O que acontece quando um país proíbe completamente o aborto?
A Romênia de Ceausescu dá a resposta: um horror distópico de orfanatos sujos e superlotados somado a milhares de mulheres mortas em procedimentos clandestinos
Por Amy Mackinnon, para a Foreign Policy (maio de 2019). Tradução de Renato Pincelli.
ENQUANTO OS CONGRESSISTAS do Alabama aprovavam uma lei que iria banir completamente o aborto naquele Estado norte-americano, manifestantes reunidos fora da Assembleia local vestiam trajes vermelho-sangue, uma referência a O Conto da Aia, romance distópico de Margaret Atwood em que a concepção das crianças é inteiramente controlada pelo Estado. Horas mais tarde, o livro era tendência no Twitter.
Mas os opositores das leis que tentam restringir o aborto nos EUA não precisam buscar na ficção exemplos das consequências desse tipo de legislação. Durante décadas, a Romênia comunista foi um laboratório da vida real sobre o que acontece quando um país proíbe por completo o aborto. Os resultados foram devastadores.
Em 1966, Nicolae Ceausescu, líder da Romênia, barrou o acesso ao aborto e aos contraceptivos com o objetivo de aumentar a população do país. A curto prazo, funcionou: um ano após a entrada em vigor da lei, a média de crianças nascidas de cada mulher romena passou de 1,9 para 3,7. Mas as taxas de natalidade voltaram a cair rapidamente, pois as mulheres logo encontraram meios de contornar a proibição. Às vezes, as mulheres mais ricas das zonas urbanas eram capazes de dar propinas a médicos para conseguir abortar ou receber DIUs contrabandeados da Alemanha.
Entretanto, o peso da proibição do procedimento caiu desproporcionalmente sobre as mulheres de baixa renda e situação vulnerável, algo que os grupos a favor do direito ao aborto nos Estados Unidos temem que possa acontecer se a lei do Alabama entrar em vigor. Como último recurso, muitas romenas buscavam abortos domésticos ou clandestinos e, por volta de 1989, estima-se que 10 mil mulheres haviam morrido como resultado dos procedimentos inseguros. O número real de mortas pode ser maior ainda, já que as mulheres que buscavam fazer abortos e aqueles que as auxiliavam podiam passar anos na cadeia se fossem pegos. Assim, a mortalidade materna disparou, dobrando entre 1965 e 1989.
“Muitas vezes, uma mulher não podia nem contar ao marido ou à melhor amiga que ela queria um aborto, pois isso poderia colocá-los em risco”, conta Irina Ilisei, pesquisadora acadêmica e cofundadora da Front Association, grupo feminista romeno e do site Romênia Feminista. “Para muitas mulheres, a sexualidade representava um terror e não uma parte da vida que pode ser aproveitada”, diz Ilisei.
Outra consequência do veto ao aborto na Romênia foi que centenas de milhares de crianças foram transferidas para orfanatos estatais. Quando o comunismo caiu no país, em 1989, cerca de 170 mil crianças foram encontradas amontoadas em orfanatos imundos. Até então escondidas, as imagens de crianças emaciadas, muitas delas agredidas e abusadas, correram o mundo. Algumas eram acorrentadas às camas de metal.
Nem assim a lei romena cumpriu o objetivo de aumentar dramaticamente a população. “Tornar o aborto ilegal não vai fazer as mulheres terem mais bebês”, explica Maria Bucur, professora de História e Estudos de Gênero na Universidade de Indiana. “Assim, se o objetivo é gerar mais vidas e proteger mais vidas, não é esse o instrumento a ser usado.” Nascida e criada na Romênia, Bucur se considera um produto da proibição ao aborto — sua mãe falhou duas vezes em abortar.
NO DIA SEGUINTE à aprovação pela legislatura, a governadora do Alabama, Kay Ivey [do Partido Republicano], sancionou a lei mais de aborto mais restrita do país [EUA], que veta o procedimento em qualquer estágio da gravidez e pode mandar à prisão perpétua os médicos que o executam. A lei do Alabama vai mais longe do que a da Romênia, que em princípio abria exceções para os casos de estupro, incesto ou defeito congênito. A nova lei alabamenha só permite o aborto quando houver sério risco à saúde da mãe.
[N. do T.: em português, não há forma dicionarizada para o gentílico referente ao Estado do Alabama. No entanto, achamos necessário cunhar um: alabamenho, a partir do espanhol alabameño]
A proibição romena ao aborto era agravada por banir os contraceptivos, que não são mencionados na lei do Alabama. Mas o governo Trump fez esforços sobre o controle de natalidade em 2017, quando permitiu que empregadores pudesse se recusar a fornecer contraceptivos pelos planos de saúde de seus funcionários alegando razões de crença religiosa. Essa decisão foi derrubada por um juiz federal em janeiro deste ano.
As disputas nos tribunais sobre o aborto devem continuar, à medida que grupos anti-aborto pressionam por leis que esperam ser mantidas pela Suprema Corte neo-conservadora, para a qual o presidente Donald Trump nomeou dois novos membros. Até o momento, mais de meia dúzia de Estados já tentaram banir abortos após seis semanas de gestação — antes mesmo que muitas mulheres percebam que estão grávidas. Na semana passada, a Geórgia tornou-se o sexto Estado a aprovar um lei desse tipo. Nos EUA, outros seis Estados têm somente uma clínica de aborto aberta.
Embora essas leis possam ser derrubadas pelos tribunais, os advogados anti-aborto esperam alcançar a Suprema Corte para desafiar o precedente estabelecido pela decisão de Roe v. Wade (1973), que assegurou o direito de buscar o aborto. Deputado estadual do Alabama e co-autor da lei mais rígida do país, o republicano Terri Collins declarou ao site AL.com: “Meu objetivo com essa lei, e eu penso que é todo o nosso objetivo, é levar à reversão de Roe v. Wade.”
Durante a campanha presidencial de 2016, Trump prometeu apontar juízes conservadores com a intenção de reverter Roe v. Wade. A confirmação de Brett Kavanaugh em outubro de 2018 deu aos juristas conservadores uma maioria sólida na corte, aumentado as esperanças dos advogados anti-aborto. Se a Suprema Corte mudar de ideia sobre o aborto, a decisão sobre como regular o procedimento passaria a ser prerrogativa de cada Estado.
“É preciso levar em conta as consequências a longo prazo de uma legislação assim”, destaca Charles Nelson, professor de Pediatria na Harvard Medical School e autor de Romania’s Abandoned Children [Crianças Abandonadas da Romênia]. A partir do ano 2000, Nelson examinou o impacto que os orfanatos da Romênia tiveram sobre as crianças no período pós-comunista. Ele descobriu que muitas acabaram com graves deficiências de desenvolvimento e problemas de saúde mental. Em alguns casos, o confinamento em orfanatos teve até um impacto físico no tamanho dos cérebros das crianças.
Nelson afirma que a Romênia oferece um caso de advertência sobre o que acontece quando o Estado tenta controlar os direitos reprodutivos. A nova lei alabamenha levanta questões sobre que tipo de apoio o Estado daria se alguém não tiver a opção de terminar a gravidez caso o feto tenha profundos defeitos de nascença. “O Estado tem condições de tomar conta dessas crianças e apoiar as famílias?”, questionou Nelson numa entrevista.
Quando o comunismo desabou na Romênia, em dezembro de 1989, um dos primeiros atos do governo provisório foi derrubar a proibição ao aborto. A Romênia continua a ser um país bastante conservador e, nos últimos anos, tem ressurgido a pressão pela proibição ao aborto, sob influência da poderosa Igreja Ortodoxa e de outros grupos religiosos.
Bucur, autora de Birth of Democratic Citizenship: Women and Power in Modern Romania [O Nascimento da Cidadania Democrática: Mulher e Poder na Romênia Moderna] tem dúvidas se o novo movimento vai ganhar tração política. “Acho que a memória real e imediata [do que aconteceu no país] ainda está presente em muitos eleitores. Nenhum político inteligente faria isso acontecer.”
Ilisei, a ativista romena, diz ver com preocupação que partes dos EUA — país que já foi visto como exemplo pela Romênia — perseguindo novas restrições ao aborto. “Em 1989, nossa aspiração era construir uma democracia estável, uma sociedade pluralista, com equidade entre homens e mulheres”, diz ela. “Então, os EUA eram a principal fonte de inspiração, mas agora não é mais o caso.”

AMY MACKINNON (@ak_mack) é jornalista de origem escocesa e Mestra em Estudos Russos e Leste-Europeus pela Universidade de Glasgow. Após passar três anos escrevendo reportagens na Europa Oriental, atualmente vive em Nova York, onde trabalha na redação da “Foreign Policy” (FP), cobrindo matérias sobre a Rússia e sua antiga esfera de influência na Europa. Agraciada com um prêmio da Anistia Internacional, já teve trabalhos veiculados pela “BBC Radio Scotland”, “Slate” e “CNN”. Este relato sobre o aborto e suas consequências na Romênia foi publicado originalmente na FP em 16/05/19.