia, um cenário um cenário positivo para muitos, pois há desafios ambientais que vão além da combustão e do clima.

Só que o barateamento das novas tecnologias energéticas pode nos permitir evitar algumas mudanças mais drásticas. Sempre que escrevo a respeito da ascensão dos EVs, os tuiteiros respondem que seria melhor andar de bicicleta ou em ônibus elétricos. Em muitos casos, pode ser; e algumas cidades felizmente começam a construir extensas redes de ciclovias ou faixas trânsito prioritárias para ônibus elétricos. Mas, segundo dados de 2017, só 2% dos quilômetros de viagens de passageiros se dá por transporte público [nos EUA]. O deslocamento por bicicleta dobrou nas últimas duas décadas — chegando a cerca de 1% do total. Poderíamos (e deveríamos) quintuplicar o número de pessoas em bikes e ônibus, mas mesmo assim ainda precisaríamos trocar milhões de carros por veículos elétricos para cumprir as metas determinadas pelos cientistas. O tempo é um fator crucial. Pode ser difícil remodelar o sistema energético do planeta até o fim da década, mas acho que seria bem mais difícil — impossível, de fato — uma remodelação suficiente das expectativas sociais, das preferências de consumo e dos padrões de comportamento num prazo tão curto.

Uma maneira de olhar para o trabalho que temos pela frente com as ferramentas à nossa disposição é como uma triagem. Se formos rápidos nisso, abrimos mais possibilidades para as gerações do futuro. Basta um exemplo: Farmer diz que é possível que o custo dos reatores de fusão nuclear, ao contrário dos atuais reatores de fissão, venham a cair drasticamente na curva de custos. Assim, é possível imaginar que, dentro de uma ou duas gerações, poderíamos tirar os painéis solares das áreas agrícolas porque a fusão (basicamente a física do interior do Sol na Terra) poderia nos fornecer toda a energia que precisamos. Se passarmos pelo gargalo da próxima década, muita coisa se torna possível.

O mercado de elétrons é previsível, o que significa que os painéis solares instalados nas fazendas podem dar uma renda fixa para os agricultores.

EXISTE UM ASPECTO ético da transição energética que não podemos deixar de lado: a crise climática é profundamente injusta — de maneira geral, quanto menos você se envolve em suas causas, mais você é atingido por suas consequências. Mas enquanto tentamos corrigir essa crise, também temos a oportunidade de remediar algumas dessas injustiças. Para os norte-americanos, a melhor parte da Lei Build Back Better é tentar direcionar uma parte significativa de seus investimentos para comunidades que já são mais atingidas pela pobreza e os prejuízos ambientais, um resquício do Green New Deal [projeto de lei mais ambicioso] que lhe deu origem. Seus defensores já pressionam para garantir que pelo menos parte das novas tecnologias fique nas mãos das comunidades locais — igrejas e agências de desenvolvimento regional em vez dos equivalentes solares da Koch Industries ou da Exxon.

Outros ativistas pressionam para garantir que os primeiros investimentos na transformação ambiental se concretizem em projetos de habitação popular, reservas [indígenas] e escolas públicas para alunos de baixa renda. Pode ser que os ambientalistas fiquem impacientes, achando que tais prioridades possam desacelerar a transição. Porém, como me explicou Naomi Klein,

“a verdade nua e crua é que nós ambientalistas não podemos ganhar a luta pela redução de emissões sozinhos. Para ganhar, vai ser necessário formar alianças além da bolha verde — com sindicatos, movimentos pela moradia, organizações de justiça racial, professores, trabalhadores dos transportes, enfermeiros, artistas e muito mais. Mas, para formar tal coalizão, o ativismo climático precisa manter a promessa de melhorar hoje, não num futuro distante, a vida cotidiana de quem já está marginalizado. As pessoas vão lutar com muito mais força por casas acessíveis e verdes, com água limpa e segura do que pelo mercado de carbono.”

Tais princípios precisam ser aplicados em todo o mundo, tanto por justiça elementar quanto por que resolver a crise climática apenas nos EUA seria a mais pírrica das vitórias — não é por acaso que se fala em “aquecimento global”. Em Glasgow, me reuni com Mohamed Nasheed, ex-presidente das Maldivas e atual presidente do Majlis, a assembleia legislativa daquele país. Há décadas ele está na crista da onda da ação climática porque o ponto mais elevado de seu país — um arquipélago esparramado junto ao equador, no Oceano Índico — fica poucos metros acima do nível do mar. Na COP-26, ele foi o representante do Fórum Climático Vulnerável, consórcio de 55 países que têm mais a perder com a elevação das temperaturas.

Ele ressalta que os países pobres têm se afundado em dívidas na tentativa de lidar com os efeitos da mudança climática. Se esses países precisam realocar um aeroporto ou construir barreiras marinhas, ou se recuperar de um furacão devastador ou inundações recordistas, fazer um empréstimo pode ser sua única alternativa. São empréstimos cada vez mais caros pois, por causa dos riscos climáticos, os credores fazem cada vez mais exigências. Os juros sobre empréstimos para o clima podem chegar a 10%, afirma Nasheed. Ao mesmo tempo, alguns países já comprometem 20% de seus orçamentos para pagar juros de dívidas. Ele sugere que é hora de perdoar as dívidas de países pobres.

A redução acelerada nos preços de energias renováveis pode possibilitar a participação de todo mundo. Entretanto, até agora os países ricos nem levantaram os fundos climáticos que prometeram ao Sul Global há mais de uma década nem fizeram qualquer tipo de compensação pelos danos contínuos que causam. Vale lembrar que toda a África sub-saariana é responsável por menos de 2% das emissões de carbono que aquecem o planeta atualmente; os EUA respondem por 25% das emissões.

A EcoEquity, organização de Tom Athanasiou sediada em Berkeley e parte do Climate Equity Reference Project, fez a análise mais detalhada sobre quem devem o quê a quem na disputa climática. Os resultados indicam que os EUA teriam que reduzir suas emissões em 175% para compensar os danos que já causou — o que é estatisticamente impossível. Portanto, a única maneira de fechar essa conta é ajudar todo mundo a fazer a transição para a energia limpa, suportando os custos que o aquecimento global já produziu. “O trabalho urgente de descarbonização só será abraçado pela população do Sul Global” — esclarece Athanasiou — “se fizer parte de um pacote que inclua subsídios à adaptação e resgate aos desastres.”

LÁ NO COMEÇO, eu disse que existe uma sublime excepção à regra de que devemos apagar os incêndios. É o uso das chamas para controlar as chamas, uma forma de manejo do solo e uma habilidade desenvolvida durante milênios pelos habitantes nativos de boa parte do mundo. De todos os incêndios na Terra, nada é mais assustador do que as conflagrações que queimam o Oeste árido [dos EUA], o Mediterrâneo, as florestas de eucalipto da Austrália e os bosques boreais da Sibéria e do Canadá. No verão passado, incêndios florestais no Oregon, em Washington e na Colúmbia Britânica poluíam o ar do outro lado do continente, em Nova York e na Nova Inglaterra. Fumaças de incêndios no extremo-norte da Rússia cobriam o céu sobre o Polo Norte.

Para os moradores dessas regiões, o fogo tornou-se uma fonte de terror psicológico durante os meses quentes e secos — e tais meses são cada vez mais numerosos a cada ano. Em San Francisco, o Chronicle perguntava a seus leitores se algumas partes da Califórnia, outrora considerados o idílio do país, não teriam se tornado praticamente inabitáveis. Na Sibéria, nem o ar gélido do último inverno foi capaz de sufocar as chamas: os pesquisadores observaram “incêndios zumbi”, queimando e fumegando debaixo de metros de neve. Não há dúvida de que a crise climática intensifica esses grandes infernos — e que a crise também se intensifica com eles, que colocam enormes nuvens de carbono no céu.

Tampouco há dúvidas de que, pelo menos no Oeste [dos EUA] os fogos atiçados por nosso clima mutante alimentam-se de um acúmulo de combustível deixado por uma rigorosa política de conservação, que trata qualquer chama como ameaça a ser extinta imediatamente. Essa política ignora os milênios de experiência dos indígenas, que usam o fogo como ferramenta, uma experiência que de repente ganha muita importância. Ao redor do mundo, os povos indígenas estão na linha de frente do movimento climático. Muitas vezes, eles têm sido hábeis na adoção rápida da energia renovável. Mas eles também foram, no passado, capazes de combater fogo com fogo: queimando quando o risco é baixo, num esforço para manejar terrenos pela segurança e pela produtividade.

Frank Lake é descendente da tribo Karuk, situada onde hoje é o norte da Califórnia. Ele trabalha como ecologista do Serviço Florestal americano e está ajudando a recuperar esta antiga tecnologia. Lake descreve uma queima controlada, feita no outono de 2015, perto de sua casa, no rio Klamath. “Tenho um legado de castanheiras em minha propriedade”, conta. Esses grandes carvalhos forneciam alimento para as populações tribais no passado. Mas as árvores estavam sendo atrapalhadas por arbustos de crescimento rápido. Lake prossegue em seu relato:

Tínhamos uma brigada de incêndio com umas vinte e tantas pessoas ali naquele dia. Todos tinham seus equipamentos, suas mangueiras. E eu passei a orientação da operação, explicando: “Vamos queimar hoje para reduzir combustíveis perigosos. Também poderemos colher castanhas com mais facilidade, sem o mato e sem as pragas que atacam as árvores.” Minha esposa estava lá, com meu filho de 5 anos e a minha filha de 3. Eu acendi um galho de um pinho-doce atingido por um raio — o pinho tira seu remédio do raio — e assim acendi as tochas de todo mundo, e todos foram fazer a queima. Meu filho andou pela linha do fogo, acompanhando o chefe da brigada.

Lake trabalha no Serviço Florestal ajudando as tribos a retomar as queimadas controladas. Nem sempre é fácil. Algumas comunidades foram tão dizimadas pela experiência colonial que perderam todas as suas tradições. Existem alguns importantes bolsões de conhecimento residual, especialmente entre os idosos. Mas, como conta Lake, os anciãos relutam em compartilhar seus conhecimentos, sob “temor de que vão ser enganados e deixados de fora da liderança e tomada de decisões”.

Entretanto, nos últimos anos, a Indigenous Peoples Burning Network — rede formada por diversas tribos, a Nature Conservancy e agências oficiais, como o Serviço Florestal — cresceu lentamente país afora. Seus postos se encontram no Oregon, em Minnesota, no Novo México e em outras partes do mundo. Lake já foi até a Austrália para aprender com as práticas aborígenes. Lá, conta, “é uma queima de nível familiar. As crianças recebem um isqueiro e queimam um pedacinho da área de eucaliptos. Os adolescentes controlam uma área maior e os adultos, maiores ainda. Vi como isso tudo se desenvolve.” À medida que o conhecimento e a confiança são recuperados, é possível imaginar um mundo onde apagamos a maior parte das chamas feitas pelo homem enquanto povos indígenas nos ensinam o usar o fogo com a mesma responsabilidade dos tempos de sua descoberta.

Amy Cardinal Christianson, que trabalha para o equivalente canadense do Serviço Florestal, faz parte da nação Métis. Sua família mantinha um pedaço de terra perto de Fort McMurray, no norte de Alberta, mas tiveram que se mudar para a cidade por causa da convulsão causada pelo desenvolvimento do complexo de areias betuminosas — aqueles 173 bilhões de barris que Justin Trudeau disse que nenhum país deixaria no chão; aquele poço de carbono tão vasto que o climatologista James Hansen disse que bombeá-lo do subsolo seria o “game over para o clima”.

Os incêndios industriais atiçados pelo empreendimento ajudaram a aquecer a Terra e um resultado realmente aterrorizante foi o incêndio florestal que devastou Fort McMurray em 2016, após um período de temperaturas anormalmente altas na região. A conflagração causou a evacuação de 88 mil pessoas e tornou-se o desastre mais caro da História do Canadá. “O que vemos agora é fogo ruim”, afirma Christianson. “Quando falamos de retomar o fogo na terra, falamos do fogo bom. Ouvi um ancião falar de um incêndio de baixa intensidade, um fogo ao lado do qual era possível caminhar.” Um fogo que forma um mosaico de paisagens que, por sua vez, servem como barreiras naturais contra as chamas. Um fogo que abre espaço para o florescimento da vida selvagem. “O fogo é uma espécie de remédio para a terra. E ele permite que você leve sua cultura adiante — e é exatamente por isso que você está no mundo.”

BILL MCKIBBEN se descreve como “escritor, educador e ambientalista”. É fundador do movimento climático 350.org e já foi homenageado por biólogos que deram seu nome a uma espécie de mosquinha (Megophthalmidia mckibbeni). Bill é colaborador da revista ‘New Yorker’, onde é responsável por ‘The Climate Crisis’, boletim do periódico sobre o tema. O presente artigo foi publicado originalmente na ‘New Yorker’ em 18/03/2022.

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Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.