O que acontece quando pesquisadores inventam co-autores?

Em entrevista à Retraction Watch, Mario Biagioli alerta para uma “nova forma de plagiarismo”: a invenção de co-autores que não existem.

Renato Pincelli
10 min readNov 15, 2019

Entrevista ao Retraction Watch. Tradução de Renato Pincelli.

PARA MARIO BIAGIOLI, há um novo golpe no mercado das publicações científicas: a falsificação de co-autorias. Professor de Direito e Estudos de Ciência e Tecnologia, Biagioli é diretor do Centro de Estudos em Inovação da Universidade da Califórnia, em Davis. Num artigo publicado na [revista científica] Trends in Chemistry, ele chamou a atenção para “a emergência de uma nova forma de plagiarismo que reflete a nova economia metrificada da publicação acadêmica.” A seguir, a Retraction Watch [blog especializado em acompanhar fraudes acadêmicas] apresenta algumas perguntas que fez a Biagioli sobre essa descoberta e sobre os motivos que levariam os autores a esse comportamento.

Mario Biagioli: especialista em Direito da Ciência tem chamado a atenção para o fenômeno das co-autorias forjadas.

Retraction Watch (RW): Você escreveu que “uma nova tendência de má-conduta científica envolve a listagem de falsos co-autores na publicação de alguém”. Porque um autor faria isso?

Mario Biagioli (MB): Sem evidências mais refinadas sobre esses casos (e você sabe melhor do que eu quão pouca informação costuma ser apresentada pelas notas de retratação), é difícil explicar essas práticas que parecem desafiar a racionalidade econômica. Por que eu deveria dar créditos de autoria a autores que estou inventando?

Uma hipótese é que os fraudatários podem chamar muita atenção sobre si ao publicar num ritmo anormalmente acelerado, algo que eles costumam fazer já que leva muito menos tempo fazer uma publicação fraudulenta do que uma pesquisa apropriada. Adicionar co-autores fakes ajuda a normalizar uma produtividade anômala.

Outra hipótese é que, se você publica alegações falsas do tipo que, se fossem bem-feitas, exigiriam a colaboração de cientistas de diferentes campos, faz sentido criar co-autores com as habilidades necessárias e anexá-los à linha de autoria. Isso pode ser especialmente importante caso as pessoas saibam que você não tem todas as diferentes qualificações necessárias para produzir o artigo publicado.

Uma terceira possibilidade, que é o principal foco do meu artigo, é que as pessoas inventam co-autores para forjar ligações falsas com instituições reais. Se eu não sou um cientista reconhecido, de uma universidade renomada, as chances de ter minha submissão levada a sério e ir para a revisão numa revista de alto impacto são bem magras. Mas isso pode ser melhorado caso sejam listados co-autores que, por acaso, trabalham no Caltech [Instituto de Tecnologia da Califórnia], na [Universidade de] Cambridge, etc.

Essa estratégia tem pelo menos duas variações. Uma envolve elencar pessoas de verdade, com afiliações institucionais críveis como co-autoras, mas sem informá-las. Seja como for, por acrescentar pessoas inexistentes ou que existem mas não sabem [dessa co-autoria], o objetivo principal é conseguir credibilidade a partir desses laços institucionais. O que muda são os riscos envolvidos.

Usar pessoas de verdade, em vez de invenções, aumenta a chance de ser pego pelo co-autor ficcional quando ele vê seu nome aparecendo em publicações desconhecidas. O mesmo cenário, entretanto, seria menos provável de chamar a atenção de leitores que não criam suspeitas ao ver nomes de colegas listados como co-autores de outros cientistas desconhecidos. Por outro lado, usar co-autores fakes não levaria a uma detecção pelo co-autor, que não existe, mas pode levantar suspeitas nos leitores que têm familiaridade com aquela área mas não com aqueles nomes.

Outra possibilidade é a de publicar sob pseudônimos. Se meu objetivo é apresentar uma alegação controversa sem o risco de ser identificado mas também sem a perda de credibilidade causada pelas publicações anônimas, eu poderia assumir um nome falso e dar a mim mesmo uma afiliação institucional verdadeira e prestigiosa para conceder credibilidade ao que digo facilitando simultaneamente a publicação. Eu poderia abrir mão de créditos de autoria mas isso não importa caso eu não queira ser identificado.

RW: Você cita o caso de Jesús Ángel Lemus, que tem até 13 retratações. Conte-nos sobre esse caso e o que você tirou dele.

MB: Lemus é um veterinário espanhol que começou sua carreira em pesquisa aos trinta e pouco anos, obtendo seu PhD em 2010 e publicando em alta velocidade desde 2006, possivelmente para compensar seu início tardio. Ele tem especialização no impacto da poluição ambiental na vida selvagem — um tema quente na Europa. Colegas dele entrevistados pelo El País (que publicou alguns bons artigos sobre o caso) apresentam-no como um biólogo da vida selvagem que adora passar tempo em campo. Mas sua carreira promissora terminou tão rápido quanto começou. Como mencionado, ele ganhou 13 retratações, além de uma correção e uma expressão de preocupação. Muitas de suas primeiras publicações eram conjuntas com seu orientador, Guillermo Blanco. Seis delas também listavam um certo Javier Grande.

Acontece que Grande é um co-autor imaginário, creditado (em dois artigos retratados na PLOS ONE, onde se exige descrição da contribuição de cada autor) por ter “analisado os dados”, “realizado determinações de patógenos” e “contribuído com reagentes/materiais/análises/ferramentas”. Sem surpresa, as afiliações institucionais de Javier Grande (conforme listadas em suas publicações) seguem as de Lemus como um fantasma. Essa ligação também se estende às contribuições em co-autorias.

Lemus durante uma pesquisa de campo em Duraton, Segóvia, 2007. Nessa época ele cria um colaborador impecável: Javier Grande. [foto de Guillermo Herrero reproduzida pelo El País]

O surpreendente é que, enquanto Lemus era mais conhecido como biólogo de campo e veterinário praticante do que cientista de laboratório, um colega disse ao El País que “Lemus era muito eficiente: se você lhe desse amostas de aves para buscar patógenos ou antibióticos, ele era sempre exato e o melhor era que havia sempre um resultado publicável.” Isso é precisamente o tipo de coisa que costumava ser atribuído a Grande. Um co-autor de Lemus e Grande descreveu este último como “um fellow no IREC [Instituto de Investigações em Recursos Cinegéticos] que analisava as amostras e com quem troquei e-mails.” Em suma, Grande era o personagem que Lemus gostaria de ser.

A ficção começou a entrar em colapso quando Lemus abusou da sorte ao afirmar que “quase metade dos papagaios em Barcelona estavam infectados com Psictacosis bacterium — uma doença transmissível por humanos”. Isso chamou a atenção de muita gente, levando a um escrutínio sobre a obra de Lemus. Seus co-autores fracassaram em replicar seus testes (em alguns casos pelo decaimento das amostras) enquanto outros não conseguiam localizar os laboratórios externos que precisariam. Por fim, seus co-autores tiveram que admitir que nunca haviam visto nem se encontrado pessoalmente com Javier Grande e que não havia rastros institucionais de sua existência. O mais incrível é que pelo menos um artigo foi feito por cientistas que — como Grande — eram todos ligados ao mesmo departamento da mesma instituição.

Lemus cabe muito bem em duas categorias que esbocei anteriormente. Ele inventou Grande como um cientista com as habilidades que Lemus dizia ter mas provavelmente ainda estava desenvolvendo. Ele também atribuiu a Grande ligações institucionais respeitáveis na área, o que certamente não prejudicou suas chances de ser publicado. Mas ainda há algumas distorções interessantes.

Conforme reportagem do El País, quando as investigações sobre Lemus estavam de vento em popa, em março de 2012, seu currículo foi subitamente removido do site institucional da CSIS. Segundo algumas testemunhas, tal currículo listava seis artigos (aparentemente em autoria solo), só que essas publicações não existiam. Para ser mais exato, as revistas existiam, mas não continham as publicações que Lemus alegava ter feito naqueles títulos.

Além do fato de que tais jornais eram altamente especializados e difíceis de encontrar, Lemus havia listado números incongruentes de volume e anos de publicação, levando potenciais leitores a concluir que, em vez de uma publicação inexistente, eles estavam lidando com um erro de digitação na bibliografia. Curiosamente, Lemus não parece ter listado Grande como co-autor dessas publicações imaginárias. Como criações de sua imaginação que ele colocou no currículo desparecido, esses artigos inexistentes não precisavam ser aceitos para publicação nem precisavam convencer co-autores e colegas de que ele tinha alguém na equipe responsável pelos testes de patógenos. Nesse ponto, acrescentar co-autores fakes seria prejudicial à credibilidade das publicações que não existiam.

Essas duas estratégias de Lemus surpreendem pela simetria. Num caso, ele inventou um co-autor fake com habilidades e afiliações reais enquanto em outro, criou artigos falsos em revistas de verdade. O que observamos em ambos os casos não são falsificações minuciosas mas a combinação de alegações obviamente reais com outras obviamente falsas. Se a reportagem do El País estiver correta, uma busca cuidadosa de seu currículo online poderia ter detectado a natureza claramente fraudulenta de sua bibliografia.

Do mesmo modo, se alguém tivesse decidido rastrear Javier Grande, teria descoberto rapidamente que ele era um fingimento da imaginação de Lemus. Não era uma questão de interpretação complexa: ou uma pessoa com aquele nome e aquelas afiliações existia em Madri ou não existia tal pessoa. Em ambos os casos, atrasos e desvios foram criados para dificultar a detecção de Lemus. Seu currículo fake listava intencionalmente publicações obscuras com erros de digitação e Javier Grande tinha um “dublê” de carne e osso em Madri — Javier Grande Ortiz.

Ortiz é um veterinário legítimo, com uma clínica privada e foi aluno da escola de veterinária de Lemus. Por estar na mesma área (mas não em termos acadêmicos), Javier Grande Ortiz pode ter ajudado a diminuir o estranhamento do nome “Javier Grande” junto à comunidade local. Não que esse disfarce linguístico fosse uma armadura plena para Lemus, mas isso seria o bastante para dar “plausibilidade” aos que, dentro e fora da equipe de Lemus, não estavam inclinados a checar tudo.

No meu artigo, enfatizo como co-autores falsos costumam ser introduzidos para amplificar a credibilidade de uma submissão ou publicação aos olhos dos editores ou leitores. O caso de Lemus sugere que seu alvo foi uma audiência mais local, interna: ele apresentou Grande para levar seus outros co-autores de carne e osso a acreditar que havia um membro da equipe com as qualificações necessárias para o trabalho — um colaborador ficcional que teria ajudado Lemus a encobrir as habilidades que ele não teria. Interessante notar que os seis artigos em que Lemus “colaborou” com Grande apareceram todos entre 2006 e 2009, quando Lemus ainda estava na graduação. Assim que ele se formou, no começo de 2010, Grande sumiu.

Embora as coisas não pareçam boas para Lemus, deveríamos dar-lhe crédito por uma nova articulação do jogo das cadeiras que costuma ser jogado quando surgem acusações de fraude. Autorias fantasmas geralmente permitem que autores seniores aleguem que sua fantasmagoria seja benigna. Eles não teriam nada a ver com a bagunça: só emprestaram seus nomes por generosidade em vez de forçá-los na lista de autores por um desejo de crédito indevido.

Em vez disso, quando Lemus era questionado sobre quem seria Javier Grande, ele respondia: “Você me pergunta? Vá perguntar ao Guillermo Blanco”. Blanco foi orientador de Lemus e a única outra pessoa que, além dele, assinou todos os artigos retratados com Grande. De maneira nada sutil (e talvez um pouco exagerada), Lemus sugere que o fantasma de Javier Grande seria criação de outro fantasma, um sênior.

RW: Você conhece o caso de Stronzo Bestiale? Ele te recorda algum dos casos que você descreve?

MB: Sim, de certo modo Stronzo Bestiale poderia marcar o início da tendência que descrevo no artigo. Se não o mencionei é porque não entendi muito bem a história. Com base nas informações que se encontram na web — ainda não vi um tratamento acadêmico desse episódio — , esse parece um caso de co-autoria inventada, mas os detalhes não estão claros.

No fim dos anos 1980, segundo uma fonte, um físico americano que trabalhava no [Laboratório Nacional Lawrence] Livermore — William G. Hoover — lutava para ter parte de sua pesquisa publicada, aparentemente por sua natureza bastante inovadora. Quando foi entrevistado décadas mais tarde, Hoover recordou-se de que “enquanto viajava num voo para Paris, duas mulheres do meu lado conversavam entre si, sempre dizendo: ‘Che stronzo’ [Que babaca]!’ e ‘Stronzo bestiale [babaca total]’. […] Achei que Stronzo Bestiale poderia ser o co-autor perfeito para uma publicação rejeitada. Assim, decidi submeter meus papers novamente, mudando apenas o título e acrescentando o nome daquele autor. E as pesquisas foram publicadas.” O Scopus Index lista um “Bestiale, Stronzo” ligado ao Instituto de Física Experimental da Universidade de Viena, que foi co-autor de dois artigos com William G. Hoover em 1987.

Embora nunca tenha existido, o folclórico Stronzo Bestiale continua a ser listado como co-autor de algumas pesquisas.

Dada a escassez de informações, é difícil dizer se Hoover colocou Bestiale na Universidade de Viena por estratégia para facilitar a publicação de um trabalho já rejeitado ou se apenas escolheu uma instituição internacional qualquer porque, como físico, o Dr. Bestiale precisaria de uma. As pessoas que planejam ganhar algo pelo uso de co-autores fakes fazem melhor voando abaixo do radar e evitam o uso de insultos logo na primeira página de suas publicações.

Como Hoover re-submeteu os artigos às mesmas revistas que o haviam rejeitado, parece que ele simplesmente queria mandar um recado aos editores com a inserção de um grande insulto na nova submissão — um insulto que não foi compreendido e levou à publicação do artigo. Ao não entender a piada, eles a reproduziram, tornando-se eles mesmos uma piada ainda maior.

Se essa é uma interpretação plausível, então Stronzo Bestiale pode parecer com o tipo de co-autoria forjada que vemos hoje mas na verdade é algo bem diferente. Não acho que podemos dizer que foi um hoax. Um hoax só se torna hoax quando a admissão pública do fato é feita pouco depois do acontecimento, mas Stronzo Bestiale só apareceu décadas depois de ser usado. Além disso, o caso não foi tratado como uma má conduta pelos físicos. O banco de dados do Retraction Watch não registra nenhuma retratação para Stronzo Bestiale ou William G. Hoover. Claro que podemos dizer que foi apenas uma piada (boa ou má, segundo o gosto de cada um), mas isso não seria uma descrição muito analítica. Em resumo, não sei como classificar o Dr. Bestiale.

RW: O que pode ser feito para combater essa tendência?

MB: Para mudar, basta uma simples resposta. Os editores poderiam mandar e-mails a todos os co-autores (correspondentes ou não) em seus endereços institucionais para verificar se cada um confirma a autoria do paper submetido. Esse passo simples provavelmente resolveria todos os problemas nos casos que discuti. Identificadores ORCID [um código numérico único, espécie de RG de cada pesquisador] também não seriam má ideia.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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