O primeiro Natal do Japão
Conforme relatos jesuítas, a primeira celebração natalina se deu num templo budista convertido em meio a uma noite de hinos e sermões.

Por Joji Sakurai, no Japan Times (dez/2016).
Tradução [e algumas notas] de Renato Pincelli.
NUMA CARTA AOS seus irmãos portugueses, o missionário jesuíta Pedro de Alcáçova [1] conta que “nossas vozes não eram boas mas mesmo assim os fieis cristãos rejubilavam”. Era a véspera de Natal em Yamaguchi e a paciência, mais do que a fé, dos japoneses recém-convertidos deve ter sido posta à prova depois que a dúbia cantoria dos missionários nanban (bárbaros do sul) transformou-se numa leitura das escrituras que foi até tarde da noite antes de ser retomada no dia seguinte com o “canto do galo”.
Aquele era o primeiro Natal registrado no Japão e, na subtropical Yamaguchi, no extremo sul de Honshu, a celebração do nascimento virginal também tinha um quê de virgindade: foi a primeira apresentação de música vocal ocidental ouvida no Japão — e recebida com um deleite surpreendente, segundo os relatos jesuítas.
Fazia apenas três anos que São Francisco Xavier [1506–1552] — o jesuíta que levara o cristianismo à Ásia — havia desembarcado nos domínios de Satsuma, no Japão, caindo nas graças dos daimyō [senhores feudais japoneses] e ganhando permissão para fazer conversões. Isso foi décadas antes da perseguição aos cristãos iniciada pela política isolacionista do xogunato de Tokugawa — o cenário de Silêncio, grande romance de Shusaku Endo [1923–1996] recém-adaptado em filme por Martin Scorsese.
Naquela época, a fascinação — junto com interesses estratégicos e comerciais — era mútua e intensa. Os daimyō abriam as portas de suas casas aos missionários para aprender sobre o Ocidente e firmar negócios vantajosos. Ao mesmo tempo, Xavier buscava fazer amigos nas altas rodas para ganhar conversões nos círculos mais baixos. Foi um período de trocas notáveis e muitas vezes cordiais entre ambos os lados — ainda que os pregadores jesuítas fossem frequentemente alvo de zombarias, cusparadas e até pedras nas ruas.

O Natal de 1552 não poderia ser mais diferente dos natais que conhecemos hoje. A iconografia natalina que nos é familiar — com árvores de natal, renas, guirlandas, etc — ainda não havia sido estabelecida em nenhum lugar do mundo. Naturalmente, não havia a menor sombra de comercialismo que marca as festividades de fim de ano modernas. O cenário daquele Natal era Daido-ji, um templo budista abandonado e convertido no primeiro alojamento e casa de adoração dos Jesuítas. Aquele seria um dos primeiros nanban-dera, os templos dos bárbaros do sul, nome dado às igrejas cristãs improvisadas em edifícios budistas, com seus shoji [portas corrediças de madeira e papel] e engawa [extensão do assoalho de madeira sob o beiral, que funciona como uma varanda]. Geralmente, a única diferença visível no exterior era uma cruz fincada no alto das telhas do tipo kawara [telha de argila cinzenta, formada por peças cilíndricas e côncavas].
Na véspera de Natal, os crentes japoneses eram convidados a passar a noite nas acomodações jesuítas, lotando-as ao embarcar numa sucessão de hinos, sermões, leituras bíblicas e missas que varavam a noite. Para os leitores de hoje, os relatos do [missionário jesuíta português Pedro de] Alcáçova mais parecem uma experiência fatigante, mas não há razão para duvidar das numerosas referências do missionário à “grande alegria” dos japoneses convertidos. Do anoitecer até a alvorada, os recém-convertidos eram recebidos com sermões e leituras sobre “Deus” — a palavra portuguesa para deus. No total, a celebração toda não tinha menos de seis missas.
O padre Juan Fernandez, um importante jesuíta que escreveu o primeiro dicionário ocidental de japonês, abria as leituras bíblicas da meia-noite. Quando sua voz ficava rouca, ele era auxiliado por “rapaz japonês com conhecimento de nossa língua”, segundo Alcáçova. Ao raiar do dia, era a vez de Cosme de Torres [1510–1570] — líder da missão jesuíta depois que Xavier partiu para a Índia — rezar uma nova missa, enquanto outro pároco lia passagens dos evangelhos e das epístolas. Depois dessa noite de imersão cristã, os fieis recebiam permissão para voltar pra casa, provavelmente trocando cumprimentos como “Natala” — da palavra portuguesa para o Natal, que significa “nascimento”.
Entretanto, esse não era o fim. Logo os japoneses convertidos retornavam mais uma vez, para outra missa, agora com sermões sobre a criação do mundo e a vida de Cristo. “Numa terra onde tantas vezes fomos chamados demônios e outras coisas tais” — escreveu Alcáçova — “demos graças ao Senhor por encontrar tantos bons Cristãos.”
Depois disso, havia a ceia, que segundo os relatos de Alcáçova era um evento bastante popular. De acordo com sua carta, havia tantas pessoas dispostas a participar que “era difícil acomodar todo mundo nos alojamentos.” Os fiéis japoneses e seus irmãos jesuítas — na companhia de um punhado de não-cristãos — sentavam-se juntos para a ceia preparada pelos líderes japoneses da comunidade. Em seguida, a congregação distribuía comida aos pobres, o que era um método eficaz para ganhar novas almas.
O NATAL DE 1552 costuma ser chamado de “primeiro Natal do Japão”, o que provavelmente está incorreto. Para os historiadores Klaus Kracht e Katsumi Tateno-Kracht, [S. Francisco] Xavier quase certamente não deixou passar a oportunidade de celebrar o natal em solo japonês entre sua chegada a Satsuma (atual Prefeitura de Kagoshima) em 1549 e sua partida para a Índia em 1552. Só que não há registro de tais eventos e a carta de Alcáçova, escrita para seus irmãos que ficaram em Portugal, é apenas o relato mais antigo existente de um Natal celebrado no Japão.
Infelizmente, o relatório do jesuíta não faz menção do que foi comido no Dia do Natal. Entretanto, é possível obter um vislumbre das primeira festividades cristãs do Japão em outra carta, redigida pelo missionário Gaspar Vilela em 1557. Nela, descreve-se uma festa de Páscoa para a qual foi importada uma vaca e onde foram servidos pratos de carne e arroz aos fieis (talvez esse seja um antepassado do gyūdon [2]). Isso pode ter sido exótico para os convertidos porque comer carne, naquela época, não era parte do cotidiano japonês. Mesmo assim, diz a carta, “comeram todos com grande contentamento.”
Nos anos seguintes, os relatos jesuítas dos natais japoneses seguem basicamente o mesmo padrão. “Damas e cavalheiros de alta classe reuniram-se em grande número na residência paroquial”, escreveu o missionário Duarte da Silva numa carta sobre o Natal japonês de 1553, também em Yamaguchi, que prossegue assim:
A partir da uma da madrugada [aqui com o sentido de primeira hora após o anoitecer], eles escutaram histórias da Bíblia — ouviram sobre a Criação dos Céus e da Terra, do pecado original, do dilúvio de Noé, da separação das línguas, do início da adoração dos ídolos, da destruição de Sodoma; a história de Nínive; de Jacó, filho de José; do cativeiro babilônico; dos 10 mandamentos de Moisés e da fuga para o Egito; depois, do profetas Elias e Judite, da estátua de Nabucondonosor e suas idades — e por fim a história de Daniel nos trouxe o meio da noite.
Essas instruções tão prolongadas sobre as narrativas do Velho Testamento tinham por objetivo esclarecer a necessidade da vinda de Cristo — coisa que os convertidos japoneses aprendiam durante a segunda metade da noite. Porém, com o passar dos anos, desenvolveram-se algumas características novas naqueles primeiros natais do Japão. Para começar, os crentes japoneses introduziram o costume de trocar presentes no Dia de Natal — o que foi visto pelos missionários jesuítas como algo meio exótico, mais parte da tradição japonesa do que da deles.
Mais tarde, os jesuítas passaram a representar peças natalinas para dar vida às histórias evangélicas. Torres e seus irmãos argumentavam que essa seria uma maneira mais simples e promissora de espalhar a fé do que as longas sessões de leituras bíblicas. Eles estavam certos: as peças fizeram tanto sucesso que alguns relatos contam que o teatro de Natal atraía até 2000 pessoas. Entre eles, havia os não-cristãos que vinham obter um pouco de entretenimento e talvez receber alguma doação de comida. Os jesuítas encorajaram essa maneira de expandir a missão. Entretanto, às vezes havia tamanha procura por lugares nos tradicionais sajiki [auditórios dos teatros japoneses], que os jesuítas tinham que limitar a entrada às “pessoas que tiveram introdução à fé cristã”.
O primeiro destes autos natalinos teve lugar em Bungo (atual Prefeitura de Oita) em 1560. Para testemunhar o evento, havia gente que viajava de vilas e cidades distantes. Encenada por fieis japoneses, a peça contava a história de Adão e Eva. Segundo uma carta de Juan Fernandez, uma árvore decorada com maçãs douradas foi colocada no centro do palco. O cenário também incluía um estábulo e uma manjedoura para simbolizar o nascimento de Cristo.
A performance foi tão hipnótica que, quando Lúcifer começou a tentar Eva sob a macieira, os espectadores — homens, mulheres e crianças — desmancharam-se em lágrimas. A tristeza transformou-se numa reação febril quando um anjo apareceu para expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden. Para o público, o alívio chegou apenas quando um anjo reapareceu diante do primeiro homem e da primeira mulher para vesti-los com roupas dadas por Deus e consolá-los com a notícia de um distante dia de salvação.

Esse foi o auge do cristianismo no Japão da época. Durante um período de mais ou menos um século, os missionários jesuítas estimam ter convertido centenas de milhares de almas e receberam autoridade sobre Nagasaki de Omura Sumitada — o primeiro daimyō a se converter ao cristianismo. A religião ganhou espaço durante o período Sengoku [1467–1573], marcado por guerras entre os senhores feudais japoneses. Assim, na ausência de uma autoridade centralizada, os jesuítas conseguiram a proteção de poderosos daimyō.
Alguns senhores feudais, como o formidável Otomo Sorin, senhor de Bungo, em Kyushu, tornaram-se católicos em parte com a intenção de reforçar suas riquezas e seus poderes. “Ele sempre obtém muita vantagem do navio dos Portugueses”, escreve Alessandro Valignano [1539–1606], um proeminente jesuíta italiano. Mesmo o ateu Oda Nobunaga [1534–1582] — o primeiro dos grandes unificadores do Japão — recebeu os jesuítas em audiências e lhes deu permissão para pregar em Kyoto.
Mas foi Ouchi Yoshitaka, poderoso e erudito daimyō do domínio de Suo, quem deu o complexo de Daido-ji para Xavier no ano anterior ao primeiro natal japonês registrado. Tal presente é ainda mais notável porque o primeiro encontro entre Xavier e Ouchi não havia sido bem-sucedido, de acordo como historiador John Dougill, autor de In Search of Japan’s Hidden Christians [Em Busca dos Cristãos Ocultos do Japão].
Vestido toscamente ao chegar à audiência no castelo de Ouchi, Xavier denunciava a sodomia como um dos três grandes pecados que infestavam o Japão, ao lado do aborto e do infanticídio. Enfurecido, Ouchi saiu voando do salão — os estudiosos supõem que ele não era imune à atração, comum entre os senhores feudais, por rapazes samurais. No ano seguinte, segundo Dougill, Xavier demonstrou arrependimento, vestido num resplandecente traje de seda e portando presentes ocidentais, como um “cristal lapidado, uma mesa de serviço, vinho português, um par de lentes e um telescópio”. Logo em seguida, os jesuítas receberam permissão de fixar sua primeira missão no Japão.
NO FIM, A HISTÓRIA dos cristãos japoneses acabaria mal. À medida que Toyotomi Hideyoshi [1536–1598] e Tokugawa Ieyasu [1543–1616] avançavam com a unificação do Japão, eles passaram a ver o cristianismo como uma ameaça ao seu poder secular — em parte, por causa do legado de antigas revoltas religiosas dos budistas. Assim, começaram as perseguições e os cristãos eram torturados e forçados a abandonar a fé pisando em imagens de Cristo, um processo conhecido como fumi-e. Os que se recusavam eram crucificados. O final definitivo do período cristão japonês veio em 1639, quando o xogum Tokugawa Iemitsu [1604–1651] lançou o último sakoku — o édito que fechava o país, banindo todas as interações com nações católicas.

No livro de Endo, Silêncio, há uma passagem que captura muito bem o dilema dos primórdios da aventura cristã no Japão. O heroi é Sabastian Rodrigues, um missionário jesuíta cheio de paixão, que confronta Cristóvão Ferreira, um líder jesuíta que cometeu apostasia sob tortura e passou a viver num conforto não menos torturante sob os cuidados das autoridades de Tokugawa. “Quando você chegou a este país” — declara Rodrigues — “a fé tinha o aroma das flores matinais e muitos japoneses se estapeavam para receber o batismo, feito os judeus que se acumulavam no Jordão.” Ferreira responde: “E se supormos que o Deus em que os japoneses acreditam nunca foi o Deus da doutrina cristã? […] O que os japoneses da época acreditavam não era o nosso Deus, eram seus próprios deuses.”
Ferreira faz referência a uma anomalia que marcaria o destino do cristianismo no Japão. Sob a orientação de Anjiro[que teve o nome aportuguesado para Angiró], o iletrado guia japonês de Xavier, o conceito de Deus foi introduzido no país como Dainichi — ou Grande Sol, uma manifestação de Buda no Japão. Para o historiador George Elison, Anjiro foi equivocado ao dizer a Xavier que “os japoneses acreditavam em um deus pessoal que punia os maus e recompensava os bons, criador de todas as coisas.” Como Xavier tinha em Anjiro sua única fonte de conhecimento da cultura japonesa, ele começou sua carreira missionária no novo país pregando a palavra de Dainichi. Foi só depois de debates com estudiosos budistas que Xavier percebeu seu erro, passando a ensinar a palavra de Daiasu (Deus). Mas aí o estrago estava feito.
Como Elison escreve em sua obra seminal, Deus Destroyed [Deus Destruído], “o perigo era que as velhas crenças permaneceram amarradas à terminologia adotada, escondendo-se sob a superfície da nova terminologia em vez de ser apagada.” Conforme o cristianismo caía na clandestinidade — e os fieis eram forçados a se isolar em vilarejos montanhosos, fingindo adesão ao budismo — a religião afastou-se ainda mais da fé adotada. Os kakure-kirishitan, ou cristãos ocultos, adotavam elementos de adorações ancestrais e escondiam a imagem do deus proibido, vestida com quimonos, em meio aos altares budistas.
Ainda assim Silêncio — um romance comovente para pessoas de qualquer fé ou sem fé alguma — aponta uma qualidade redentora da experiência cristã no Japão. É uma obra de coragem e beleza, que apresenta uma visão universal da experiência humana: culturas que colidem nas circunstâncias mais extremas e emergem para encontrar um quê de esperança em meio ao desespero. Como escreve Shusako Endo em Escândalo, outro romance: “a verdadeira religião deve ser capaz de responder às melodias sombrias, aos sons falhos e desagradáveis que ecoam do coração do homem.”
Notas do Tradutor
[1] Conforme as Cartas e Escritos de Francisco Xavier, o missionário Pedro de Alcáçova estudou em Coimbra em 1543 e foi admitido aos jesuítas alguns anos mais tarde. Chegou ao Japão com S. Francisco Xavier e permaneceu ali por cerca de dois anos, transferindo-se depois para a Índia, onde morreria em 1579. Sua data de nascimento é desconhecida.
[2] Gyūdon significa literalmente “tigela com carne bovina” e consiste num prato de arroz coberto com tiras de carne com cebola e um molho adocicado à base de shoyu. Prato popular, presente em restaurantes de fast-food japoneses, o gyūdon surgiu no fim do século XIX, durante o período de ocidentalização do país.
Com trabalhos publicados na “Associated Press”, “New York Times”, “Financial Times”, dentre outros, JOJI SAKURAI (@JojiSakurai) é um jornalista freelancer japonês. Atualmente, vive na Eslovênia e cobre temas como viagens, culinária e esportes. Este artigo sobre o primeiro natal japonês saiu no “Japan Times” (onde foi colaborador regular até 2017) na Véspera do Natal de 2016.