O Mistério das Pessoas que Falam Dezenas de Línguas

O que os hiperpoliglotas podem nos ensinar?

Renato Pincelli
25 min readJun 21, 2020

Por Judith Thurman, para a New Yorker [setembro/2018]. Tradução de Renato Pincelli.

LUIZ MIGUEL ROJAS-BERSCIA, doutorando do Instituto Max Planck de Psicolinguística, na cidade holandesa de Nijmegen, tomou um voo para Malta a fim de aprender Maltês durante uma semana do mês passado. Ele tinha uma pesada gramática em sua mochila, mas não pretendia usá-la a menos que fosse necessário. “Vamos fazer como se eu estivesse na Amazônia”, explicou-me, em referência ao seu trabalho de campo como linguista. Nosso plano era assim: eu iria observá-lo enquanto ele aprendia uma nova língua, começando pelo “olá” e o “obrigado”.

Rojas-Berscia é um peruano de 27 anos, com rostinho de menino e cabelo espetado. Um amigo havia lhe dado um novo par de brincos, que ele usou em Malta com regatas vistosas e um colar de corrente. Ele parecia um jovem e descolado turista qualquer — exceto por sua intensa concentração, usando todos os sentidos, com a qual ele mergulha no novo ambiente.

A linguística é uma disciplina extraordinariamente cerebral. Numa conferência em Nijmegen, às vésperas de nossa viagem a Malta, havia papers sobre “as similaridades anatômicas nos aparelhos fonatório de humanos e focas” e “memória declarativa hipocampo-dependente”, além de uma análise neuropsicológica da fala e do processamento de som no cérebro de beatboxers. [para os interessados, este tradutor já escreveu sobre a ciência do beatbox em seu blog de divulgação científica]

A pesquisa de doutorado de Rojas-Berscia, com o povo Shawi, na floresta peruviana, não envolve imagens de ressonâncias ou modelos de computação, mas ainda é misteriosa para os leigos. “Estou desenvolvendo uma teoria de mudança de linguagem chamada Abordagem do Fluxo”, explicou ele numa noite, cercado pelas pannenkoeken (panquecas) que são a especialidade de uma pousada nos arredores da cidade. “Um fluxo é um dinamismo que envolve um fato social e um impacto, seja funcional ou formal, na competência linguística.”

A competência linguística, aliás, foi o que despertou meu interesse em Rojas-Berscia. Ele é um hiperpoliglota, com domínio sobre 22 línguas (Espanhol, Italiano, Piemontês, Inglês, Mandarim, Francês, Esperanto, Português, Romeno, Quéchua, Shawi, Aimará, Alemão, Holandês, Catalão, Russo, Hakka Chinês, Japonês, Coreano, Guarani, Farsi e Sérvio), das quais ele tem fluência em 13. Ele também conhece seis línguas clássicas ou em vias de extinção: Latim, Grego Antigo, Hebraico Bíblico, Shiwilu, Muniche e Selk’nam, idioma dos nativos da Terra do Fogo, que foi o tema de sua dissertação de mestrado. Fizemos nosso primeiro contato há três anos, quando eu estava escrevendo sobre um jovem chileno que se considerava o último falante vivo de Selk’nam. Como essa alegação poderia ser verificada? Basicamente, descobri, só por Rojas-Berscia.

Façanhas superlativas sempre são impressionantes para os meros mortais. Talvez, em parte, porque elas contam como uma vitória para todo o Time Homo Sapiens: elas redefinem o que é humanamente possível. Se o ultramaratonista Dean Karnazes pode correr 355 milhas [571 km] sem dormir, você pode se inspirar a dar uma corridinha pelo quarteirão. Se Rojas-Berscia pode falar 22 línguas, talvez você possa dar um tranco no seu Espanhol do colégio, Hebraico de Bat-Mitzvah ou aprender o mínimo de Coreano da vovó para entender as histórias dela.

Essa é a promessa de programas de ensino de línguas online, como Pimsleur, Babbel, Rosetta Stone e Duolingo: no cérebro de cada monoglota existe um poliglota adormecido — um gênio que, com um esfregar de lâmpada, pode ser despertado. Testei essa suposição no início da minha pesquisa, ao me matricular no Duolingo para aprender Vietnamita (o app é gratuito e eu estava curiosa quanto aos desafios de uma língua tonal). Percebi que sou boa no olá — chào — mas o obrigado — càm o’m — é mais difícil.

O termo “hiperpoliglota” foi cunhado há duas décadas por um linguista britânico, Richard Hudson, que estava lançando uma busca pela internet para encontrar o maior aprendiz de línguas do mundo. Mas o fenômeno e sua mística são bem antigos. No Novo Testamento, em Atos, 2, os discípulos de Cristo recebem o Espírito Santo e de repente passam a “falar em línguas” (glossais lalein, em Grego), pregando nos idiomas de “cada nação sob o céu”. Segundo Plínio, o Velho, o rei greco-persa Mitrídates VI, que dominou 22 nações no século I a.C., “administrava suas leis em tal número de línguas e podia arengar em cada uma delas”. Plutarco afirmou que Cleópatra “raramente tinha necessidade de um intérprete” e foi a única monarca de sua dinastia grega a ser fluente em Egípcio. Diz-se que Elizabeth I também teria dominado as línguas de seus reinos — Galês, Cornualho, Escocês, Irlandês, além de outras seis.

Com apenas dez línguas, a Rainha de Shakespeare não se classifica como hiperpoliglota — o limite aceitável é de onze. A proeza de Giuseppe Mezzofanti (1774–1849) é ainda mais estonteante e bem documentada. Mezzofanti, um cardeal italiano, era fluente em pelo menos 30 línguas e estudou outras 42, incluindo, segundo ele, o Algonquin [língua de uma tribo norte-americana]. Durante as décadas em que ele morou em Roma, onde foi guardião-chefe da Biblioteca do Vaticano, notáveis do mundo todo apareciam para interrogá-lo em suas línguas maternas. Ele esvoaçava entre os convidados como uma abelha num roseiral.

Lord Byron, que falaria Grego, Francês, Italiano, Alemão, Latim e um pouco de Armênio, além do seu imortal Inglês, perdeu uma disputa de xingamentos com o cardeal e mais tarde, admirado, chamou-o de “monstro”. Outras testemunhas ficaram menos encantadas, comparando-o a um papagaio. Mas seus dons foram certificados por um estudioso irlandês e um filólogo inglês — Charles William Russell e Thomas Watts, respectivamente — , que criaram um padrão de fluência que continua a ser útil para verificar as alegações dos Mezzofantis modernos: será que eles conseguem falar com uma liberdade sem afetações, que transcenda o mimetismo puro e simples?

MEZZOFANTI era filho de um carpinteiro e pegou o Latim por ficar do lado de fora de um seminário, ouvindo os meninos recitar suas conjugações. Rojas-Berscia, por sua vez, cresceu num lar trilíngue e sua família vive confortavelmente em Lima. Seu pai é um empresário peruano; sua mãe, gerente de loja de origem italiana; e sua avó materna, que cuidou dele na infância e lhe ensinou Piemontês. Ele aprendeu Inglês na pré-escola e o fala impecavelmente, com a mesma leve inflexão latina — mais um quê de alteridade do que sotaque — que juro que ele tem em cada língua que fala.

O Maltês estava em sua lista de desejos há algum tempo, junto com o Uigur e o Sânscrito. “O que acontece é o seguinte…” — declarou ele ao jantar num restaurante chinês em Nijmegen, onde proseava em Mandarim com o proprietário, em Holandês com o garçom e alternando entre Francês e Espanhol com um colega do Instituto — “Eu sou um amoreux de langues. E quando me apaixono por uma linguagem, tenho que aprendê-la. Não existe motivo prático, é quase uma brincadeira.” Um amoreux, nota-se, cobiça seu bem-amado de corpo e alma.

A minha modesta competência em línguas estrangeiras (falo três) não é nada para se gabar em muitas partes do mundo, onde o poliglotismo é a norma. As pessoas que vivem em encruzilhadas culturais — melanésios, sul-asiáticos, latino-americanos, centro-europeus, africanos subsaarianos e milhões de outros entre os quais os malteses e os shawi — adquirem línguas sem considerar que isso seja uma realização notável. Saindo de Nova York, a caminho dos Países Baixos, ouvi um taxista ganês papeando no celular em uma língua tonal que não reconheci. “É Hauçá”, contou-me. “Falo isso com meu pai, cuja família vem da Nigéria. Mas falo Twi com minha mãe, Ga com meus amigos, um pouco de Ewe e o Inglês é nossa lingua franca. Se o pessoal de Chelsea falasse uma coisa e o de Soho, outra, os nova-iorquinos também seriam multilíngues.”

Em termos linguísticos, esse taxista está mais próximo de um cidadão típico do planeta do que o americano médio. Considere o caso de Adul Sam-on, um dos jovens futebolistas resgatados em Julho passado na caverna de Mae Sai, na Tailândia. Adul cresceu em extrema pobreza, na fronteira porosa da Tailândia com o Myanmar e o Laos, onde diversas populações se sobrepõem. Sua família pertence a uma minoria étnica, os Wa, que fala uma língua austro-asiática que também se espalha por partes da China. Além do Wa, segundo o Times, Adul também é “proficiente” em Tailandês, Burmês, Mandarim e Inglês — o que permitiu-lhe servir de intérprete para os dois mergulhadores britânicos que descobriram o time preso na caverna.

Quase dois bilhões de pessoas estudam o Inglês como língua estrangeira — cerca de quatro vezes o número de falantes nativos. Apps como o Google Translate tornam possível se comunicar, em quase qualquer lugar, digitando as conversas num smartphone (e supondo que seu interlocutor saiba ler). Porém, ironicamente, à medida que o Inglês diminui a necessidade de falar outras línguas para trabalhar ou viajar, a autenticidade ligada ao aprendizado [desses idiomas] parece crescer.

No mundo online, prosperam as comunidades de linguófilos ardentes, que são ou almejam ser poliglotas. Eles buscam inspiração em grupos do Facebook, vídeos do YouTube, salas de chat e gurus linguísticos como Richard Simcott, um carismático hiperpoliglota britânico, que organiza anualmente a Conferência Poliglota. Esse evento tem sido realizado, em vários continentes, desde 2009, atraindo centenas de aficionados. As palestras são geralmente em Inglês, mas os participantes usam crachás que listam as línguas em que estão prontos para conversar. A de Simcott diz, jocosamente, “Try Me [Desafie-me]”.

Ninguém vira um hiperpoliglota por osmose, sem sacrifícios — é um feito raro, hercúleo. Rojas-Berscia, que abriu mão de uma carreira promissora no tênis que interferia em seus estudos de línguas, reconhece que existem “uns vinte de nós na Europa e todos nos conhecemos, ou conhecemos algum conhecido em comum.” Ele me pôs em contato com alguns de seus pares, como Corentin Bourdeau, jovem linguista francês que tem o Wolof, o Farsi e o Finlandês entre suas onze línguas; e Emanuele Marini, um italiano tímido e quarentão, que mantém uma firma de importação e exportação e fala quase todas as línguas Românicas e Eslavas, além de Árabe, Turco e Grego, totalizando quase trinta. Nenhum deles usa intencionalmente o Inglês, pois se ressentem de seu status de valentão linguístico global — sua prepotenza, como me diz Marini, em Italiano. Ellen Jovin, uma nova-iorquina dinâmica, considerada a “madrinha” da comunidade poliglota, me explicou que sua avidez no estudo de línguas — quase 25, até agora — “é quase um pedido de desculpas pela dominância do Inglês. O poliglotismo é a antítese do chauvinismo linguístico.”

Boa parte dos dados sobre os hiperpoliglotas ainda são incompletos. Mas, partindo de uma pequena amostra de prodígios que foram examinados pelos neurolinguístas, responderam a questionários online ou compartilharam suas experiências em fóruns, o que emerge é um perfil parcial. Um aprendiz de línguas extremo tem uma chance acima da média de ser um homem gay, canhoto, no espectro autista e com uma doença autoimune, como asma ou alergia (a pesquisa endócrina ainda é inconclusiva, mas investiga-se a hipótese de que essas características estariam ligadas a um pico de testosterona durante a gestação). “É verdade que o pessoal LGBT está bem representado em nossa comunidade”, disse-me Simcott quando nos falamos, em Julho. “E muita gente se identifica como parte do espectro [autista], alguns mais, outros menos. Foi um assunto que exploramos na conferência do ano passado.”

Aos 41 anos, o próprio Simcott é ambidestro, heterossexual e notavelmente extrovertido. Ele vive na Macedônia com a esposa e uma filha, uma flor poliglota de 11 anos que era, segundo ele contou, trilíngue aos 16 meses. Embora seus pais sejam monoglotas, ele era fascinado, quando garoto, “pelas diferentes formas que as pessoas falam Inglês”. Como Henry Higgins, Simcott pode ligar um sotaque a um ponto preciso do mapa, não só das Ilhas Britânicas, mas de toda a Europa. [Personagem de Pigmalião, de George Bernard Shaw, Henry Higgins é um professor de fonética que aposta ser capaz de transformar uma moça inglês cockney, “da quebrada”, em falante de um inglês impecável]. “Me tomam por nativo em umas seis línguas”, disse-me, acrescentando que começou aos poucos, aprendendo Francês na escola e Espanhol na adolescência. Na universidade, ele acrescentou o Italiano, o Português, o Sueco e o Islandês Antigo à sua lista. Seu Alemão infalível foi adquirido após o ensino superior, em paridade com o Holandês, o que foi moleza.

Simcott chegou ao fim da adolescência quando “a internet estava começando a pegar” e assim podia praticar suas línguas em salas de bate-papo. Ele descobriu um senso de identidade que havia sido fugidio. Especificamente, havia um poliglota misterioso, que o assombrava nas mesmas salas. “Ele foi a primeira pessoa que realmente me encorajou”, contou Simcott. “Todo mundo me dizia que ou minha cabeça ia explodir ou que eu era um cavalo falante. Eventualmente, fiz um vídeo usando peças e pedaços de 16 línguas, para não ter que ficar me repetindo.” Mas foi o desconhecido que deu uma validação a Simcott, algo que ele recorda com emoção. Em parte, ele fundou a conferência como forma de pagar sua dívida, criando uma espécie de clube para o tipo de moleque nerd que ele havia sido, para quem nenhuma língua era estrangeira, mas nenhum lugar era o lar.

Diversos hiperpoliglotas são savants reclusos, que entesouram suas línguas em vez de usá-las para se comunicar. Os mais extrovertidos podem trabalhar como tradutores ou intérpretes. Helen Abadzi, pedagoga grega que fala 19 línguas “pelo menos num nível intermediário” passou décadas no Banco Mundial. Kató Lomb, uma autodidata húngara, aprendeu 17 idiomas — o Hebraico foi o último, já em seus oitenta e tantos anos — e foi uma das primeiras intérpretes simultâneas do mundo na meia-idade. Simcott juntou-se ao Serviço Diplomático Britânico. Em viagens a negócios pelo Iêmen, Bósnia e Moldávia, ele pegou um pouco de suas línguas. Todo verão, ele se propõe um desafio: aprender uma nova língua de propósito, seja por um curso universitário — como fez com Mandarim, Japonês, Checo, Árabe, Finlandês e Georgiano — ou por meio de uma gramática e um tutor.

Por mais diferentes que sejam, todos os hiperpoliglotas que conheci torceram o nariz para a mesma pergunta: “Quantas línguas você fala?” Para Rojas-Berscia, o motivo é parcialmente semântico: o que o verbo “falar” significa? Também há motivação política. As gramáticas e dialetos padronizados geralmente são os mesmos da classe dominante. E a questão ainda é cercada pelo “chauvinismo” ao qual Ellen Jovin sente-se obrigada a resistir.

Nos filmes, a prova de fogo dos espiões é “passar por um nativo”, mesmo que os nativos anglófonos de Glasgow, Trinidad, Delhi, Lagos, Nova Orleans e Melbourne (para não falar do East End de Eliza Doolittle [outra personagem de Pigmaleão]), soem todos estrangeiros uns para os outros. “Ninguém domina todas as nuances de uma linguagem”, argumenta Simcott. “Este é um padrão falso, que costuma ser levantado, ironica e principalmente, pelos monoglotas — e pelos americanos, em particular. Então, podemos dizer que eu estudei mais de cinquenta [línguas] e uso cerca de metade delas.”

A BUSCA CASUAL de Richard Hudson pelo hiperpoliglota definitivo não deu em nada, mas o levou ao jornalista americano Michael Erard, que embarcou na mesma missão de modo mais metódico. Doutorado em Inglês, Erard passou seis anos lendo a literatura científica e entrevistando seus autores, visitando arquivos (inclusive o de Mezzofanti, em Bolonha) e rastreando todo e qualquer prodígio linguístico vivo de que ouvisse falar. Foi sua pesquisa online, conduzida em 2009, que gerou o primeiro panorama sistematizado da virtuosidade linguística. Cerca de 400 respondentes deram informações sobre seus gêneros e orientações, entre outros detalhes pessoais, incluindo o QI (que era acima da média). Destes, quase metade falavam pelo menos sete línguas e 17 se classificaram como hiperpoliglotas. A destilação desta pesquisa, Babel No More [Babel Nunca Mais], publicado em 2012, é uma obra de referência essencial — e, de certo modo, é uma etnografia do que Erard chama de uma “tribo neutra”.

A fascinação gerada pelos membros dessa tribo sempre atraiu oportunistas. Existem, por exemplo, os bizglotas e os broglotas, como Erard os chama. Aqueles empurram tutoriais com a promessa duvidosa de que qualquer um pode virar um prodígio enquanto estes se engajam em festas de ostentação online, como se fossem “playboys pós-modernos”.

Meu preferido é George Psalmanazar, cujo nome real é desconhecido, e que foi um vagabundo de origem misteriosa e de uma sem-vergonhice charmosa, que vagou pela Europa no fim do século XVII. Psalmanazar alegava ser, ora irlandês, ora japonês até se afirmar como formosano [i.e., natural de Formosa, antigo nome de Taiwan]. Samuel Johnson [influente lexicógrafo britânico] fez amizade com ele em Londres, onde Psalmanazar publicou um travelogue sobre sua ilha “nativa” com traduções de sua língua — um engenhoso pastiche inventado por ele. Erard perseguiu outro personagem bastante incensado, Ziad Fazah, recordista do Guinness até 1997, que alegava falar 58 línguas com fluência. Fazah se queimou de modo espetacular num programa de TV chileno, falhando ao responder até as questões mais simples que os falantes nativos lhe faziam.

Rojas-Berscia ri desses dramas como “macaquices” e despreza os prodígios que monetizam seus dons. “Onde conseguem tempo para isso?”, pergunta-se o peruano. Em sua pesquisa para Babel No More, Erard questionou seus entrevistados sobre suas rotinas de aprendizado. Embora alguns tenham sido vagos (“aceito os erros e as incertezas; ouço e leio bastante”), outros deram relatos elaborados sobre a criação de “mapas mentais”, o uso de “âncoras de memória” ou a construção de um modelo arquitetônico para cada nova língua, mobiliado com o vocabulário conforme o progresso.

Quando perguntei a Simcott se ele tinha algum segredo, ele parou para pensar sobre o assunto. “Bem, eu não tenho uma memória extraordinária”, respondeu. “Para muitas tarefas, sou apenas mediano. Uma neurolinguista na City University de Nova York, Loraine Obler, fez alguns testes comigo e tive alto desempenho na recordação de listas de palavras sem sentido.” Segundo a pesquisa de Obler, essa habilidade tem forte correlação com o dom para línguas. “Eu também me destaquei na reprodução de sons”, continua Simcott. “Mas quanto mais línguas você aprende, em mais famílias, mais fácil fica. Cada uma cria mais ganchos, que dão apoio.”

Figura lendária na comunidade, Alexander Argüelles alertou Erard: a falta de modéstia é o sinal de um charlatão. Quando Erard se encontrou com ele, há dez anos, Argüelles, americano radicado em Singapura, começava seu dia às três da manhã com um exercício “escritório”: “escrevendo duas páginas cada em Árabe, Sânscrito e Chinês, línguas que ele chama de cabeceiras etimológicas”. Ele prosseguia com outras línguas, de diferentes famílias, até preencher 24 páginas de caderno.

Ao amanhecer, ele saía para uma longa corrida, ouvindo audiolivros e praticando o que chama de shadowing: conforme os sons estrangeiros se derramavam em seus ouvidos, ele os repetia a plenos pulmões. Chegando em casa, ele dedicava seus esforços à gramática e fonética, registrando o tempo devotado a cada idioma em uma planilha do Excel. Erard verificou registros que remontavam a 16 meses, calculando que Argüelles passava 40% do seu tempo desperto estudando 52 línguas, em períodos que variavam de 156 horas (Árabe) a apenas quatro (Vietnamita).

“Pelo que observo, existem três tipos de poliglotas”, explicou o atleta linguístico a Erard. Há os “gênios definitivos, excelentes em qualquer coisa que façam”; os que, como Mezzofanti, “só são bons com línguas” e as “pessoas como eu”. Argüelles recusou-se a se colocar como um caso especial — ele seria apenas um mero stakhanovista [referência a Alexei Stakhanov (1906–1977), mineiro soviético condecorado por bater 14 vezes sua meta de extração; o stakhanovismo, portanto, seria o equivalente soviético do trabalhador compulsivo ou workaholic]

De ar ponderado, Erard é um homem de 50 anos com cara de menino e um dom para ouvir que preza nos outros. Nos conhecemos em Nijmegen, no Instituto Max Planck, onde ele terminava seu período de um ano como escritor-residente e aguardava retornar ao Maine com sua família. “Só depois de concluir o livro percebi que muitas das histórias tinham uma linha em comum”, contou-me. Nós caminhávamos pelos bosques ao redor do instituto, ouvindo os vibrantes gorjeios primaveris, uma babel de vozes. Seus personagens, refletiu, destacavam-se dos pobres mortais ou por seus neurônios ou por sua obsessão. Eles abraçaram sua alteridade, cultivando-a. Mesmo assim, se é a fala que nos define como humanos, uma capacidade relacionada escapava deles: a habilidade de conexão. Cada nova língua seria um canal em potencial — uma rota de fuga para a solidão. “Não percebi que essa também era a minha história”, confessou.

ROJAS-BERSCIA e eu tomamos um voo barato de Bruxelas para Malta e chegamos à meia-noite. O ar recendia a verão e nosso taxista presumiu que éramos mãe e filho. “Como se diz ‘mãe’ em Maltês?”, perguntou Rojas-Berscia, em inglês. Quando alcançamos o hotel, ele já sabia toda a família em Maltês. Dois recém-casados, ainda em trajes nupciais, acabavam de se registrar. “Como se diz ‘parabéns’?”, pediu Rojas-Berscia. Resposta: nifrah.

Nós estávamos famintos, então largamos nossas mochilas e saímos para um bar. Era uma noite de sábado e as ruas estreitas do bairro estavam abarrotadas de foliões que curtiam uma música ensurdecedora. Eu imaginara algo bem diferente — uma pousada pitoresca numa praça tranquila, talvez com um Cavaleiro de Malta em bronze sob uma buganvília.

Mas não é fácil distrair Rojas-Berscia. Ele tomou seu caderninho e anotou depressa os termos familiares que acabara de aprender. Depois, checou seu telefone: “Mandei mensagem para o guia linguístico que arranjei para nós”, explicou. “Ele é um personal trainer que encontrei online e vou começar a malhar com ele amanhã. Uma academia é um bom lugar para pegar as preposições de direção”. O treinador veio e tomou uma com a gente; ele se vestia de modo afetado, com um mullet laqueado, e havia algo suspeito em seus modos. Rojas-Berscia havia marcado uma sessão com pagamento antecipado, mas, no dia seguinte, o treinador não apareceu. Pelo visto ele tinha outro tipo de trabalho…

Eu não esperava que Rojas-Berscia dominasse o Maltês em uma semana, mas fiquei surpresa com sua abordagem improvisada. Ele passou vários dias bisbilhotando as conversas dos nativos em mercados e cafés e, numa longa viagem de ônibus, banhando-se no mar morno de suas vozes. Se tomássemos um táxi para alguma igreja ou ruína, ele atirava para todos os lados, pedindo ao motorista que lhe ensinasse algumas frases comuns ou contasse uma piada. Ele não registrava tais encontros, mas os usava como base para começar uma conversa no próximo táxi ou loja.

Os hiperpoliglotas, escreveu Erard, apresentam um “desejo de plasticidade” imperativo, com plasticidade no sentido cerebral. Mas o que eu estava vendo era um tipo diferente de plasticidade, algo que eu já havia possuído. Nos meus vinte e poucos anos, aprendi duas línguas simultaneamente, a primeira “dormindo com meu dicionário”, como diriam os franceses; a segunda ao beber bastante vinho e me dispor a parecer tonto ao tagarelar com estranhos. Com o tempo, perdi esse dom de ser atirada. Esse havia sido meu problema com o Vietnamita. Não basta falar uma língua, é preciso morar nela e a fluência às vezes exige um ato dramático. Em vez de mirar uma tela, eu deveria ter ido curtir na Little Saigon de Nova York.

Os malteses ficaram tão embevecidos pelo interesse de Rojas-Berscia em sua língua quanto confusos por seus motivos — em que ela lhe seria útil? A história deles indica uma resposta. O arquipélago de Malta é quase literalmente um trampolim da África para a Europa (enquanto estávamos ali, o governo rejeitou uma barca cheia de refugiados). Seus habitantes mais antigos que se conhecem eram agricultores neolíticos, que foram sucedidos pelos construtores de um complexo de templos em Gozo, cujos misteriosos megalitos ainda existem.

Por volta de 750 a.C., os mercadores fenícios estabeleceram ali uma colônia, que foi conquistada pelos romanos. Estes foram varridos pelos bizantinos, que foram chutados pelos Aglábidas — uma comunidade de árabes vindos do Emirado Islâmico da Sicília no século XI, tão entrincheirada que as ondas de reconquista cristã — normandos, suábios, aragoneses, espanhois, sicilianos, franceses e britânicos — não conseguiram apagar. É deles a língua em que se origina a gramática do Maltês e um terço de seu vocabulário, fazendo desta a única língua semítica da União Europeia. O Hebraico de Rojas-Berscia ajudou-o com os plurais, as conjugações e algumas raízes. Quanto ao resto do vocabulário, quase metade vem do Italiano, com muitos empréstimos do Inglês e do Francês. “A gente devia ter começado o Uighur”, provoquei o linguista. “Isso é muito fácil para você.”

DE FATO, foi a linguística que deu a Rojas-Berscia as armas que os civis não têm. Mas ele foi, em parte, levado à linguística por sua aptidão para sistematizar. “Eu não consigo me lembrar de nomes”, contou-me, ainda que sua memória para a palavra falada seja sobrenatural. Enquanto planejávamos a viagem ele reconheceu que “vai me levar um dia para aprender o essencial”. Esse essencial inclui “a formação de predicados, como quantificar, negação, pronomes, números, qualificação — bom, mau, etc. Alguns operadores lógicos — mas, porque, portanto. Verbos copulares, como ser e parecer. Verbos de sobrevivência básica, como precisar, comer, ver, beber, querer, andar, comprar, estar doente. Além de um belo pacotinho de substantivos. Daí, nosso guia me dá um paradigma — eu como uma maçã, você come uma maçã — e voilà.” Foi isso que, percebi, eu havia conquistado no Vietnamita — tôi ăn một quả táo — mas isso havia me custado seis meses.

Entretanto, não foi fácil encontrar o guia certo. Eu sugeri buscar a universidade. “Somente se não tiver jeito”, recusou Rojas-Berscia. “Eu prefiro evitar os intelectuais. Quero a linguagem coloquial, de rua, não o Maltês livresco.” E como ele faria isso na Amazônia? “O trabalho de campo monoglota sobre línguas indígenas, sem o ponto de referência de uma lingua franca, é mais difícil mas bonito.”, esclareceu. “Você começa ao criar laços com as pessoas, aprendendo a cumprimentá-las adequadamente e observando seus gestos. As regras de comportamento são pelo menos tão importantes quanto as da gramática para a linguística cultural. Não é uma questão de encontrar o algoritmo. O objetivo é tornar-se parte de uma sociedade.”

Após a debacle com o “treinador”, saímos a procurar voluntários dispostos a passar mais ou menos uma hora regada a bebida ou café. Fizemos audições com um tatuador de dreadlocks loiros, um estudante de fisiologia de Valletta, um garçom em Gozo e uma senhorinha minúscula que vendia ingressos para as catacumbas junto a Mdina (locação de King’s Landing em Game of Thrones). Como quase todos os malteses, eles falavam um Inglês bom, mas Rojas-Berscia valorizava seus erros. “Quando alguém diz He is angry for me, você aprende algo sobre sua linguagem — isso representa uma convenção no Maltês. A riqueza de convenções de uma língua é a barreira mais elevada para quem quer soar como um nativo.”

Em nosso terceiro dia, Rojas-Berscia entrou em contato com um amigo maltês do Facebook, que nos convidou para jantar em Birgu, cidade medieval fortificada pelos Cavaleiros de Malta no século XVI. O porto, protegido, agora é uma marina para super-iates, mas um enrugado barqueiro ainda transporta viajantes mais humildes entre os cais de Birgu e Senglea, na costa oposta. No quebra-mar se enfileiravam os velhos palácios de calcário coralino, cujas fachadas incandesciam ao pôr-do-sol. Pedimos um vinho maltês e nos misturamos ao cenário. Mas assim que Rojas-Berscia abriu seu caderninho, sua atenção ficou concentrada feito um laser. “Por favor, não me diga se esse verbo é ou não é regular”, pediu ao amigo, que estava sendo bastante solícito. “Quero que meu cérebro faça a operação de classificar.”

O CÉREBRO DE Rojas-Berscia é de grande interesse para Simon Fisher, seu veterano no instituto e neurogeneticista de renome internacional. Em 2001, Fisher, então em Oxford, fez parte da equipe que descobriu o gene FOXP2 e identificou uma mutação simples e herdável, responsável pela dispraxia verbal, um sério transtorno linguístico. Na imprensa popular, o FOXP2 tem sido erroneamente apresentado como “o gene da linguagem” e como a evidência há muito esperada para a famosa teoria de Noam Chomsky, segundo a qual foi uma mutação espontânea que deu ao Homo sapiens a capacidade de falar e uma programação para a sintaxe. No entanto, outros animais, como os pássaros canoros, também carregam uma versão do gene. A maioria dos pesquisadores que encontrei consideram que a linguagem é provavelmente, como diria Fisher, “um híbrido bio-cultural” — algo com uma gênese mais complicada do que Chomsky gostaria. A questão estimula acalorados debates.

Em Nijmegen, o laboratório de Fisher concentra-se nas patologias que perturbam a fala, mas ele começou a procurar por variedades de DNA que possam estar relacionadas ao virtuosismo linguístico. Uma dessas distinções já foi descoberta pela neurocientista Sophie Scott: um loop extra de matéria cinzenta, presente desde o nascimento, no córtex auditivo de alguns foneticistas. “A genética do talento é um território inexplorado”, declarou Fisher. “É difícil enquadrar esse conceito num experimento. Também é um tema sensível. Mas não se pode negar o fato de que seu genoma te predispõe de algumas maneiras.”

A genética do talento pode ser uma pedra no sapato dos linguófilos que aspiram a ser Mezzofantis. Estudos intergeracionais são o próximo estágio da pesquisa e eles devem estabelecer em que grau a genialidade linguística é coisa de família. Argüelles é filho de um poliglota e Kató Lomb também foi. A filha de Simcott pode contribuir para uma ciência ainda na infância. Enquanto isso, Fisher está recrutando exemplares como Rojas-Berscia e colhendo a saliva deles. Ele espera que, quando a amostra for grande o suficiente, possa gerar algumas conclusões. “Nós precisamos estabelecer o ponto de corte exato”, explicou. “Tendemos a pensar que deveriam ser 20 línguas, em vez das tradicionais 11. Mas há uma vantagem: com um número mais baixo, temos uma coorte maior”.

Perguntei a Fisher sobre outro ponto determinante: o período crítico para adquirir uma língua sem sotaque. O senso comum diz que, passada a puberdade, perde-se a chance de se tornar um espião. Fisher explicou porque isso é verdade para a maioria. O cérebro, diz, sacrifica a maleabilidade para ganhar estabilidade à medida que amadurece. Tão logo você domina sua língua materna, não precisa daquela plasticidade fonética da infância e um cérebro típico dá outro uso àquele circuito.

Mas Simcott aprendeu três das línguas em que passa por nativo após os 20 anos. Corentin Bourdeau, que cresceu no sul da França, seria tomado por local tanto em Lima quanto em Teerã. Experiências sobre a extensão ou restauração da plasticidade, uma esperança para tratar muitos distúrbios sensoriais, também podem levar a novas oportunidades para esclarecimento. Takao Hensch, em Harvard, descobriu que o Valproato, droga usada no tratamento de epilepsia, enxaquecas e transtorno bipolar, pode reativar o período crítico de desenvolvimento visual em ratos. Fisher se pergunta se isso funcionaria para a fala. “Não sabemos ainda”, ele mesmo responde.

PARTI COM Rojas-Berscia no trem de Bruxelas para Nijmegen, onde desci e prossegui até o aeroporto de Amsterdã. Ele tinha que ficar e concluir sua tese sobre a Abordagem do Fluxo antes de partir para um trabalho de campo na Austrália, onde planeja estudar línguas aborígenes. Pedi que ele fizesse uma análise de nosso pequeno experimento. “A gramática foi fácil”, admitiu. “A ortografia foi meio difícil e os verbos pareciam caóticos.”

Sua proeza foi estonteante para nossos colegas, mas ele não estava muito impressionado consigo mesmo. Ele conseguia ler pedaços de notícias, ter um bate-papo trivial; provavelmente, aprendeu umas mil palavras. Quando um taxista lhe perguntou se já fazia um ano que ele vivia em Malta, Rojas-Berscia riu de nervoso. “Fiquei lisonjeado, claro. E a animação dele por meu progresso levou-o a nos ajudar”, concluiu. Eu o provoquei: “animação pelo seu progresso”. Foi raro lapso da parte dele.

Uma semana mais tarde, eu estava em outro trem, entre Nova York e Boston. Fisher havia me encaminhado para sua colaboradora, Evelina Fedorenko. Ela é uma neurocientista cognitiva no Hospital Geral de Massachussetts e também cuida, com seus pós-docs, do EvLab, no MIT. Meu primeiro e-mail para ela ricocheteou — ela estava em licença-maternidade. Mas depois ela me escreveu para dizer que teria prazer em me encontrar. Perguntou-me se eu tinha claustrofobia. Se não, acrescentou, eu poderia dar uma volta por sua máquina de fMRI [Imageamento por Ressonância Magnética funcional] e ver o que ela faz com seus hiperpoliglotas.

Fedorenko é pequena e arrumada, com traços delicados e nasceu em Volgogrado, em 1980. “Quando a União Soviética se desfez, estávamos famintos, não foi legal”, recordou. Apesar do pai ser alcoólatra seus pais estavam determinados a ajudá-la a cumprir seus dons excepcionais para matemática e ciência, o que significava deixar o país. Aos quinze anos, ela ganhou uma vaga num programa de intercâmbio bancado pelo Senador Bill Bradley e passou um ano no Alabama. Ela recebeu uma bolsa integral de Harvard em 1998 e acabaria por se formar em Linguística e Psicologia no MIT. Lá, ela conheceu o cientistas cognitivo Ted Gibson, com quem se casou e hoje eles têm uma menina de um ano.

Fui recebido por Fedorenko numa tarde, em sua casa, em Belmont. Ela passa tanto tempo quanto pode com sua bebê, que balbucia feito um passarinho. “Eis a minha pergunta básica: como faço passar um pensamento da minha mente para a sua?” propôs. “Começamos por perguntar como a linguagem se encaixa na arquitetura geral da mente. Ela é uma invenção tardia, em termos evolucionários, e muitos de seus mecanismos cerebrais já existiam.”

As perguntas se sucediam: A linguagem partilha de um mecanismo em comum com outras funções cognitivas? Ou ela será autônoma? Para procurar respostas, ela desenvolveu um conjunto de “tarefas localizadoras”, feitas por meio de uma máquina de fMRI. Seu primeiro objetivo era identificar o “córtex responsivo à linguagem” e as tarefas envolvidas na leitura ou audição de uma sequência de frases, algumas das quais misturadas ou compostas com palavras sem sentido.

O córtex responsivo, comprovou, fica apartado das regiões envolvidas em outras formas de pensamento complexo. Não usamos, por exemplo, as mesmas partes do cérebro para a música e para a fala — o que parece contraituitivo, especialmente no caso de uma língua tonal [como o Vietnamita, por exemplo]. Mas o tom, explicou Fedorenko, tem seu próprio campo neural. E a experiência de vida altera o quadro. “As pessoas alfabetizadas usam uma região de seu córtex para reconhecer letras”, explicou. “Os analfabetos não têm essa região, ainda que ela se desenvolva caso aprendam a ler”.

Para tirar conclusões mais gerais, Fedorenko precisava estudar o modo que as habilidades linguísticas variam entre indivíduos. Acontece que a variação é grande. A intensidade de atividade em resposta aos testes de localização era idiossincrática: alguns cérebros se esforçavam mais do que outros. Isso levantou outra questão: essa atividade reforçada corresponde a uma maior aptidão para línguas? Ou o oposto seria verdadeiro — o córtex de um prodígio linguístico mostraria menos atividade por ser mais eficiente?

Pedi a Fedorenko para dizer se havia alguma razão para acreditar que homens gays, canhotos e no espectro [autista] tinham alguma vantagem cerebral no aprendizado de línguas. “Não estou preparada a aceitar essa evidência como qualquer coisa além de anedótica”, respondeu. “Os homens, para começar, tendem a receber bastante encorajamento para atividades intelectuais.”

Inicialmente, os sujeitos estudados por Fedorenko eram monoglotas em Inglês ou bilíngues, que também falavam Espanhol ou Mandarim. Em 2013, porém, ela examinou seu primeiro prodígio. “Ouvimos falar de um moleque aqui perto que falava umas trinta línguas e o recrutamos”, contou. Ele apresentou-lhe outros gênios, o que levou o estudo de Fedorenko a precisar de material numa amplitude maior de idiomas. A princípio, ela usava trechos da Bíblia, mas Alice no País das Maravilhas mostrou-se mais agradável aos participantes. Assim, o EvLab adquiriu mais de quarenta traduções de Alice e Fedorenko ainda planeja acrescentar tarefas para a linguagem de sinais.

Após 12 anos de pesquisa, a neurocientista tem confiança sobre certas descobertas. Todos os seus sujeitos mostram menos atividade cerebral ao trabalhar em sua língua materna — eles não precisam suar nesse caso. Conforme as línguas dos testes tornam-se mais desafiadoras, geram mais atividade neural, até que se tornam incompreensíveis, o que diminui a atividade — é como se o cérebro escolhesse desistir, diante de uma tarefa cujo esforço é inútil. Os hiperpoliglotas também se esforçam mais diante de uma língua que não é familiar. No entanto, o “esforço” deles é mais leve em comparação com o de pessoas comuns. A vantagem deles parece estar não na capacidade, mas na eficiência. Não importa a dificuldade da tarefa, eles usam uma área menor do cérebro ao processar a linguagem — e quanto menos tecido, menos energia.

Todas as cobaias de Fedorenko, inclusive eu, também passam por um teste de memória não-verbal assustador: os quadrados de uma tabela piscam freneticamente enquanto você tenta se recordar de sua localização. Esse exame ativa uma rede neural distinta do córtex linguístico — é o sistema de função executiva. “Seu papel, em geral, é dar suporte à flexibilidade da inteligência”, explica Fedorenko. Esse tipo de coisa poderia turbinar, digamos, um prodígio linguístico? “As pessoas alegam que aprender línguas te deixa mais esperto”, respondeu. “Infelizmente, não temos evidência para isso. Mas, se você joga uma língua desconhecida para pessoas ‘normais’, o sistema de função executiva delas não responde muito. O dos poliglotas, sim. Talvez eles estejam se debatendo para agarrar um sinal linguístico”. Ou talvez seja ali que mora a genialidade.

A menos que uma dose de Valproato venha a ter efeito, a maioria de nós nunca vai adquirir as 28 línguas de Rojas-Berscia. Quanto ao meu próprio cérebro, achei que o escâner iria detectar uma massa de mac and cheese entremeada com luzinhas de natal de baixa voltagem. Tive certeza disso, após o teste de memória. “Não se preocupe”, consolou-me Matt Siegelman, assistente técnico de Fedorenko. “Todo mundo falha nisso — bem, quase todo mundo.”

Essa gentileza de Siegelman me acordou de minhas aventuras no país das linguagens. Porém, ao sair do laboratório, reparei num exemplar de Alice em Vietnamita. Devo lhes dizer, com orgulho, que pude compreender “coelho branco” (thỏ trắng), “festa do chá” (tiệc trà) e ăn tôi, que — como você deve saber — significa “me coma”. ◼

JUDITH THURMAN é jornalista e começou a contribuir para a “The New Yorker” no longínquo ano de 1987, sendo efetivada como repórter fixa em 2000. Como autora, ela escreveu “Cleopatra’s Nose: 39 Varieties of Desire [O Nariz de Cleópatra: 39 variedades de desejo]”, uma coletânea de ensaios que tratam da monarca egípcia a Anne Frank, tofu e pornografia. Esta reportagem com sua jornada ao mundo dos hiperpoliglotas foi publicada originalmente na edição impressa de 03/09/2018 da “New Yorker” sob o título “Maltês para Principiantes”.

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Renato Pincelli
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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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