Por que você deveria ler este artigo bem devagar

Diante dos temores da atenção cada vez mais reduzida, seria bom parar de rolar nossas telas e começar a ler sem pressa.

Renato Pincelli
6 min readAug 25, 2022
Vá devagar… [imagem: Alamy/Stock]

Por Joe Moran, no Guardian (Setembro de 2018). Tradução de Renato Pincelli.

ESTAMOS FADADOS A LER distraídos na era digital? A tecnologia parece dificultar a leitura lenta e imersiva. Rolar uma página da web com o polegar parece naturalmente menos atento do que virar as páginas de um livro. Ler em uma tela, especialmente numa tela de telefone, cansa seus olhos e dificulta lembrar onde você parou sua leitura. Assim, os textos online tendem a ser mais rasos e em forma de listas do que os impressos. No topo de um artigo da web, agora somos frequentemente informados sobre quanto tempo ele nos deterá, alertando-nos de que as palavras seguintes serão uma “leitura de 15 minutos”. A rejeição do leitor online se resume em TL;DR — Too long; didn’t read [ou seja, Longo Demais, Nem Li].

A neurocientista cognitiva Maryanne Wolf argumentou recentemente que essa “nova norma” de leitura desnutrida está produzindo “uma transformação invisível e revolucionária” na forma como os leitores processam as palavras. O circuito neuronal que sustenta a capacidade do cérebro de ler favorece, agora, a rápida ingestão de informações, em vez das habilidades promovidas por uma leitura mais profunda, como análise crítica e empatia.

Não devemos nos assustar com esses riscos. Todos os leitores dão seus pulos [skim]. Dar um pulo [skimming, no jargão inglês] é a habilidade que adquirimos quando crianças, à medida que aprendemos a ler de forma mais sofisticada. Por volta dos nove anos de idade, nossos olhos começam a pular pela página, lendo apenas cerca de um quarto das palavras corretamente e preenchendo as lacunas por inferência. Um dos pequenos milagres da leitura silenciosa é que podemos fazê-lo tão rapidamente e, no entanto, também sussurrar, semi-ouvindo as palavras em nossas cabeças. A leitura saltada é parte integral desse virtuoso ato humano.

Não há de novo nesses temores sobre o declínio da atenção. Até agora, as preocupações provaram ser falsos alarmes. “Muitos críticos têm se preocupado com a atenção ultimamente e veem histórias muito curtas como sinais de decadência cultural — bombons para leitores preguiçosos”, escreveu o autor americano Charles Baxter em 1989, em uma introdução a uma antologia de ficção flash. “Mas ninguém nunca disse que sonetos ou haikais eram evidências de intervalos de atenção curtos.”

E, no entanto, a internet certamente mudou a maneira como lemos. Para começar, ela significa que há mais coisas para ler, porque mais pessoas do que nunca estão escrevendo. Se você viajasse no tempo apenas algumas décadas no passado, se perguntaria quão pouca escrita estava acontecendo fora de uma sala de aula. Não haveria pessoas sentadas em cafeterias martelando urgentemente seus laptops com dois dedos ou atualizando uma rede social com as manchetes de suas vidas. Você poderia ver um ou outro indivíduo assinando um cheque ou preenchendo um formulário a lápis. Mas a escrita era cultivada principalmente por profissionais e apareceria apenas na forma impressa.

Na era analógica, um texto só era lido muito depois de ter sido escrito. A escrita digital permite a publicação e a resposta imediatas. Uma mensagem ou tuíte é uma maneira virtual e ligeiramente cortada de ter uma conversa. Um artigo on-line começa a formar uma sequência de comentários assim que é publicado. Essa maneira de escrever e ler pode ser democrática, interativa e divertida. Mas muitas vezes trata as palavras de outras pessoas como algo a ser rapidamente usado como matéria-prima para dizer outra coisa. Todo mundo fala por cima dos outros, esforçando-se para ser ouvido.

“Um poema é uma interrupção do silêncio, enquanto a prosa é uma continuação do ruído”, disse o poeta Billy Collins. Poetas e escritores de prosa com mentalidade lírica veem a palavra escrita da mesma forma que a fé quacre vê a palavra falada: eles a acham mais poderosa quando é partida e repartida pelo silêncio. Ao escrever e ler on-line, lutamos para encontrar esse silêncio no qual as palavras podem se materializar e ser contempladas. Há muito falação e reação, mas faltam a audição e a reflexão.

Talvez devêssemos pisar no freio. Ouvimos muito hoje sobre recuperar as virtudes perdidas da lentidão — por exemplo, gastando tempo ao comprar os ingredientes locais para preparar uma refeição, ou ao deixar as crianças explorarem o mundo sem supervisão e em seu próprio ritmo. Mas o movimento de leitura lenta ainda não decolou da mesma forma. A leitura é constantemente promovida como um bem social e fonte de realização pessoal. Mas essa promoção muitas vezes enfatiza a leitura “ávida”, “apaixonada” ou “voraz” — nenhum desses adjetivos inspira a absorção lenta e silenciosa.

O Kindle não matou o livro impresso, da mesma forma que o carro não matou a bicicleta.

Ultimamente tenho tentado — com dificuldade, porque sou por natureza um leitor que pula e salta — ler mais devagar. Eu acompanho a margem com o dedo enquanto leio, como um leitor-aprendiz, para que eu possa pausar e pensar sobre o que acabei de ler, para não me perder. E muitas vezes leio em voz alta, ou pelo menos mexo meus lábios, mesmo que isso signifique ganhar alguns olhares estranhos em lugares públicos.

Ler em voz alta te desacelera e te obriga a perceber as palavras, levando-o a dar o tipo de atenção que o escritor lhes deu. É assim que Shakespeare deve ter sido ensinado a ler e escrever na escola primária — o velho aprendizado da arte da verbalização, conhecendo como as próprias palavras soavam na boca antes de se fixarem em sentido e lógica abstratos.

A redação on-line geralmente é projetada para ser experimentada como um artigo que se “leva para casa” ou “para viagem”, ou talvez se usa para “derrubar” outra peça. A maioria dos comentários pós-texto se concentra em mostrar se o comentarista concorda ou discorda com o escritor. Raramente se menciona que um trecho foi realmente gostoso de ler.

Para um leitor lento, o meio não pode ser separado de sua mensagem dessa maneira. Um artigo de escrita não é simplesmente uma tomada sobre algo, mas um exercício retórico, com ritmo, tom, textura e voz. Em última análise, é irredutível a uma imitação ou paráfrase. É algo que só pode ser totalmente compreendido mergulhando nas palavras e sentindo o lento desenrolar de uma linha de pensamento. O leitor lento é como um nadador que para de contar o número de voltas que deu na piscina e apenas gosta de perceber como seu corpo se sente ao se mover na água.

A leitura lenta me parece uma forma de leitura mais generosa e comunitária de ler — ouvir, afinal, é um ato mais generoso do que falar, e mais difícil. A leitura lenta dá à outra pessoa (o escritor) o presente do seu tempo, sem qualquer retorno garantido, mesmo com o risco de você ficar entediado ou incomodado com a estranheza ou dificuldade da obra. A leitura lenta é um encontro gradual com a alteridade integral da mente de outra pessoa. Como qualquer encontro desse tipo, é um fim em si mesmo e deve-se demorar o tempo que for necessário.

A necessidade humana para este tipo de leitura profunda é arraigada demais para ser destruída por qualquer nova tecnologia. Muitas vezes supomos que a mudança tecnológica acontece implacavelmente e em apenas uma direção, de modo que as mídias mais antigas, como os livros de “árvores mortas”, são substituídos por formatos mais novos e virtuais. Na prática, as tecnologias mais antigas são bastante resistentes e podem coexistir com as novas. O Kindle não matou o livro impresso, da mesma forma que o carro não matou a bicicleta.

Quando a TV digital chegou, há 20 anos, a maioria das pessoas pensava que os espectadores passariam rapidamente pelas centenas de canais e a televisão teria que ser rápida e barulhenta para chamar sua atenção. Na verdade, o grande sucesso da era digital tem sido dramas longos e multi-seriados, que exigem um enorme compromisso intelectual e emocional dos espectadores.

Tal como acontece com a TV profunda, a fome de leitura profunda continua a existir. Ainda lemos romances intrincados, com tramas envolventes. Ainda procuramos um textos on-line com fundo contemplativo e várias camadas, resistindo ao impulso de se reduzir a uma opinião articulada em forma de tópicos. Ainda queremos saborear as ideias gestadas com vagar, as palavras cuidadosamente escolhidas. Mesmo em uma era de movimento acelerado, há tempo para uma leitura lenta.

‎Joe Moran é professor de Inglês e História Cultural na Universidade John Moores, em Liverpool. Colunista de livros e literatura no “Guardian”, ele é o autor de “Armchair Nation: An Intimate History of Britain in Front of the Television ‎[País da Poltrona: uma história íntima da Grã-Bretanha na frente da TV]”. O presente artigo foi publicado originalmente no Guardian em 12/09/2018.

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Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.