Os Moços Melancólicos do Renascimento

Como foi que a melancolia tornou-se masculina e entrou em voga na Era Elizabetana?

Renato Pincelli
8 min readJul 26, 2019
Os três irmãos Browne (Isaac Oliver, 1598) parecem versões bem antigas dos meninos emo do começo do século XXI — e talvez sejam.

Por Jonathan McAloon, para o Artsy. Tradução [complementos e legendas] de Renato Pincelli.

SIR PHILIP SIDNEY [1554–1586] foi um arquétipo do homem da Renascença — acadêmico, soldado, aristocrata, diplomata e importante poeta elizabetano. Em 1574, quando viajava pela Itália, ele posou para um retrato feito pelo artista veneziano Paolo Veronese [c. 1528–1588]. Atualmente perdida, a pintura teria um valor incalculável como registro do encontro entre dois gigantes do Renascimento. Tudo o que resta dessa obra é o testemunho do diplomata francês Hubert Languet [1518–1581], que considerou o retrato de seu amigo “triste e pensativo” demais.

Na Europa do século XVI, um homem elegante era triste e pensativo. “De um modo geral, e preconceituosamente, os homens respeitam e estimam [a tristeza]”, escreveu o ensaísta francês Michel de Montaigne [1533–1592] no texto apropriadamente intitulado “Da Tristeza” (1580). [N. do T.: Dos autores citados, Montaigne é ponto fora da curva: neste ensaio, ele se mostra pouco afeito à tristeza, desprezando o culto à melancolia de sua época.] Isso era ainda mais intenso na Inglaterra, tanto que outros países chamavam o fenômeno da melancolia masculina de “mal inglês” ou “mal elizabetano”.

Poetas como Sidney escreveram um grande conjunto de obras sobre suas sensações de alienação, isolamento e rejeição amorosa. O músico inglês John Dowland [1563–1626], famoso por toda a Europa, é lembrado como o primeiro cantor-compositor atormentado. Suas letras citam frequentemente sua tristeza e, numa delas, Dowland descreve-se como preso num calabouço de desânimo. Seu lema era Semper Dowland semper dolens, um trocadilho latino com seu próprio nome: “Sempre Dowland, sempre dolente”.

Além dos versos e canções, os homens poderosos e elegantes queriam demonstrar sua vulnerabilidade nas telas de pintura. Os retratos aristocráticos, que costumavam aparecer respeitáveis, impávidos e eretos, agora deixavam as emoções aparentes nas suas expressões e atitudes. Eles nos miram a partir das pinturas do artista inglês Nicholas Hilliard [c. 1547–1619] e de seu pupilo nascido na França, Isaac Oliver [c. 1565 – c. 1617]. A intensidade dos retratados é reforçada pela natureza íntima das miniaturas — pequenas pinturas, que seriam apresentadas apenas a poucos escolhidos.

Young Man Seated Under a Tree (1590–95), da coleção real da Rainha Elizabeth II

Em Young Man Seated Under a Tree (1590–95), de Oliver, um jovem cavalheiro vestido predominantemente de preto, como um Hamlet de Shakespeare, apoia-se ao pé de uma árvore. Sua expressão facial é séria, carregando tanto a intensidade de seu estado mental quanto sua desolação. Ao fundo, há uma mansão com um jardim cultivado à moda elizabetana — algo gentil, mas muito restritivo. Em meio às cercas-vivas labirínticas, um casal passeia. O protagonista, porém, está sozinho.

Young Man among Roses (c. 1587), do Victoria and Albert Museum.

Uma das imagens mais características e familiares da masculinidade frágil dos elizabetanos é Young Man among Roses (c. 1587), um retrato-miniatura de Hilliard. O sujeito, vestido com espalhafato, leva a mão ao peito enquanto se inclina levemente junto à árvore, com roseiras espinhentas ao redor de ambos. Sua postura e expressão transmitem uma solidão equilibrada, possivelmente auto-imposta. Muitos consideram que este homem é Robert Devereux [1566–1601], Segundo Conde de Essex. Favorito da Rainha Elizabeth I, Essex era considerado o homem mais elegante da Inglaterra — e, por algum tempo, o mais poderoso. Ele também ficou conhecido por escrever uma poesia angustiada, que o coloca como alguém especialmente desafortunado e que lamentava suas frequentes rejeições afetivas e políticas da monarca.

COMO FOI QUE a melancolia se tornou tão chique? Nos tempos elizabetanos, pensava-se que as doenças e a própria personalidade de alguém seriam determinadas pelo equilíbrio dos quatro humores, os fluidos corporais: sangue, bile amarela, bile negra e fleuma. Um excesso de bile negra, produzida pelo baço, deixaria o temperamento da pessoa melancólico. Às vezes, vapores de outros órgãos ou alinhamentos planetários também serviam de explicação. Hoje estamos mais inclinados a ver a melancolia como um termo genérico para vários tipos de problemas de saúde mental, bem como as variedades de tristeza cotidiana que permeiam períodos especialmente frios.

Durante a Renascença, as taxas de mortalidade eram elevadas e as epidemias, frequentes. As constantes guerras religiosas causavam inquietações tanto sociais quanto individuais. O Transtorno Afetivo Sazonal também pode ter sido um fator: em meados do século XVI, a Europa passou por um período de resfriamento que agora chamamos de Pequena Idade do Gelo.

John Donne, em retrato de autoria anônima (c. 1595) atualmente no National Gallery Museum, em Londres.

Embora costumasse ser vista como uma doença séria pela maioria, a melancolia passou a ser uma disposição romântica desejável para os rapazes. Os afetados por ela deveriam ser pálidos (por causa do fluxo de sangue desviado da cabeça para o coração, uma crença promovida pelo médico inglês Thomas Willis [1621–1675]). Eles normalmente eram vistos olhado fixamente para o nada e não conseguiam dormir. Num retrato anônimo feito por volta de 1595, o poeta metafísico inglês John Donne [1572–1631] parece simultaneamente abstraído e bastante afastado do espectador. Seu rosto é enquadrado pela escuridão de seu chapéu, de suas roupas e do segundo plano, que parece mover-se como uma névoa negra.

Os melancólicos eram suscetíveis à obsessão: falavam do amor como uma doença que só poderia ser curada pela submissão ao alvo de seu afeto. Nessa atitude amorosa esconde-se um certo tipo de misoginia e masculinidade tóxica — se não correspondesse a esses sentimentos do homem, a mulher era representada como a vilã da história. Esses meninos sombrios poderiam ser encontrados em seu habitat, suspirando sozinhos pelos jardins e labirintos de cercas-vivas.

An Unknown Man (Hillard, c. 1600) pode parecer um retrato bem mais brilhante, mas é triste: o galã está sendo consumido pelas chamas duma paixão provavelmente irrealizada. Do Victoria and Albert Museum.

O amante com um brinco de An Unknown Man (c. 1600), que diferentes estudiosos atribuem tanto a Hilliard quanto a Oliver, não apenas traz sua camisa desabotoada, mas também exibe uma bijuteria — um gesto de malícia, praticamente equivalente a mandar um nude. Cercado pelas chamas de sua própria paixão, ele tem seus olhos eternamente fixos no espectador, presumivelmente a amante que possuía a miniatura. Embora seu cabelo úmido indique que ele está visivelmente afetado pelo calor, o fogo não tem força suficiente para influenciar sua palidez facial. O rapaz com dor de amor vira sua jóia na altura do peito — fonte de sua dor esquisita — , abrindo seu próprio coração flamejante diante da face da amada.

Miniatura de Lord Herbert de Cherbury (Oliver, c. 1613), da coleção do Powis Castle and Garden.

Na miniatura de outro daqueles poeta-acadêmico-soldados multifuncionais, Lord Herbert de Cherbury (feita por Oliver, c. 1613–14), ele segura um escudo decorado com um coração em chamas. Compêndio dos símbolos melancólicos da desgraça romântica, a obra põe Lord Hebert [1583–1648] reclinando-se sobre um regato num bosque isolado. Sua gola abre-se, com os cordões pendentes, e sua cabeça está apoiada em uma das mãos.

ALÉM DE SER sinal de romantismo, a melancolia era vista como prova de outras características e qualidades inatas, como inteligência, seriedade, nobreza. Na Anatomia da Melancolia (1621), Robert Burton [1577–1640] escreve que “não há maior causa para a melancolia do que a ociosidade”. Assim, era socialmente útil aparecer de modo melancólico se você aspirasse passar uma imagem de lazer endinheirado.

Por volta de 1600, Hilliard escreveu um dos primeiros livros em inglês sobre artes visuais, The Art of Lining. Na obra, ele se classifica como sofredor de episódios de “melancolia” e das “paixões da tristeza e do luto”. Hilliard era um homem ambicioso, disposto a ver a pintura considerada como uma arte cavalheiresca em vez de mero trabalho de artesão. Por se representar como deprimido, ele de certa forma comprova suas aspirações.

O princípio aristotélico que ligava genialidade à melancolia era perfeito para os ideais do humanismo renascentista. No início do século XVI, as imagens da melancolia — geralmente na forma de uma mulher alegórica — são cheias de mistério. Elas exalam um intelectualismo ponderado, mas usam níveis de simbolismo que se perderam para nós. Em Melancolia I, célebre gravura de Albrecht Dürer [1471–1528] feita em 1514, uma figura alada e andrógina, de expressão casmurra num rosto habilmente sombreado e apoiado na mão, senta-se cercada de tralhas de diversas disciplinas humanistas.

Melancolia I (Dürer, 1514) costuma ser apontada como a raiz da masculinidade melancólica na arte ocidental. Do Metropolitan Museum of Art.

Embora a figura seja comumente descrita com pronomes femininos, seus cabelos e traços faciais são similares aos do próprio Dürer — que, em sua autobiografia, apresenta-se como menino-prodígio. Mais tarde, muitos estudiosos de sua época passam a concordar com essa auto-descrição. Um de seus admiradores seria Hilliard, que o veria como uma estrela-guia. Hoje, muitos historiadores da arte consideram essa obra o momento em que o tema do gênio melancólico foi fundado na arte ocidental. Desde então, a melancolia passa a se tornar um assunto decididamente masculino.

Homem de luto por Sir Philip Sidney (autor desconhecido, c. 1587).

A pose do intelectual tristonho permaneceu em voga para os homens a partir disso. Similarmente, a imagem do homem alienado — de alienação social ou romântica — foi virada do avesso, para fazê-lo parecer mais desejável. O conjunto de obras de arte visual que captam esse modo de pensar ganha uma relevância novamente nessa nossa época de preocupação com a saúde mental e condicionamento social dos homens. Ao mesmo tempo, essa vulnerabilidade e sensitividade é empregada como sinal dos que se consideram “caras legais”.

Ao nos mirar a partir de seus retratos, esses moços tristes da Era Elizabetana parecem a encarnação perfeita da imortal abertura de um poema de John Donne, Witchcraft by a Picture [Enfeitiçado por uma Imagem, que traduzimos livremente]: “Eu fixo meus olhos nos seus e ai, / Pobre da minha imagem queimando seu olhar”.

JONATHAN McALOON é jornalista cultural e crítico de arte britânico, formado pela Universidade de Oxford. Já contribuiu com matérias e resenhas para diversos veículos, como BBC, Guardian, Telegraph e Irish Times. Este artigo sobre melancolia masculina foi publicado originalmente no Artsy em 10/06/2019.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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