Politicamente Correto — como a direita inventou uma ameaça fantasma
Durante 25 anos, invocar um inimigo vago e mutante tem sido uma tática favorita da direita. A vitória de Donald Trump é o maior triunfo dessa estratégia.
Por Moira Weigel, no Guardian. Tradução de Renato Pincelli.
HÁ TRÊS SEMANAS [no começo de novembro de 2016], cerca de um quarto da população americana elegeu como presidente um demagogo sem experiência em cargos públicos. Aos olhos de muitos de seus apoiadores, essa falta de preparo não era uma fraqueza, mas um trunfo. Donald Trump concorreu como um candidato cuja principal qualificação era não ser “um político”. Apresentar-se como um “azarão” ou “forasteiro” numa cruzada contra o estabelecimento político corrompido de Washington é um dos mais velhos truques da política americana. Mas Trump foi além disso: ele quebrou incontáveis regras tácitas sobre o que figuras públicas pode ou não fazer ou dizer.
Todo demagogo precisa de um inimigo. Para Trump, era a elite governante, a quem acusava de não apenas falhar em resolver os mais sérios problemas enfrentados pelos americanos mas também de impedir qualquer um de tentar falar sobre esses problemas. “Os interesses especiais, a mídia arrogante e os insiders políticos não querem que eu fale sobre o crime que está acontecendo em nosso país”, disse Trump num discurso no fim de setembro. “Eles só aceitam que eu acompanhe as mesmas políticas falidas que causaram tanto sofrimento desnecessário.”
Trump afirmava que Barack Obama e Hillary Clinton estavam dispostos a permitir o sofrimento dos americanos comuns porque sua principal prioridade era a correção política. “Eles colocaram a correção política acima do senso comum, acima de sua segurança e acima de qualquer outra coisa”, declarou Trump após um atirador muçulmano matar 49 pessoas numa boate gay em Orlando. “Eu me recuso a ser politicamente correto.” Onde os liberais veem uma tentativa de mudar a linguagem para refletir uma sociedade cada vez mais diversa — onde cidadãos buscam evitar trocar ofensas gratuitas entre si — ,Trump via uma conspiração.
Durante uma campanha errática, Trump atacou de maneira consistente o politicamente correto, culpando-o por uma extraordinária série de males e usando a frase para fugir de toda e qualquer crítica. Durante o primeiro debate das primárias republicanas, a apresentadora Megyn Kelly, da Fox News, perguntou a Trump como ele responderia à acusação de ser “parte na guerra contra as mulheres”. “Você já chamou mulheres de que não gosta de ‘porcas gordas’, ‘babonas’ e ‘animais nojentos’”, relembrou Kelly. “Uma vez você disse que uma participante d’O Aprendiz teria uma boa imagem se estivesse ajoelhada…”
“Eu acho que o grande problema deste país é que ele tem sido politicamente correto”, respondeu Trump sob os aplausos da audiência. “Eu tenho sido desafiado por tanta gente que, sinceramente, não tenho tempo para ser politicamente correto. E sendo honesto com você, este país também não tem tempo para isso.”
Trump usou a mesma defesa quando os críticos questionaram suas afirmações sobre imigração. Em junho de 2015, depois que Trump se referiu aos mexicanos como “estupradores”, a NBC — mesma rede que exibiu seu reality show O Aprendiz — anunciou que estava cortando suas ligações com ele. A equipe de Trump replicou dizendo que a “NBC é fraca e como todo mundo está tentando ser politicamente correta.”
Em 2016, após dizer que o juiz americano Gonzalo Curiel, do distrito de San Diego, estaria impedido de julgar a ação contra a Trump University por ser mexicano-americano e consequentemente enviesado contra ele, Trump disse à CBS News que aquilo era de “senso comum”. Ele prosseguiu: “Temos que parar de ser tão politicamente corretos nesse país.” Durante o segundo debate presidencial, Trump respondeu a uma questão sobre sua proposta de “banir muçulmanos” da seguinte maneira: “Nós poderíamos ser bastante politicamente corretos, mas gostando ou não disso, isso é um problema.”
Toda vez que Trump dizia algo “ofensivo”, os comentaristas sugeriam que ele finalmente havia passado dos limites e sua campanha estava condenada. Vez após vez, porém, os fãs de Trump deixaram claro que gostavam dele porque ele não tinha medo de dizer o que pensa. Eles gostavam muito mais do modo como Trump falava do que das políticas que ele mencionava. Ele manda a real, diziam. Fala na lata. Ele não é politicamente correto.
Trump e seus seguidores nunca definiram o que é ser “politicamente correto” nem especificaram quem estava impondo isso. Isso não era necessário. A frase representava forças poderosas determinadas a suprimir verdades inconvenientes por meio do policiamento da linguagem.
Existe uma contradição óbvia em reclamar veementemente, diante de centenas de milhões de pessoas, que você está sendo silenciado. Mas essa ideia — a de que existe um conjunto de atores anônimos e poderosos, que tentam controlar de tudo, até as palavras que você usa — é agora uma tendência global. Tabloides direitistas britânicos fazem frequentes denúncias da “enlouquecida correção política” e bradam contra a hipocrisia da “elite metropolitana”. Na Alemanha, jornalistas e políticos conservadores têm feito reclamações similares. Após os abusos de mulheres em Colônia no Ano-Novo passado, por exemplo, o chefe de polícia Rainer Wendt disse que os esquerdistas estavam pressionando os policiais para que fossem politisch korrect, impedindo-os de fazer seu trabalho. Na França, Marine Le Pen, da Frente Nacional, condenou os conservadores mais tradicionais, “paralisados por seu medo de confrontar a correção política”.
A repetição incessante do termo por Trump levou muitos escritores, desde a eleição, a apontar que esse foi o segredo de sua vitória: uma reação contra os excessos do “politicamente correto”. Alguns argumentaram que Hillary Clinton falhou por estar muito próxima de um parente do politicamente correto, a “política de identidade”. Sob um exame mais detido, “politicamente correto” parece um conceito cada vez mais escorregadio. É algo que os retóricos da Grécia Antiga chamariam de exônimo: um termo que serve para outro grupo, diferente daquele a qual pertence o orador. Ninguém nunca se apresenta como “politicamente correto”. A frase sempre surge como acusação.
Quando você diz que algo é tecnicamente correto, sugere que está errado — o advérbio antes de “correto” implica um “não”. Entretanto, dizer que uma afirmação é politicamente correta tem um efeito mais insidioso, por indicar que o interlocutor está agindo de má-fé. Ele ou ela tem segundas intenções e esconde a verdade para que possa impor uma agenda ou demonstrar superioridade moral. Dizer que alguém está sendo “politicamente correto” gera duplo descrédito. Primeiro, essa pessoa está errada. Segundo, e ainda pior, ela sabe disso.
Quando buscamos as origens da frase, fica claro que não existe uma história limpinha de correção política. O que sempre existiu foram campanhas contra algo chamado “correção política”. Durante 25 anos, invocar esse inimigo vago e mutante tem sido uma tática favorita da direita. A oposição à correção política tem se provado uma forma altamente eficaz de cripto-política, que transforma a paisagem política agindo como se não fosse nem um pouco política. Trump é o mais bem-sucedido praticante dessa estratégia.
A MAIORIA DOS AMERICANOS nunca havia ouvido o termo “politicamente correto” antes de 1990, quando ele começou a aparecer numa onda de matérias em jornais e revistas. Uma das primeiras e mais influentes foi publicada em outubro de 1990 pelo repórter Richard Bernstein, do New York Times. Sob o título A Crescente Hegemonia do Politicamente Correto, ele alertava que as universidades do país estavam ameaçadas por “uma crescente intolerância, um fechamento do debate, uma pressão para se conformar.”
Bernstein havia acabado de retornar de Berkeley, onde teve investigando o ativismo estudantil. Ele escreveu que havia uma “ideologia não-oficial da universidade” segundo a qual um “conjunto de opiniões sobre raça, ecologia, feminismo, cultura e política externa define um tipo de atitude ‘correta’ diante dos problemas do mundo.” Como exemplo, “sacos de lixo biodegradáveis ganham o selo de aprovação PC [Politicamente Correto]. A [companhia petrolífera] Exxon não.”
O alarmante artigo de Bernstein, publicado num dos principais jornais dos Estados Unidos, iniciou uma reação em cadeia na qual toda publicação mainstream correu para denunciar a nova tendência. No mês seguinte, a colunista Dorothy Rabinowitz, do Wall Street Journal, deplorava “o admirável mundo novo de fervor ideológico” nas universidades americanas. Em dezembro, a capa da Newsweek — com uma circulação de mais de 3 milhões de exemplares — apresentava a manchete “POLÍCIA DO PENSAMENTO” e outro alarme assustador: “Existe uma maneira ‘politicamente correta’ de falar sobre raça, sexo e ideias. É o Novo Iluminismo ou o Novo McCartismo?”. Matéria similar decorava a capa da revista New York em janeiro de 1991, que informava que “Os novos fascistas” estavam tomando conta das universidades. Em abril, a Time reportava o crescimento de “uma nova intolerância” entre os campi universitários.
Se fizer uma busca no ProQuest, um banco de dados digital com jornais e revistas norte-americanos, vai descobrir que a frase “politicamente correto” raramente aparecia antes de 1990. Naquele ano, apareceu 700 vezes. Em 1991, foram mais 2500 ocasiões de uso. Em 1992, foram mais de 2800 aparições. Como os filmes de Indiana Jones, essas matérias apontavam inimigos de uma mistureba de velhas guerras: elas comparavam a “polícia do pensamento” tocando o terror nas faculdades aos stalinistas, aos McCartistas, à “Juventude Hitlerista”, aos fundamentalistas cristãos, aos maoístas e aos marxistas.
Muitos desses artigos requentavam as mesmas histórias sobre controvérsias em meia dúzia de campi universitários de elite, geralmente de forma exagerada ou descontextualizada. A matéria de capa da New York abria com um relato do professor de história de Harvard, Stephan Thernstrom, sendo atacado por estudantes fariseus que consideravam-no racialmente insensível: “Sempre que andava pelo campus naquela primavera, passando pelos caminhos de tijolos de Harvard, sob os portais arqueados, debaixo dos elmos em flor, ele percebeu que não era difícil imaginar o apontar de dedos, os sussurros. Racista. Lá vai o racista. Era infernal a perseguição.”
Pouco depois, numa entrevista que apareceu na The Nation, Thernstrom disse que o assédio descrito no artigo da New York nunca havia acontecido. O que houve foi um editorial no Harvard Crimson, o jornal estudantil, criticando sua decisão de ler longamente trechos de diários de proprietários de escravos em suas palestras. A descrição de seu estado de oprimido teria sido apenas “licença artística”. Pouco importa: o que colou foi a imagem de estudantes universitários engajados numa caça às bruxas. Quando publicou um livro baseado na reportagem sobre politicamente correto no New York Times, Richard Bernstein deu-lhe o título de Ditadura da Virtude: multiculturalismo e a batalha pelo futuro da América — era uma alusão aos jacobinos da Revolução Francesa. No livro, ele comparava as faculdades americanas à França dos tempos do Reino do Terror, quando dezenas de milhares de pessoas foram executadas em questão de meses.
NENHUMAS DAS MATÉRIAS que introduziram a correção política como ameaça era capaz de identificar quando ou onde ela havia surgido. Nem eram muito precisas quando tentavam explicar a origem da própria expressão. Os jornalistas frequentemente mencionavam os soviéticos — Bernstein via na frase um “quê de ortodoxia stalinista” — mas não havia um equivalente exato em russo (o mais próximo seria ideinost, que se traduz por correção ideológica, o que não tem nada a ver com pessoas desfavorecidas ou minorias). A intelectual e historiadora L.D. Burnett havia encontrado alguns exemplos esparsos de doutrinas ou pessoas sendo descritas como “politicamente corretas” nas publicações comunistas americanas a partir dos anos 1930. Geralmente, diz ela, a expressão tinha tom de galhofa.
A frase passou a ser usada mais frequentemente nos círculos esquerdistas americanos entre os anos 1960 e 1970 — provavelmente como um empréstimo irônico de Mao, que havia feito um famoso discurso em 1957 que foi mais tarde traduzido em inglês como “Do Manuseio Correto das Contradições entre o Povo”.
Ativa nos movimentos feminista e de direitos civis, a professora de literatura do MIT Ruth Perry diz que muitos radicais estavam lendo o Livro Vermelho na virada dos anos 60 para os 70 e recorda-se que muitos amigos pegaram ali o adjetivo “correto”. Mas eles não o usavam da mesma maneira que Mao. Entre os esquerdistas americanos, “politicamente correto” tornou-se uma espécie de piada interna — algo que você usava para chamar a atenção do colega esquerdista quando ele ou ela estivesse sendo muito certinho. “O termo era quase sempre usado como ironia”, diz Perry. “Sempre para chamar a atenção para um possível dogmatismo.”
Em 1970, a ativista e escritora afro-americana Toni Cade Bambara usou o termo num ensaio sobre as relações de gênero no interior de sua comunidade. Não importava quão “politicamente corretos” seus amigos pensassem que estavam sendo, ela escreveu que muitos deles deixavam de reconhecer as dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras.
Até o fim dos anos 1980, a “correção política” era usada quase exclusivamente dentro da esquerda e quase sempre em tom irônico, como crítica a uma postura excessivamente ortodoxa. De fato, algumas das primeiras pessoas a se manifestar contra o “politicamente correto” foram um grupo de feministas que se apresentavam como Lesbian Sex Mafia. Em 1982, num teatro de East Village, em Nova York, elas fizeram um ato em “Defesa do Sexo Politicamente Incorreto” — isto é, um comício contra as companheiras feministas que haviam condenado a pornografia e o BDSM. Mais de 400 mulheres compareceram, muitas das quais vestidas com colares de couro e brandindo prendedores de mamilos e dildos. A escritora e ativista Mirtha Quintanales resumiu o humor do grupo quando disse: “Precisamos ter conversas sobre problemas de S&M, não sobre o que é ‘politicamente correto’ e ‘politicamente incorreto’.”
O jornalista e crítico de hip-hop Jeff Chang, que escreveu muito sobre raça e justiça racial, lembra que no fim dos anos 80 os ativistas que ele conheceu na região de San Francisco usavam a frase “de maneira jocosa, como um modo de um seguidor desconsiderar a linha de pensamento de outro”.
Não demorou muito para o termo ser descoberto pela direita, que virou seu sentido pelo avesso. De repente, em vez de ser a frase usada pelos esquerdistas contra as tendências dogmáticas de seus movimentos, “politicamente correto” tornou-se assunto para os neoconservadores. Eles diziam que o PC tratava-se de um programa político esquerdista que estava tomando o controle de universidades e instituições culturais americanas — e eles estavam determinados a impedir isso.
ADIREITA VINHA fazendo campanhas contra acadêmicos liberais há mais de uma década. A partir de meados dos anos 70, um punhado de doadores conservadores financiou a criação de dezenas de novos think-tanks e “institutos de treinamento” que ofereciam os mais variados programas, de “liderança” a telejornalismo passando pelo levantamento de fundos por mala-direta. Eles bancaram bolsas para estudantes de graduação conservadores além de cargos de pesquisadores e catedráticos em universidades de prestígio. O objetivo declarado era desafiar o que eles viam como uma predominância do liberalismo e atacar as tendências esquerdistas a partir do interior da academia.
No fim da década de 80, esse movimento conservador bem financiado começou a dar frutos com uma série de bestsellers improváveis voltados contra o ensino superior americano. O primeiro, de autoria de Allan Bloom, professor de filosofia da Universidade de Chicago, saiu em 1987. Ao longo de centenas de páginas, O fechamento da mente americana argumentava que as faculdades estavam abraçando um “relativismo cultural” raso e abandonando disciplinas e padrões longamente estabelecidos numa tentativa de parecer liberal e agradar seus estudantes. Foram vendidas mais de 500 mil cópias deste livro, que inspirou inúmeras imitações.
Editor do jornal conservador The New Criterion, Roger Kimball publicou, em abril de 1990, Radicais diplomados: como a política corrompeu nosso ensino superior. Como Bloom, Kimball argumentava que estava acontecendo um “assalto ao currículo” e que uma “política de vitimismo” havia paralisado as universidades. Como evidência, citava a existência de departamentos como os dedicados aos estudos afro-americanos e feministas. Ele zombou dos títulos que ouviu falar nas conferências acadêmicas, tais como “Jane Austen e a garota que se masturba” ou “O Falo Lésbico: a heterossexualidade existe?”
Em junho de 1991, o jovem Dinesh D’Souza seguiu os passos de Bloom e Kimball ao publicar Educação Iliberal: políticas raciais e sexuais no campus. Enquanto Bloom lamentava o surgimento do relativismo moral e Kimball atacava o que considerava “fascismo liberal” e o que considerava linhas de pesquisa frívolas, D”Souza afirmava que as políticas de admissão que levavam a raça em consideração estavam produzindo uma “nova segregação no campus” e “um ataque as padrões acadêmicos”. A Atlantic publicou um excerto de 12 mil palavras como sua matéria de capa de junho. Para coincidir com o lançamento, a Forbes apresentou outro artigo de D’Souza intitulado “Visigodos de Tweed”.
Essas obras não enfatizavam a frase “politicamente correto”, usada diretamente apenas por D’Souza. Mas os três livros passaram a ser citações regulares no dilúvio de artigos anti-PC que tomou conta de publicações como New York Times e Newsweek. Quando isso acontecia, os autores eram citados como fontes neutras. Incontáveis artigos repetiram seus argumentos de maneira acrítica.
Em alguns pontos, esses livros e artigos eram uma resposta a mudanças genuínas que ocorriam no interior da academia. É verdade que os scholars estavam se tornando cada vez mais céticos sobre a possibilidade de falar sobre verdades universais que estavam além da linguagem e da representação. Teóricos europeus que se tornaram influentes nos departamentos de ciências humanas americanos nos anos 70 e 80 pensavam que a experiência individual era moldada por sistemas que poderiam passar despercebidos pelo indivíduo — especialmente pela linguagem. Michel Foucault, por exemplo, argumentava que todo conhecimento expressa formas historicamente específicas de poder. Jacques Derrida, alvo frequente dos críticos conservadores, praticava o que chamava de “desconstrução”, relendo os clássicos da filosofia de maneira a mostra que mesmo as categorias que mais pareciam inocentes e diretas estavam repletas de contradições internas. O valor de ideais como “humanidade” ou “liberdade” já não podia ser tomado como certeza.
Também era verdade que muitas universidades estavam criando novos “departamentos de estudos”, que investigavam as experiências e enfatizavam as contribuições de grupos que haviam sido excluídos da academia e de seus currículos: gays, negros e mulheres. Isso não era de se estranhar: tais departamentos eram reflexo de novas realidades sociais. A demografia dos estudantes universitários estava mudando junto com a demografia dos Estados Unidos. Por volta de 1990, apenas 2/3 dos americanos menores de 18 anos eram brancos. Na Califórnia, as turmas de calouros em muitas universidades públicas eram agora compostas de uma “maioria de minorias”, i.e., mais de 50% de não-brancos. As mudanças curriculares nas graduações espelhavam mudanças na população estudantil.
As respostas oferecidas pelos bestsellers conservadores a essas mudanças eram desproporcionais e geralmente enganadoras. Bloom, por exemplo, reclamava bastante sobre a “militância” dos estudantes afro-americanos na Universidade Cornell, onde ele havia lecionado nos anos 60. Ele nunca mencionou os motivos por trás das demandas dos estudantes pela criação de cursos afro-americanos. Em 1969, o maior protesto ocorreu em Cornell após uma cruz incendiada aparecer no campus, uma clara ameaça da KKK. No ano seguinte, um incendiário botou fogo no Centro de Estudos Africanos, criado justamente em resposta a esses protestos.
Mais do que qualquer omissão em particular, o aspecto mais enganador desses livros era que eles diziam que apenas seus adversários eram “políticos”. Bloom, Kimball e D’Souza afirmavam querer “preservar a tradição humanística”, como se seus inimigos acadêmicos estivessem vandalizando um currículo que estivesse sacramentado desde tempos imemoriais. Mas componentes curriculares sempre estiveram em fluxo e mesmo entre os anglo-americanos brancos nunca houve uma tradição realmente estável. Moby Dick era desprezado como o pior livro de Herman Melville até meados dos anos 1920. Foi mais ou menos na mesma época que muitas universidades passaram a oferecer cursos de literatura de línguas “vivas”.
Na verdade, esses cruzados contra a correção política eram tão politizados quanto seus opositores. Como Jane Mayer documenta em Dinheiro nas Sombras: a história oculta dos bilionários por trás do nascimento da direita radical, Bloom e D’Souza foram financiados por redes de doadores conservadores — particularmente as famílias Koch, Olin e Scaife — que passaram os anos 1980 construindo programas na esperança de criar uma nova “contra-intelligentsia”. The New Criterion, jornal onde Kimball trabalhava, também havia sido bancado pelas fundações Olin e Scaife. No livro Um Tempo para a Verdade (1978), William Simon, presidente da Fundação Olin, incentivava os conservadores a patrocinar os intelectuais que compartilhavam de sua visão de mundo: “Eles devem receber doações, doações e mais doações em troca de livros, livros e mais livros.”
Essas escaramuças curriculares eram parte de um programa político mais amplo e foram instrumentais na criação de uma nova aliança para os políticos conservadores americanos — uma aliança entre os eleitores do proletariado branco, os pequenos empreendedores e os políticos que defendiam agendas que beneficiavam muito pouco essas pessoas.
Ao ridicularizar os professores que falavam numa linguagem que a maioria das pessoas considerava incompreensível (“O Falo Lésbico”), estudantes ricos da Ivy League [grupo das universidades mais caras dos EUA] poderiam posar de anti-elitistas. Ao desdenhar de cursos sobre escritores como Alice Walker e Toni Morrison, eles fizeram um apelo às pessoas brancas que sentiam estar perdendo o seu país. Com o passar dos anos 90, à medida que o multiculturalismo tornou-se associado à globalização — a força que estava exportando tantos trabalhos que tradicionalmente sustentavam operários brancos — atacá-lo permitiu aos conservadores lavar as mãos pela responsabilidade que tinham pelas dificuldades enfrentadas por muitos de seus eleitores. A causa de seus problemas, diziam, não era o corte de serviços sociais, a redução de impostos, a implosão dos sindicatos ou a terceirização — eram aqueles “outros”, os estrangeiros.
O politicamente correto foi uma invenção útil para a direita republicana porque ajudou o movimento a criar um fosso entre a classe trabalhadora e os democratas que afirmavam falar por eles. Politicamente correto foi o termo usado para martelar na cabeça do público que havia uma divisão cada vez maior ente as “pessoas comuns” e a “elite liberal”, que buscava controlar os discursos e os pensamentos da gente. A oposição à correção política também foi uma maneira de reinventar o racismo de uma maneira que fosse politicamente aceitável no período pós-direitos civis.
Logo, os republicanos estavam reproduzindo em palcos nacionais a mensagem que havia sido testada e aprovada na academia. Em maio de 1991, o presidente George H. W. Bush deu um discurso de abertura na Universidade de Michigan. Nesse discurso, ele identificou a correção política como um grave perigo à América. “Ironicamente”, declarou o então presidente, “no 200º. aniversário de nossa Declaração de Direitos, estamos observando ataques à liberdade de expressão por todo os EUA. A noção de correção política inflamou os debates por todo o país.” Mas ele fez um alerta: “Em sua própria maneira Orwelliana, os cruzados que exigem um comportamento correto esmagam a diversidade em nome da diversidade.”
DEPOIS DE 2001, os debates sobre politicamente correto saíram do radar público, sendo substituídos por discussões sobre o islamismo e o terrorismo. Porém, nos últimos anos do governo Obama, a correção política renasceu. Ou melhor, renasceu uma anti-correção política.
À medida que ganhavam força movimentos como Black Lives Matter e os protestos contra a violência sexual, uma baciada de artigos opinativos atacou os participantes desses movimentos, criticando-os ao dizer que eles estavam obcecados com o policiamento do discurso. Mais uma vez o foco inicial da controvérsia estava nas universidades mas as palavras-chave eram novas. Em vez de “diferença” e “multiculturalismo” os americanos de 2012 e 2013 começaram a ouvir coisas como “trigger warnings”, “espaços seguros”, “microagressões”, “privilégios” e “apropriação cultural”.
Dessa vez, os estudantes foram mais açoitados que os professores. Se o primeiro tempo do anti-politicamente-correto evocava os fantasmas dos regimes totalitários, o segundo tempo apelava ao lugar-comum de que os millenials são narcisistas mimados, capazes de impedir qualquer um de emitir opiniões que lhes pareçam ofensivas.
Em janeiro de 2015, o escritor Jonathan Chait publicou um dos primeiros perfis anti-PC na revista New York. “Algo não muito PC para se dizer” seguia o modelo dos artigos opinativos publicados no New York Times, Newsweek e na própria New York no começo dos anos 90. Como o artigo na New York de 1991, a abertura era uma anedota ambientada num campus, que supostamente demonstrava que a correção política havia passado dos limites e extrapolava esse incidente para uma generalização bastante ampla. Em 1991, John Taylor escreveu: “O novo fundamentalismo preparou um raciocínio para anular todas as dissidências.” Em 2015, Chait proclamava que novamente estávamos sob a ameaça de “multidões doidas para esmagar ideias opositoras.”
Chait alertava que os perigos do PC haviam crescido e estavam maiores do que nunca. A correção política já não estava mais confinada às universidades. Agora, ele argumentava, ela havia tomado o controle das mídias sociais e, assim, havia “alcançado uma influência sobre o jornalismo tradicional e seus comentarista muito além do que antes”. Como evidência dessa influência “hegemônica” de atores esquerdistas não nomeados, Chait citava duas jornalistas que diziam ter sido criticadas no Twitter por seguidores de esquerda.
O artigo de Chait abriu as comportas de uma enxurrada de réplicas sobre “caçadores de bullies” nas faculdades e nas mídias sociais. Na capa de sua edição de setembro de 2015, a Atlantic publicou um artigo de Jonathan Haidt e Greg Lukianoff (Lukianoff é chefe da Fundação por Direitos Individuais na Educação, outra organização patrocinada pelas famílias Olin e Scaife). O título, “Mimando a Mente Americana”, era uma referência a Allan Bloom, padrinho do movimento anti-PC. O artigo, compartilhado mais de meio milhão de vezes, anunciava que “em nome do bem-estar emocional, os estudantes universitários estão exigindo cada vez mais proteção contra palavras e ideias de que não gostam”.
Esses textos cometiam muitas das mesmas falácias dos seus antecessores noventistas. As anedotas escolhidas a dedo e o caricaturamento dos alvos de suas críticas. Eles reclamava que outras pessoas estavam criando e impondo códigos de discurso ao mesmo tempo em que tentavam forçar seus próprios códigos discursivos. Os autores se apresentavam como árbitros do quais conversas ou exigências políticas podiam ser levadas a sério e quais delas não podiam. Eles se contradiziam da mesma maneira: eram autores que, em publicações de grande audiência, reclamavam estar sendo silenciados.
O clima do jornalismo digital e do compartilhamento das redes sociais permitiu que histórias anti-politicamente corretas (e as anti-anti-politicamente corretas) se espalhassem ainda mais e mais depressa do que nos anos 90. Casos de anti-PC e anti-anti-PC são baratos: como lidam com identidade, qualquer escritor pode dar o seu pitaco, baseado em suas experiências, sem a necessidade de tempo ou recursos para se aprofundar numa reportagem. Também é o clickbait perfeito: elas inspiram raiva ou raiva da raiva dos outros.
Enquanto isso, uma estranha convergência acontecia. Ao mesmo tempo em que Chait e seus colegas liberais atacavam a correção política, Donald Trump e seus seguidores faziam o mesmo. Chait declarou que os esquerdistas estavam “pervertendo o liberalismo” e apontou a si mesmo como defensor do centrismo liberal. Trump, por sua vez, afirmava que a mídia liberal havia “distorcido” o sistema.
Os liberais anti-PC estavam tão focados nos esquerdistas do Twitter que durante meses eles subestimaram a seriedade de uma ameaça real ao discurso liberal. Uma ameaça vinda não das mulheres, dos negros ou dos gays mobilizados pelos seus direitos civis dentro e fora das faculdades. Era uma ameaça vinda de @realdonaldtrump, e sites neo-nazis e de extrema direita como o de Breitbart.
ORIGINALMENTE, os críticos do PC eram acadêmicos ou ex-acadêmicos, formados pela Ivy League que andavam por aí de gravata-borboleta citando Platão e Matthew Arnold. É difícil imaginar Trump citando Platão ou Arnold ou fazendo piada com os títulos de artigos da literatura acadêmica. Durante sua campanha, a rede de doadores que bancou décadas de atividade anti-PC — os Koch, os Olin e os Scaife — evitaram Trump, citando preocupações sobre as promessa populistas que ele estava fazendo. Trump vinha de uma alma mater diferente: não da Universidade de Chicago ou Yale, mas de um reality show. E ele estava comprando brigas diferentes, alvejando a mídia e o establishment político e não a academia.
Como candidato, Trump inaugurou uma nova fase do anti-politicamente correto. O que mais chama a atenção é como ele usou diferentes táticas em sua própria vantagem, explorando tanto os métodos testados e aprovados dos anos 90 como lançando suas próprias inovações.
Primeiro, ao falar sem parar em correção política, Trump estabeleceu o mito de que ele tinha inimigos poderosos e desonestos que queriam impedi-lo de encarar os desafios difíceis da nação. Ao alegar estar sendo silenciado, ele criou um drama no qual podia fazer o herói. A noção de que Trump era tanto perseguido quanto heroico foi crucial para seu apelo emocional. Isso permitiu que pessoas economicamente fragilizadas ou descontentes com os rumos das mudanças sociais pudesse se ver nele, que também estaria numa batalha contra um sistema que as faz se sentir impotentes e desvalorizadas. Ao mesmo tempo, a jactância de Trump lhes prometia que eles eram fortes e destinados à glória. Eles eram grandes e seriam grandes novamente.
Em segundo lugar, Trump não criticou simplesmente a ideia de correção política — ele de fato falou e agiu de maneiras que a cultura PC supostamente proibia. Enquanto a primeira onda de críticos conservadores do politicamente correto dizia estar defendendo o status quo, a missão de Trump era destruí-lo. Em 1991, ao alertar que a correção política era uma ameaça à liberdade de expressão, George H. W. Bush não escolheu exercer sua livre expressão para ridicularizar publicamente um homem com deficiências físicas ou caracterizar os mexicanos como estupradores. Quem fez isso foi Trump. Ao elevar os poderes do PC a um nível mítico, o bilionário, filho do dono de cortiços que fugiu do serviço militar, escarneceu dos pais de um militar morto em cobate e afirmou que sua crueldade e malícia havia sido, na verdade, um ato de coragem.
Essa disposição em ser mais odioso que qualquer candidato que lhe antecedeu garantiu-lhe cobertura ininterrupta da mídia, o que ajudou Trump a atrair apoiadores que concordavam com o que ele dizia. Não dá para subestimar quantos dos seguidores de Trump já mantinham opiniões racistas, sexistas, xenofóbicas e islamofóbicas e o quanto eles ficaram extasiados quando sentiram que ele havia lhes dado permissão para dizer tais coisas. É um velho truque: o poderoso encoraja o menos poderoso a ventilar sua ira contra aqueles que deveriam ter sido seus aliados, iludindo-os com a sensação de que foram libertados. Não custa nada ao poderoso, que recebe dividendos tremendos.
Trump usou uma clássica carta do jogo anti-politicamente correto ao implicar que, enquanto seus oponentes estavam operando segundo uma agenda política, ele queria apenas trabalhar sobre questões sensíveis. Ele fez diversas propostas controvertidas: deportar milhões de imigrantes não-documentados, banir a entrada de muçulmanos nos EUA, introduzir métodos de policiamento e revista que já foram considerados inconstitucionais. Ao responder dizendo que seus críticos estavam apenas sendo politicamente corretos, Trump tentava colocar suas propostas fora dos domínios da política. Algo político é algo sobre o qual as pessoas podem discordar razoavelmente. Ao usar a expressão como um cala-boca, Trump agia como se estivesse tratando de verdades tão óbvias que estavam acima de qualquer disputa. “É apenas o senso comum”, dizia.
A parte mais alarmante dessa abordagem é o que ela significa sobre a atitude de Trump em relação à política em termos mais amplos. Seu desprezo pela correção política se parece muito com desprezo pela própria política. Ele não fala em diplomacia, fala em “negócios”. O debate e a discordância são fundamentais para a política, mas Trump já deixou claro que ele não tem tempo para essas distrações. Jogar a carta do anti-politicamente correto em resposta a um questionamento legítimo sobre uma política pública é acabar com a discussão da mesma maneira que os oponentes da correção política acusam os liberais e os esquerdistas de agir. Declarar que o assunto é tão trivial ou tão contrário ao senso comum que o debate torna-se inútil é, afinal, um modo de fugir do debate. É também um impulso autoritário. Ao apresentar-se como campeão do senso comum, Trump dá a si mesmo a permissão para ultrapassar completamente a política.
Agora que ele é [ou melhor, era] presidente-eleito, não está claro se Trump realmente quis dizer o que declarou durante sua campanha. Até agora, porém, ele está cumprindo sua promessa de combater a correção política. Semana passada ele disse ao New York Times que estava buscando construir um governo composto pelas “melhores pessoas” mas “não necessariamente pessoas que serão as mais politicamente corretas porque isso não está funcionando.”
Em resposta às críticas, Trump continua chamando os adversários de PC. Quando um entrevistador do Politico perguntou a um membro da equipe de transição o por quê de Trump estar nomeando tantos lobistas e politiqueiros apesar da promessa de “ drenar o pântano” deles, a fonte respondeu que “uma das partes mais renovadoras do… estilo Trump é que ele não se importa com a correção política.” Pelo visto, seria politicamente correto exigir que ele mantivesse suas promessas de campanha.
Enquanto Trump se prepara para entrar na Casa Branca, muitos comentaristas concluíram que a “correção política” deu um gás aos movimentos populistas que varrem a Europa e os EUA. Embora digam os líderes desses movimentos digam o mesmo, a verdade é o oposto: foram esses líderes que compreenderam o poder que o anti-politicamente correto tem sobre uma classe de eleitores, geralmente brancos, que sentem-se afetados pelo status quo e ressentem-se com as mudanças nas normas culturais e sociais. Esses líderes não estavam reagindo a uma ditadura do politicamente correto nem desejam fazer a América retornar a uma fase prévia de sua história. Eles não estavam querendo nada de volta, só estavam usando o anti-politicamente correto como uma arma e uma ferramenta para moldar uma nova paisagem política e um futuro assustador.
Os oponentes da correção política sempre disseram que estavam numa cruzada contra o autoritarismo. Na verdade, o anti-PC é que abriu caminho para autoritarismo populista que agora se espalha por todos os lados. Trump é o anti-politicamente correto enlouquecido.
Nascida no Brooklyn, MOIRA WEIGEL já escreveu artigos no The Guardian (onde este foi originalmente publicado em 30/11/16), The Nation, The New Republic, The New Inquiry, dentre outros, e é autora de “Labor of Love: the invention of dating” [Trabalho de Amor: a invenção do dating]. Atualmente, ela está terminando um pós-doutorado em Literatura Comparada na Universidade de Yale.