Por que os americanos ainda se incomodam com o ateísmo?

Dois livros exploram o que creem os que não têm crença

Renato Pincelli
18 min readJul 20, 2023
“Um mundo sem deus”, argumenta John Gray, “é tão misterioso quanto um mundo repleto de divindade.” Gray é filósofo e autor de ‘Sete Tipos de Ateísmo’. [Ilustração de Seb Agresti]

Por Casey Cep. New Yorker, Outubro de 2018. Tradução de Renato Pincelli.

DANIEL SEEGER TINHA 21 ANOS QUANDO escreveu ao seu comitê de recrutamento local para dizer: “concluí que a guerra, do ponto de vista prático, é fútil e autodestrutiva, e do ponto de vista moral mais importante, é antiética.” Algum tempo depois, ele recebeu o Formulário 150 do Sistema de Serviço Seletivo dos Estados Unidos, pedindo-lhe que detalhasse suas objeções ao serviço militar. Ele demorou alguns dias a responder, porque não tinha resposta para a primeira pergunta do formulário: “Você acredita num Ser Superior?”

Insatisfeito com as duas alternativas disponíveis — “Sim” e “Não” — Seeger decidiu finalmente desenhar e marcar uma terceira caixa: “Ver páginas em anexo.” Eram oito páginas anexadas, e nelas ele descreveu a leitura de Platão, Aristóteles e Spinoza, todos os quais “desenvolveram sistemas éticos abrangentes de integridade intelectual e moral sem crença em Deus”, e concluiu que “a existência de Deus não pode ser provada ou refutada, e a essência de sua natureza não pode ser determinada.” Por precaução, Seeger também usou aspas e rasuras para corrigir a declaração impressa que ele era obrigado a assinar, de modo a dizer que: “Eu sou, em razão da minha ̷ f̷o̷r̷m̷a̷ç̷ã̷o̷ ̷e̷ crença ‘religiosa’, conscientemente contra a participação na guerra sob qualquer forma.”

Quando Seeger apresentou seu formulário, no final dos anos 1950, milhares de objetores de consciência [O.C.] nos EUA haviam se recusado a lutar nas duas Guerras Mundiais. Aqueles que pertenciam a tradições religiosas pacifistas, como os Menonitas e os Quakers, foram enviados para a guerra como não-combatentes ou para trabalhar como agricultores ou bombeiros na frente doméstica através do Serviço Público Civil.

Aos poucos, o mesmo aconteceu com aqueles que poderiam provar seu próprio pacifismo independente, de base religiosa. Os que não conseguiam foram enviados para a prisão ou para campos de trabalho forçado. Mas, embora as leis de Serviço Seletivo tivessem sido revistas repetidas vezes para esclarecer os critérios de objeção de consciência, elas ainda não contavam com os jovens que, como Seeger, se recusavam a dizer que sua oposição à guerra vinha da crença em um Ser Superior.

Com o tempo, os comitês de recrutamento começaram a parecer seminários de filosofia organizados por calouros em suas tentativas de decidir quem se qualificava ou não para o status de O.C. Um socialista judeu que dirigia um negócio de gravura não podia, mas um artista pulp e ateu que apelou à ideia de humanismo secular podia; alguns membros da Ethical Culture Society qualificaram-se, mas não outros; as Testemunhas de Jeová inicialmente não passaram, segundo a hipótese de que alguém disposto a lutar contra o Diabo durante o Armagedom deveria estar disposto a lutar contra os inimigos da América durante uma guerra; um escritor que se tornou consultor financeiro que não pertencia a nenhuma igreja, mas que tinha lido “filósofos, historiadores e poetas de Platão a Shaw” recebeu o estatuto de O.C. após duas leituras contraditórias e estreitas da sua peça anti-guerra.

Diferentes comitês chegavam a conclusões muito diferentes, vários comitês de recurso mantiveram ou reverteram essas decisões sem muita coerência e, inevitavelmente, alguns desses recursos acabaram chegando aos tribunais federais. Quando o comitê local de Seeger não se convenceu com o seu argumento, ele levou-o até ao Supremo Tribunal, onde, em 1965, os juízes consideraram unanimemente que um recruta não precisava acreditar em Deus para ter uma consciência e ser capaz de ser opositor.

A vitória de Seeger ajudou a marcar um ponto de virada para uma minoria à qual se negava até mesmo o direito de testemunhar em tribunal, inclusive em sua própria defesa. Os ateus, há muito discriminados pelas autoridades civis e ridicularizados pelos seus concidadãos, de repente tornaram-se aptos para algumas das isenções e proteções que antes eram restritas aos crentes.

Mas, nas décadas desde U. S. v. Seeger, apesar de um aumento no número de pessoas que se identificam como descrentes, a melhoria de sua posição perante os tribunais e na esfera pública tem sido lenta. Os americanos, em grande maioria, ainda não querem que os ateus ensinem seus filhos ou se casem com eles. De acordo com pesquisas, os americanos preferem ter como presidente uma mulher, um gay, um mórmon ou um muçulmano a ter um ateu na Casa Branca. Alguns americanos não se opõem a tentativas de impedir que os descrentes ocupem outros cargos, mesmo quando o cargo é de notário público. Os ateus não são bem-vindos nas Lojas Maçônicas e, embora os Escoteiros da América tenham aberto a sua organização aos gays e às meninas, eles continuam a proibir qualquer participante que não jure “cumprir o meu dever para com Deus.”

Tal discriminação é tanto uma causa como um efeito da forma grosseira como analisamos a crença, que pouco mudou desde o momento em que Daniel Seeger completou o seu formulário de O.C.: marque “Sim” e seguem-se perguntas intermináveis; marque “Não” e o questionário termina. A falta de crença em Deus ainda é muitas vezes considerada como o mesmo que a ausência de quaisquer outras crenças morais significativas, o que tornou os ateus uma minoria fácil de demonizar. Isto é especialmente verdadeiro nos Estados Unidos, onde a insistência na ideia de que somos uma nação cristã vinculou o patriotismo à religiosidade, levando a paroxismos tão estranhos como o produzido pelo presidente Trump na Values Voter Summit do ano passado: “na América, não adoramos o governo — adoramos a Deus.”

Como essa frase sugere, o muro que o atual governo [de Trump] quer construir não é o muro entre a Igreja e o Estado. A manifestação mais evidente do ressurgimento desse nacionalismo cristão tem sido a animosidade em relação aos muçulmanos e aos judeus. Mas o grupo mais literalmente excluído de qualquer visão piedosa da América é, naturalmente, o dos ateus. No entanto, o preconceito nacional contra eles é muito anterior a Daniel Seeger e seu formulário. Suas raízes estão tanto na história intelectual do país como num impulso anti-intelectual persistente: a incapacidade generalizada de considerar aquilo em que os descrentes realmente acreditam.

A antipatia norte-americana pelo ateísmo é tão antiga quanto a América. Embora muitos colonos tenham vindo a este país com o objetivo de praticar livremente a sua própria fé, eles trouxeram consigo uma noção de liberdade religiosa que se estendia apenas a outras religiões — e muitas vezes apenas a outras denominações do Cristianismo. Eles herdaram de John Locke a ideia de que os ateus não podem ser bons cidadãos e não devem ser incluídos no contrato social; em A Letter Concerning Toleration, Locke havia escrito: “não devem ser tolerados aqueles que negam a existência de um Deus.”

A liberdade religiosa de verdade era rara nas colônias: os dissidentes eram multados, açoitados, presos e, às vezes, enforcados. No entanto, surpreendentemente, nenhum ateu jamais foi executado. De acordo com R. Laurence Moore e Isaac Kramnick, professores da Universidade Cornell e autores do novo livro Godless Citizens in a Godly Republic: Atheists in American Public Life [Cidadãos sem Deus em uma República Divina: os ateus na vida pública americana], isso só aconteceu porque nenhum ateu se apresentou para a execução. Os descrentes eram ou poucos e distantes entre si na América Colonial ou compreensivelmente cautelosos quanto a se darem a conhecer. Os clérigos e magistrados raramente se preocupavam em mencioná-los, nem como escárnio.

Um dos poucos que se assumiu foi Roger Williams. Depois de ser banido da colônia da Baía de Massachusetts por espalhar “opiniões diversas, novas e perigosas”, ele apresentou uma visão da separação entre Igreja e Estado tão extrema que parecia acomodar ateus. Em seu livro The Bloudy Tenent of Persecution, for Cause of Conscience, publicado em Londres em 1644, Williams escreveu que “um piloto pagão ou anticristão pode ser tão hábil, para transportar o navio até o porto desejado, como qualquer marinheiro Cristão.”

O navio ao qual ele se referia era o Estado, mas a sua tolerância nunca foi totalmente posta à prova: nenhum ateu jamais tentou ocupar um cargo em Rhode Island, a colônia que ele fundou. Mesmo assim, seu argumento foi audacioso para uma época em que a maioria das colônias havia estabelecido igrejas e arrecadava impostos eclesiásticos para sustentá-las.

Assim, foi impressionante, depois da Guerra Revolucionária, ver que os homens que se reuniram para a Convenção Constitucional proibiram os testes religiosos para titulares de cargos [públicos], no artigo VI. Não haveria nenhuma igreja do governo, nenhuma religião do Estado, e, exceto por ter sido assinado no Ano de Nosso Senhor 1787, não há nenhuma menção a Deus no texto fundador da América. A liberdade religiosa foi formalmente estabelecida na Primeira Emenda da Constituição.

“A Constituição sem Deus”, como Moore e Kramnick a chamavam em um livro anterior, foi principalmente o produto de Thomas Jefferson e James Madison, que batalharam para deixar Deus fora do documento. Mas, embora nenhum deles fosse de fé cristã, ambos eram monoteístas e, como John Locke, suas ideias sobre tolerância geralmente se estendiam apenas àqueles que acreditavam em um ente superior.

Foi outro o revolucionário que se tornou um herói para os não-religiosos. Thomas Paine, cujo Senso Comum havia vendido meio milhão de cópias no ano em que os Estados Unidos declararam sua independência, morreu como pária por causa de um panfleto posterior que escreveu sobre religião.

Atacar o Rei da Inglaterra foi muito bem, obrigado, mas quando Paine, em A Idade da Razão, voltou sua atenção para o Rei dos Reis, ele foi desprezado como um “réptil repugnante” e um “ateuzinho imundo.” Não importava que Paine, como Jefferson, se identificasse como deísta, ou que seu texto começasse com a declaração contundente: “Eu acredito em um Deus”. Suas críticas ao cristianismo eram tão escandalosas que ele passou à História como um descrente.

O rótulo de “ateu” no contexto norte-americano é sempre assim, escorregadio: jogado naqueles que o rejeitam explicitamente e evitado pelos descrentes que desejam evitar o seu estigma. Tanto os ateus como os seus críticos muitas vezes fazem uma confusão sem tamanho com relação ao termo, às vezes porque é genuinamente complicado avaliar uma crença, mas muitas vezes por outras razões.

Alguns ateus tentam reivindicar como um de seus próprios todos aqueles, vivos ou mortos, que já pensaram duas vezes sobre religião — e há um pouco desse deslize no livro de Moore e Kramnick, onde os religiosamente não afiliados (os chamados “nones”) são todos equiparados aos descrentes. Alguns crentes, entretanto, usam o ateísmo para desacreditar qualquer um com quem não concordam.

Para os ateus, pelo menos, essa elasticidade de definição proporcionou uma espécie de segurança numérica, ainda que inflada: à medida que suas fileiras cresciam, também aumentavam sua disposição de tornar públicas suas crenças controversas. No século XIX, Robert Ingersoll, “o grande agnóstico”, cobrava um dólar por cabeça aos milhares que se reuniram para ouvi-lo criticar o cristianismo; crentes e céticos tiveram discussões que duravam meses nas páginas dos jornais; e debates entre pessoas como o secularista J. Spencer Ellis e o teísta Miles Grant lotaram auditórios da mesma forma que Sam Harris vs. William Lane Craig e Bill Nye vs. Ken Ham fazem hoje.

Com os descrentes começando a se afirmar, os crentes começaram a proteger sua fé de ofensas ou questionamentos com mais agressividade. Leis de blasfêmia foram aplicadas contra aqueles que insultavam Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo ou a Bíblia.

Um ex-ministro Batista que se tornou livre-pensador, chamado Abner Kneeland, foi preso em Massachusetts por um artigo que escreveu para explicar por que ele não acreditava mais em um Deus monoteísta. Nem mesmo o proeminente pregador unitário William Ellery Channing ou o ex-pastor unitário Ralph Waldo Emerson, que saíram em defesa de Kneeland, puderam poupá-lo da prisão.

Em Nova York, um homem chamado John Ruggles foi condenado a três meses de cadeia por insultar Jesus; na Pensilvânia, outro homem, Abner Updegraph, foi multado por chamar a Bíblia de “uma mera fábula” que continha “muitas mentiras.”

Leis contra a blasfêmia, embora raramente aplicadas, ainda existem em Massachusetts, Michigan, Oklahoma, Pensilvânia, Carolina do Sul e Wyoming. Todos os Estados, exceto três, aprovaram leis sabatistas, que foram impostas a todos, incluindo observadores religiosos cujo dia sabático não cai no domingo (tais proibições permanecem nas chamadas leis azuis, que agora restringem principalmente a venda de álcool no domingo). Um comerciante judeu levou seu caso até a Suprema Corte da Pensilvânia, apenas para ser negado como exceção porque, nas palavras do Tribunal, “tudo o que atinge a raiz do Cristianismo tende manifestamente à dissolução do governo civil.”

Poucos, se é que algum, dos que foram processados por violar as leis sabatistas ou de blasfêmia identificavam-se como ateus, mas isso não impediu os seus críticos de os denunciarem como tal. Aliás, a acusação de ateísmo tornou-se um meio conveniente de desacreditar crenças não-teológicas, incluindo anarquismo, radicalismo, socialismo e feminismo.

O agnosticismo de Elizabeth Cady Stanton e o ateísmo de Ernestine Rose foram generalizados contra as primeiras sufragistas. E depois que oito anarquistas supostamente ateus foram condenados por matar onze pessoas durante o caso Haymarket de Chicago e o Presidente William McKinley foi assassinado por um anarquista que rejeitou os ensinamentos católicos, o ateísmo foi ligado, no imaginário popular, ao terrorismo doméstico. “Presumia-se que os ataques públicos à religião”, escrevem Moore e Kramnick em seu relato de como o ateísmo se tornou antiamericano, “levariam à defesa de outras ideias perigosas.”

Essa suposição tornou-se mais popular e mais potente durante a Guerra Fria. Não era a política ou a economia, segundo alguns, o que separava a América dos seus inimigos — era a religiosidade. “Da raiz do ateísmo brota a erva daninha do comunismo”, declarou o congressista católico Louis Rabaut, no plenário da Câmara dos Deputados.

Dois séculos depois de os fundadores terem escrito uma constituição sem deus, o governo federal escolheu religião: entre 1953 e 1957, uma oração matinal apareceu no calendário da Casa Branca, uma sala de oração foi inaugurada no Capitólio, “In God We Trust” foi adicionado a todas as moedas e “under God” foi inserido no Juramento de Fidelidade. Os fundadores já tinham escolhido um lema, mas E pluribus unum revelou-se muito secular para os novos tempos.

Mesmo quando os tribunais estavam anulando as leis de blasfêmia e reconhecendo os direitos dos não-teístas ao status de objetores de consciência, os legisladores de todo o país estavam tentando promover o Cristianismo de uma forma que não violasse a Cláusula de Estabelecimento [i.e., a separação entre Igreja e Estado].

Eles conseguiram, embora a um preço: os tribunais mantiveram referências a Deus em promessas, juramentos, orações e hinos, alegando que eles não eram realmente religiosos. A frase “deísmo cerimonial” foi cunhada por um reitor da Faculdade de Direito de Yale em 1962 e, nas décadas seguintes, tem sido usada por tribunal após tribunal para explicar exceções à Primeira Emenda. Como o “Deus te abençoe” que dizemos quando alguém espirra, concluíram os tribunais, os termos “sob Deus”e “em Deus confiamos” são inócuos; pertencem ao domínio do patriotismo, não da oração.

Não é de surpreender que nem os crentes nem os descrentes acreditem nisso. Cada decisão assim é uma vitória de Pirro para os devotos, para quem as invocações de Deus são sagradas; e vitória nenhuma para os ateus, para quem as invocações de Deus, quando patrocinadas pelo Estado, são tentativas óbvias de promover a religião. Os desafios legais ao Juramento de Fidelidade, em particular, persistem, porque os descrentes estão preocupados com a sua importância na vida quotidiana das crianças em idade escolar.

Processos judiciais para acabar com a recitação do juramento nas escolas públicas começaram tão logo as palavras “sob Deus” foram acrescentadas. Como o “deísmo cerimonial” há muito frustrou esses processos, os descrentes começaram recentemente a seguir uma estratégia diferente. Em vez de argumentarem que o juramento viola a cláusula de estabelecimento da Primeira Emenda, eles passaram a argumentar que viola a cláusula de proteção igualitária da 14ª. Emenda, porque constitui uma ocasião para que as crianças não-crentes sejam condenadas ao ostracismo. David Niose, diretor jurídico da American Humanist Association, é um dos muitos que sugeriram que os ateus podem até ser uma classe especial, o tipo de minoria que merece proteções específicas dos tribunais.

Mas os ateus são uma classe suspeita, ou apenas uma classe cética? Ao contrário das minorias raciais, a sua condição não é imutável. Entretanto, como muitas minorias religiosas, estão sujeitos a hostilidade e preconceito. O ateísmo, no entanto, não é uma identidade, ideologia ou conjunto de práticas unificadas, e falar disso dessa forma é tão redutivo quanto falar de “religião” e não de judaísmo, budismo ou cristianismo — ou, melhor ainda, de judaísmo reformista, budismo mahayana ou pentecostalismo. “Ateísmos” é um conceito mais preciso, como o filósofo John Gray demonstra em seu novo livro, Sete Tipos de Ateísmo. É algo que poderia ajudar os americanos a ir além de sua luta intratável sobre a existência de Deus.

Gray, que lecionou em Oxford, Harvard, Yale e na London School of Economics antes de começar a escrever em tempo integral, começa por oferecer uma definição altamente provisória e idiossincrática de “ateu”: “qualquer pessoa que não vê utilidade em uma mente divina para moldar o mundo.”

Como ele admite, isso torna a categoria tão ampla que inclui algumas das principais religiões do mundo: nem o budismo nem o taoísmo apresentam um deus criador. No entanto, essa amplitude é apropriada, porque sugere, corretamente, que não existe uma única visão de mundo ateísta. Grande parte da animosidade e opróbrio dirigidos aos descrentes na América vem da suspeita de que aqueles que não acreditam em Deus não poderiam acreditar em nenhuma outra coisa, moralmente ou não. A razão pela qual os ateus não eram autorizados a testemunhar em tribunal durante tanto tempo era a certeza de que as testemunhas que não estavam dispostas a jurar a Deus não tinham motivo para serem verdadeiras, uma vez que não temiam o julgamento divino. O conceito de Gray, embora tão abrangente, é uma correção bem-vinda para essa visão pouco generosa.

É ainda um olhar revigorante, para além dos chamados “novos ateus” que ultimamente têm dominado a conversa em torno da descrença. Gray não concorda com o que ele descreve como a “tediosa repetição de uma querela vitoriana entre ciência e religião”. Em contraste com Moore e Kramnick, que acreditam que os novos ateus como Sam Harris e Richard Dawkins geraram um “despertar ateu”, Gray os rejeita em um único capítulo.

“Os novos ateus dirigiram sua campanha contra um segmento restrito da religião, sem entender nem mesmo essa pequena parte”, escreve ele. Segundo Gray, eles ignoram o politeísmo e o animismo quase inteiramente, enquanto insistem em ler versos de Gênesis ou linhas do Credo Niceno como se fossem teorias científicas primitivas. Nem todos os monoteístas são literalistas e, para muitos de nós, tanto agora como ao longo da história, o Jardim do Éden não é uma hipótese errônea sobre a evolução, mas uma rica história simbólica sobre o bem e o mal.

A maior crítica de Gray é que os novos ateus não oferecem uma visão moral mais coerente do que a que querem substituir. A estratégia que defendem, a ética científica, já foi experimentada antes, com uma notável falta de sucesso. Auguste Comte e seus colegas positivistas do século XIX imaginaram um Grande Pontífice da Humanidade que presidiria ao lado de sacerdotes-cientistas; infelizmente, os cientistas da época praticavam a frenologia. Mais tarde, os humanistas e monistas evolucionistas substituíram a ordem de Deus por antropologias “científicas”, depois construíram hierarquias raciais e colocaram no topo os europeus brancos.

Hoje, a versão em voga da ciência como religião é o transumanismo, que afirma que a tecnologia irá superar as limitações humanas tanto físicas como mentais, seja através da bioengenharia ou da inteligência artificial ou de ciborgues que poderão transportar por aí o conteúdo dos nossos cérebros. Gray não é otimista sobre tais desenvolvimentos, caso ocorram. Porque já temos um modelo do caos que ocorre quando alguns mortais recebem poderes divinos: “quem quiser um vislumbre de como pode ser um futuro pós-humano deveria ler Homero.”

No geral, Gray é um cara tipo copo-meio-vazio, e o que os outros consideram novo ou promissor, ele muitas vezes vê como algo derivativo ou simplesmente burro. Ele argumenta, por exemplo, que o humanismo secular é realmente um monoteísmo disfarçado, com a humanidade no lugar de Deus e onde a salvação pode ser alcançada através de nossos próprios esforços e não através da intervenção divina.

Ao contrário do linguista — e neo-ateu — Steven Pinker, Gray considera a ideia de que o mundo está melhorando como evidentemente tola. “O aumento cumulativo do conhecimento em ciência não tem paralelo na ética ou na política”, ressalta. As religiões continuam a prosperar, assim como as guerras entre elas, e os regimes seculares causaram tanto estragos (se não mais) sob os auspícios do jacobinismo, do bolchevismo, do nazismo e do maoísmo.

Gray tem especial interesse por aqueles ateus que, além de não terem fé no divino, não têm fé na humanidade. Dada a sua própria inclinação intelectual, suspeita-se que ele se delicie igualmente com o seu pessimismo e a sua impopularidade. Estes não são misoteístas — aqueles que odeiam a Deus, como o Marquês de Sade, muitos novos ateus e o crítico literário William Empson, cujos “sete tipos de ambiguidade” Gray cita como influência.

São pensadores como George Santayana, um materialista profundo que zombava do progresso humano até ao ponto da indiferença para com o sofrimento humano, mas amava tanto as tradições católicas que escolheu viver o fim dos seus dias sob os cuidados das freiras. Da mesma forma, o romancista Joseph Conrad não tinha fé em Deus e perdeu a fé no progresso depois de testemunhar a colonização do Congo, mas escreveu lindamente sobre aqueles que enfrentaram seu destino de frente para o vazio: marinheiros sobrevivendo à indiferença do mar.

Tais homens — e quase todos os ateus do livro de Gray são homens — não reconheceriam o ateísmo esperançoso que está na moda hoje. Gray abre espaço para Ayn Rand, que rouba brevemente o show, enquanto seus seguidores levantam seus porta-cigarros em conjunto com os dela, se casam com companheiros escolhidos pelo “coletivo” e sapateiam em seus casamentos porque Rand considerou essa a única forma verdadeiramente racional de dança.

Gray está igualmente interessado e especialmente atraído por aqueles que praticam o que ele chama de “o ateísmo do silêncio.” Esses ateus, como aqueles que rejeitam a noção de progresso humano, muitas vezes não atraem muitos seguidores. Em vez de procurar substitutos para Deus, eles tentam concordar com algo que transcende a compreensão humana. Gray admira o ateísmo místico de Arthur Schopenhauer, que não acreditava em Deus e também não acreditava muito na realidade. Ele também inclui nesta categoria pensadores claramente devotos, como Spinoza, que rejeitou um Deus Criador, mas viu Deus como uma substância eterna em toda a criação; e o filósofo russo Lev Shestov, que escreveu que a razão precisaria ser superada para conhecermos Deus, e que a revelação “leva-nos para além dos limites de toda a compreensão humana e das possibilidades que a compreensão admite.”

Esse tipo de teologia apofática [i.e., por negação enfática] tem muito em comum com o misticismo sem deus, argumenta Gray, porque dizer que Deus não existe não é tão diferente de dizer que não podemos compreender a existência de Deus. Em ambos os casos, o mundo material pode ser caracterizado por uma compreensão limitada e uma reverência ilimitada. Essa é a caridade tão raramente estendida aos ateus na América: a noção de que eles também podem ficar impressionados e se debatendo para dar sentido ao humano e ao cósmico. Para Gray, “um mundo sem Deus é tão misterioso quanto um mundo repleto de divindade, e a diferença entre os dois pode ser menor do que você pensa”.

As cosmologias, em outras palavras, podem gerar estranhas amizades, e parte do que Gray faz de melhor em Sete tipos de ateísmo não é apenas fazer distinções entre ateus, mas fazer conexões entre descrentes e crentes. Os cristãos ignorantes de sua própria história, por exemplo, ficarão surpresos ao saber que seus primeiros ancestrais na fé foram ridicularizados como “ateus” porque se recusaram a participar do culto politeísta: em grego, ateus significa “sem deuses”, não anti-deus. Enquanto isso, aqueles que chegaram ao ateísmo através dos novos ateus podem se surpreender ao descobrir que muitos de seus antepassados intelectuais não travaram guerra contra a religião, ou mesmo sentiram qualquer aversão por ela.

Para ser justo, os ateus americanos contemporâneos podem estar inclinados a travar uma guerra contra a religião porque a religião tem estado em guerra contra eles há muito tempo. Uma breve trégua foi alcançada no final do governo Obama, quando o Congresso aprovou, e o Presidente assinou, uma nova versão da Lei Internacional de Liberdade Religiosa que incluía oficialmente os não-crentes. Segundo a revisão da lei, “a liberdade de pensamento, consciência e religião é entendida para proteger as crenças teístas e não-teístas e o direito de não professar ou praticar qualquer religião”.

Essa lei estendeu novas proteções importantes aos ateus. Ainda assim, como Gray poderia ter previsto, é difícil, neste momento político em particular, acreditar que o círculo de direitos está se expandindo para os ateus ou para qualquer outra pessoa. Moore e Kramnick, que escreveram uma história abrangente e útil do estatuto jurídico e político dos ateus na América, acreditam, sem surpresa, que tal trabalho é redentor — pois compreender o preconceito contra os ateus no passado pode ajudar a acabar com isso no futuro. Gray não tem essa esperança e, no entanto, o seu livro oferece um caminho a seguir.

Em sua obra, ele nos ajuda a entender como aqueles que não acreditam em Deus, ou, aliás, aqueles que acreditam, se orientaram no universo. Afinal, foi a fé que levou os puritanos a Plymouth Rock, mas depois levou-os a executar três dos seus vizinhos quacres; ela inspirou os traficantes de escravos americanos, mas também os abolicionistas; e, seja o que for que o ateísmo seja acusado de fazer neste país, sustentou a curiosidade científica e o profundo pacifismo de Linus Pauling, duas vezes vencedor do Prémio Nobel, a filantropia de Andrew Carnegie e a arte e ativismo de Lorraine Hansberry. Todos nós, até os niilistas, acreditamos em algo — muitas coisas, de fato, sobre nós mesmos, o cosmos e uns aos outros. No final, a coisa mais interessante de uma consciência é como ela reage, não a quem ela reage.

Formada em Harvard e Oxford, Casey Cep é redatora da “The New Yorker”, onde geralmente cobre tópicos como livros, cultura e religião. Como escritora, publicou ‘Furious Hours: Murder, Fraud and the Last Trial of Harper Lee’, obra que conta uma história de true crime e como a autora de ‘O Sol é para Todos’ tentou escrevê-la. Esta grande reportagem sobre a relação entre os americanos e o ateísmo foi publicada originalmente na “New Yorker” em 22/10/2018.

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Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.