Por que a Singularidade não vai rolar
A Singularidade não é uma visão de progresso social. É um fracasso completo em imaginar como a tecnologia pode modificar a sociedade no futuro.

Por Annalee Newitz, para o Gizmodo (Outubro de 2010).
Tradução de Renato Pincelli.
NÃO ACREDITO NA SINGULARIDADE, pelo mesmo motivo que não acredito no Paraíso. Certa vez encontrei um pregador da Singularidade que alegava que comer batatas chips após a Singularidade nos induziria ao sublime êxtase. Nossos sentidos seriam tão elevados que poderíamos concentrar nossa atenção inteira na crocância definitiva da batatinha.
Para ele, a Singularidade era igual ao Paraíso do catecismo, repleta de versões turbinadas de tudo o que adoramos aqui na Terra. Só que, em vez de um Deus-todo-poderoso fazendo filhotinhos de cachorro angelicais brotar para nosso prazer, nós usaríamos as supostas ferramentas da Singularidade — como nanotecnologia e Inteligência Artificial (IA) — para evocar a mais deliciosa junk food de todas.
Esta não é uma visão de progresso social. É, de fato, um fracasso completo em imaginar como a tecnologia pode modificar a sociedade no futuro.
Embora seja fácil ridicularizar o carinha que falou sobre as batatinhas pós-Singularidade, sua fé é um emblema das crenças Singularitárias. Muitas pessoas de mentalidade científica acreditam que a Singularidade é um período futuro no qual a civilização humana será completamente transformada por tecnologias, especificamente pela IA e por máquinas que podem controlar a matéria em níveis atômicos (para uma definição completa do que quero dizer com Singularidade, leia meu ensaio sobre o assunto). O problema com essa ideia é que ela é uma visão completamente irrealista de como a tecnologia muda a vida cotidiana.
Evidência em questão: Penicilina. Descoberta por avanços na biologia e refinada por avanços biotecnológicos, essa droga curou muitas doenças que matavam pessoas há séculos. Foi uma tecnologia de nível Singularidade, em todos os sentidos do termo. A penicilina prolongou vidas e revolucionou os tratamentos médicos.
No entanto, a longo prazo, ela nos deixou igualmente vulneráveis às doenças. As bactérias passaram por mutações, criando as infecções mais feias que já vimos. Agora estamos nos voltando para os probióticos em vez dos antibióticos. Estamos investigando terapias gênicas para contornar os problemas que criamos pela aplicação massiva da penicilina e seus derivados.
É assim que as tecnologias de nível Singularidade funcionam na vida real. É claro que elas resolvem problemas difíceis. Salvam vidas. Mas também criam problemas que jamais imaginamos, problemas que podem ser inconcebíveis antes da invenção da tecnologia Singular.
O que estou dizendo é que a batata chips não vai ter um gosto melhor após a Singularidade porque o futuro não é o presente anabolizado. O futuro é uma bactéria mutada que você nem viu chegar.
NO PARAÍSO, tudo é uma beleza. No futuro, nem tanto. Após a Singularidade, os humanos supostamente vão viver por períodos bem prolongados, se não para sempre. E nós construiremos espaçonaves usando nanorrobôs que fazem a montagem a partir de átomos de carbono. Sempre desconfio de previsões que soam como mitos religiosos. Não sou contra a religião — tudo bem comigo se você quiser acreditar em deus ou em dharma — mas eu me oponho a basear as visões de futuro em fantasias do passado em vez do que podemos tirar de acontecimentos históricos factuais.
Para as gerações anteriores, as máquinas industriais de produção em massa e os enormes dínamos que geravam eletricidade eram tecnologias de nível Singularidade. Com elas, os humanos poderiam realizar tarefas que eram simplesmente impossíveis um século antes. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, os panfletos estavam cheios de previsões sobre a humanidade alcançando uma nova era de lazer, com o tempo livre tornando-se cada vez maior a partir daí. Parecido com as batatinhas que só vão ficar cada vez mais gostosas.
O que as pessoas da era industrial não compraram — e sequer sabiam — foram todos os efeitos dos subprodutos da indústria, que destruiriam o meio ambiente. E não apenas num sentido de salve-o-planeta: quero lembrar que quando Friedrich Engels passou por Manchester em meados do século XIX, ele foi completamente pego desprevenido pelo modo como a vida das pessoas era destruída pela poluição e pelas condições nas cidades criadas ao redor das fábricas. Em resposta, ele escreveu The Condition of the Working Class in England [A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra], um documento que teria chocado os reformadores cinquenta anos antes, que acreditavam que a industrialização resolveria todos os problemas sociais e tiraria o peso do trabalho físico até dos ombros mais pobres.
Não dá pra negar que a industrialização lançou os alicerces para uma sociedade melhor e mais produtiva. A indústria trouxe incontáveis inovações e melhorou a vida de muitos trabalhadores. Mas ela também destruiu vidas de maneiras que Adam Smith [1723–1790, considerado o pai da economia moderna e fundador do liberalismo econômico] e Eli Whitney [1765–1825, engenheiro americano, inventor do descaroçador de algodão e pioneiro do sistema de linha de montagem] jamais poderiam imaginar. A indústria transformou nosso planeta inteiro, dos ecossistemas à atmosfera. Não é exagero dizer que não vivemos no mesmo planeta em que as pessoas viviam em 1750. O ambiente — das megacidades às partículas atmosféricas e ao lixo espacial — foi modificado a tal ponto.
Tecnologias de Singularidade alteram o mundo de modo que as coisas que nossos ancestrais desejavam já não são as mesmas coisas que queremos. Hoje estamos tentando reverter os efeitos da industrialização. Tentamos desfazer os prejuízos trazidos pela penicilina. Se a história — a História real — nos ensina qualquer coisa é que as novas tecnologias não nos levam à transcendência. Elas resolvem algumas coisas e depois criam novos problemas, coisas que sequer antecipamos.
Não é que seja impossível anteciparmos esses problemas, criando ideias e planos B para lidar com eles. Mas é difícil se preparar para problemas quando temos os olhos fixos no Paraíso — aquele lugar onde, finalmente, todos os nossos problemas estão solucionados e todos vivemos felizes para sempre. Esta é uma fantasia tão velha quanto a História escrita mas, ao contrário da História, ela nunca muda. Mesmo assim, continuamos a nos enganar, tomando-a como uma visão perfeita do futuro. Cada vez que aparece uma tecnologia de nível Singularidade, fazemos as malas para o paraíso em vez de pensar sensivelmente sobre como podemos impedir que os piores efeitos colaterais dessa nova tecnologia venham morder nossas bundas angelicais.
É SIMPLES ASSIM — as coisas nunca serão perfeitas. Se você vier a viver para sempre, será apenas por se transformar numa criatura tão distinta que “viver para sempre” não vai mais significar a mesma coisa. E daí se você puder controlar átomos quando suas espaçonaves gigantescas continuam tendo infecções de partículas subatômicas que você não consegue conter? A não ser que você plugue seu cérebro a um programa de êxtase, você terá que lidar com todas as evidências históricas de que as invenções transformadoras de cultura nunca se comportam da maneira que você espera. Aliás, nem a cultura é assim.
Tudo o que peço é que, se você olha para uma narrativa que explica o futuro, pense no seguinte: essa narrativa te promete coisas que soam feito religião? Um mundo onde os problemas de hoje estão resolvidos, mas não surge nenhum problema novo? Um mundo onde a história humana é irrelevante? Se sim, então você está no pântano do pensamento por Singularidade.
Mas se essa narrativa trata das consequências, das complicações, dos múltiplos resultados possíveis, então você está mais próximo de algo como uma verdade em potencial. Pode não ser tão gosto quanto as batatinhas crocantes, mas é o que temos. Talvez seja melhor se preparar para a mutação que vai começar.
ANNALEE NEWITZ descreve-se em seu perfil como alguém que “escreve sobre ciência, cultura e o futuro”. Jornalista científica formada pelo MIT, foi co-fundadora do io9 e editora-chefe do Gizmodo (saiu de ambos em 2015). Atualmente trabalha como freelancer, com contribuições para títulos como New York Times, New Scientist, Ars Technica, The New Yorker e The Atlantic. Escreve tanto não-ficção — como Four Lost Cities: a secret History of the Urban Age — quanto ficção científica — The Future of Another Timeline. Newitz é, ainda, uma das apresentadoras do podcast Our Opinions are Correct. O presente artigo sobre a impossibilidade da Singularidade saiu no Gizmodo americano em 14/10/2010.