Rússia vs. Ucrânia: Guerra das Culturas

Como a Rússia está tentando destruir a cultura e a liberdade ucranianas nos últimos séculos.

Renato Pincelli
9 min readOct 10, 2022
No século XIX, os russos decretaram que “a língua ucraniana não existia, não existe e não pode existir, e aqueles que não entendem isso são inimigos da Rússia.” Ilustração da artista ucraniana Viktoria Martyniuk.

Por Alice Korzh, no The Ucranian View (Abril de 2022).
Tradução de Renato Pincelli.

SOU UMA UCRANIANA de língua russa nascida em 1990, no final de uma era. Foi o colapso do regime soviético e o fracasso das bases ideológicas sobre as quais a União Soviética foi construída.

É muito difícil explicar, para aqueles que não viviam naquela época e naquela realidade, o que foi a União Soviética e como ela está profundamente enraizada nas mentes das pessoas da região. Mesmo as mentes de muitos ucranianos ainda não estão completamente limpas dos restos pegajosos da propaganda soviética. Muitas pessoas, depois de perder os ideais e a orientação soviéticos durante a década de 1990, não conseguiram encontrar novos rumos. Isso é especialmente verdadeiro para a geração mais velha, aqueles que cresceram sob a bandeira vermelha do comunismo. Eu, porém, tenho a mesma idade que a Ucrânia independente e sinto que sou, em certa medida, um espelho de todas as transformações que aconteceram ao nosso país durante este período.

Nasci na Crimeia, onde pouca coisa mudou depois do colapso da União Soviética. A máquina de propaganda da Rússia neoimperial nunca parou de funcionar. Ela foi especialmente eficaz para aqueles que ainda ansiavam pela era anterior. Com o tempo, minha mãe e eu nos mudamos para Kiev, deixando minha avó na Crimeia. Minha mãe — uma mãe solteira de vinte anos com um diploma inútil de pedagogia musical — teve que aceitar qualquer emprego e alugar quartos e camas. Mais tarde, ela me contou que naquela época era constantemente atormentada pelo mesmo pesadelo — que não tínhamos onde passar a noite e dormíamos em uma caixa de papelão num beco. Naquele tempo, era difícil para todo mundo.

Os anos 1990 estão estampados na minha cara. Sinceramente, nem sempre tive essa expressão. Estava com otite na época em que a foto foi tirada, mas essa é a única que tenho digitalizada. Todas as minhas demais fotos da infância ficaram em casa, em Irpin, perto de Kiev. Hoje Irpin é reconhecida pelo massacre que aconteceu lá. [A. Korhz/arquivo pessoal]

Entrei em contato com a língua ucraniana pela primeira vez na primeira série. Minha Ucranização foi tão não-violenta que, nas primeiras sete séries de nossa escola, a língua e a literatura russas eram uma disciplina distinta. Devo enfatizar que, durante a minha infância, era difícil encontrar deliberadamente a língua ucraniana, uma vez que não havia livros, nem música, nem filmes em ucraniano. Fomos absorvidos pelo que restava da cultura da União Soviética — que tinha deixado seu impacto na russificação dos seus territórios constituintes (isto é, capturados).

No entanto, desde a primeira série, sou fluente em ambas as línguas. Raramente percebo a diferença e mudo com facilidade de uma para a outra. Tenho muitos amigos de língua ucraniana, de todo o país, e sempre considerei que ser fluente em várias línguas seria uma vantagem excepcional. Na época, não compreendia como é que a questão linguística se poderia tornar tão importante, tão significativa. Mas agora eu entendo isso, bem como o significado da língua, cultura e identidade.

Eu e minha primeira “vyshyvanka” — a roupa típica da Ucrânia. [A.K./arquivo pessoal]

Durante os anos de independência, a Ucrânia e os ucranianos mudaram muito. Saímos gradualmente da sombra tóxica do nosso vizinho autoritário, recuperamos a nossa voz, a nossa cultura e superamos um complexo de baixa autoestima. Mudanças reais ocorreram nas mentes dos ucranianos. O amor pela sua cultura, rica e bela, e um renovado interesse pela História, finalmente lavaram os entulhos da propaganda soviética. Os ucranianos orgulharam-se daquilo que, como se viu, nós somos e sempre fomos.

Durante a Revolução de 2004, quando o povo ucraniano declarou em voz alta que já não tolerava suportar a opressão russa, surgiram pela primeira vez alguns neonazistas fanáticos. A mídia russa passou a chamar de nazista qualquer um que quisesse se identificar como ucraniano. Mais tarde, enquanto eu estudava ciência política, percebi por que isso era necessário. A propaganda russa precisa de um inimigo, e quanto mais terrível, abstrato e irrealista for o inimigo, mais fácil será intimidar o seu povo e mais voluntariamente ele vai acreditar nisso. Muita coisa aconteceu desde 2004, mas a narrativa russa de propaganda anti-ucraniana permaneceu a mesma: para amar a Ucrânia, para respeitar a sua cultura e história, você só pode ser um neonazista, um nacionalista, um inimigo da Rússia.

Foi a língua e o legado da russificação forçada que permitiu à Rússia de Putin fazer o que fez — iniciar uma guerra de conquista em 2014, que está agora no auge, e chamá-la de luta contra o neonazismo, de salvação dos falantes de russo. Mas não somos neonazistas e as pessoas de língua russa na Ucrânia não precisam de ser salvas. O fato é que a cultura ucraniana, e a própria ideia da Ucrânia como país livre, enfurece terrivelmente o imperialismo russo — incitando a sua fúria como uma bandeira vermelha para um touro.

Genocídio da cultura ucraniana e métodos de terror

Tuíte de Linas Linkevicius, ex-ministro da Defesa e ex-ministro das Relações Exteriores: “O verdadeiro conteúdo da ‘denazificação’ russa é limpeza étnica. Se intensifica a deportação forçada de cidadãos dos territórios ocupados da Ucrânia para os chamados “campos de filtragem” e para mais além, para as regiões subdesenvolvidas da Rússia. Putin ressuscita os gulags.”

O que está a acontecer hoje nos territórios da Ucrânia ocupados pela Rússia pode facilmente ser chamado de genocídio da cultura ucraniana e limpeza étnica. Julgue por si mesmo.

  • Imediatamente após a ocupação, cai o serviço de telefonia celular. Você não pode entrar em contato com seus parentes, nem pode falar sobre o que está acontecendo. É o que acontece agora em Kherson, Mariupol, Melitopol.
  • A transmissão de canais nacionais está bloqueada, eles são substituídos por emissoras que transmitem propaganda russa. O mesmo acontece com o rádio. O rádio muitas vezes começa a transmitir mentiras de que a Ucrânia se rendeu e o “mundo russo” chegou.
  • A imprensa livre e a liberdade de expressão são suprimidas. Os jornalistas são mortos, ameaçados, raptados, e os familiares dos jornalistas são frequentemente sequestrados para fins de intimidação.
  • Prefeitos que não concordam com a política dos “libertadores” também são sequestrados. Muitas vezes são torturados ou simplesmente mortos. Um novo governo pró-Rússia é montado, sem eleições ou outros processos democráticos.
  • Manifestações pacíficas de moradores contra esse novo governo são dispersas à força e ativistas são sequestrados, torturados ou mortos.
  • Começa uma intimidação maciça da população e está sendo formado um sistema de denúncias. São frequentes os casos de violação de mulheres, adolescentes e até de crianças pelos invasores.
  • Parte da população é submetida à deportação forçada para regiões remotas da Rússia, após serem enviados a “campos de filtragem”.
  • Rublos estão sendo introduzidos e Hryvnias estão sendo removidos (de acordo com testemunhas oculares em Kherson).
  • Livros em ucraniano são retirados de bibliotecas e escolas — e destruídos.
  • Monumentos a figuras culturais — artistas, poetas, escritores — estão sendo demolidos.
  • Os livros didáticos sobre a História da Ucrânia e a Língua Ucraniana são banidos, removidos e destruídos.
  • A língua russa é imediatamente imposta nas escolas (de acordo com o diretor de uma escola em Melitopol).
  • A língua ucraniana, como todos os símbolos ucranianos, é proibida. Tente andar no centro de Donetsk com roupas ou ornamentos ucranianos tradicionais — e você será imediatamente preso por “nazismo”.

Demasiado orwelliano, mas é isso que acontece neste momento no coração da Europa. Você ainda acha que é sobre a OTAN ou neonazistas imaginários?

Vamos olhar para a história e ver que a Rússia já fez tudo isso com os ucranianos repetidas vezes. Além disso, fazem isso desde o século XVII.

Russificação Forçada

Toda a história das relações ucraniano-russas desde o século XVII é a história da opressão da Rússia e da luta Ucraniana pelo seu direito de existir. Não vou entrar em detalhes, tudo isso está nos livros de História e na Wikipedia (menos em russo, claro). Vou apenas dar uma breve cronologia dos acontecimentos.

1720: Pedro I proíbe a impressão de livros em ucraniano. 44 anos depois, Catarina II emite ordens pormenorizadas para a russificação da Ucrânia, da região de Smolensk, dos Países Bálticos e da Finlândia. Além disso, de acordo com um plano bem conhecido por eles — o confisco de livros didáticos e livros religiosos em ucraniano, a proibição de ensinar em ucraniano e o uso da língua nacional nos tribunais, o fechamento de escolas ucranianas e a perseguição de figuras culturais.

Em 1863, foi emitida a circular Valuev, afirmando que “a língua ucraniana não existia, não existe e não pode existir, e aqueles que não entendem isso são inimigos da Rússia.”

A elite cultural ucraniana não desistiu, imprimindo livros em língua ucraniana fora do território do Império Russo. Mas o Ems Ukaz de 1876 proíbe a importação de livros ucranianos vindos do exterior. Tudo é proibido, até mesmo apresentações teatrais em ucraniano. Posso dar um exemplo do absurdo: no Congresso Arqueológico de Kiev, foi permitido ler resumos em qualquer língua, com exceção do ucraniano. Aqueles que tentaram preservar a cultura ucraniana e sua língua literária foram submetidos ao exílio, deportação e execuções.

Em 1908, o Senado emitiu um decreto afirmando que o trabalho educacional na Ucrânia era perigoso para a Rússia. Não era necessário ter um povo ucraniano instruído. O Império precisa de lacaios quebrados e medrosos. No entanto, os ucranianos também não desistiram nesta altura. Em seguida, Stolypin emitiu um decreto classificando os ucranianos como estrangeiros e proibindo quaisquer organizações ucranianas. Alguns anos depois Nicolau I proibiu a imprensa Ucraniana. A pressão teria continuado, mas o Império sofreu uma revolução que deu à elite cultural da Ucrânia uma lufada de ar fresco. Duas décadas de independência tão esperada e ilusória permitem que os brotos da cultura ucraniana cresçam em solo fértil, esmagado pelo Império Russo durante muitos séculos. Mas isso não durou muito: veio a União Soviética.

Em 1933, Stalin escreveu um telegrama em que pede o fim da Ucranização (ou seja, o início do renascimento da cultura ucraniana) e ordena represálias físicas contra figuras culturais e literárias. Este período de repressões estalinistas na história da cultura ucraniana foi chamado de “renascimento liquidado” ou “renascimento vermelho”. O estudo obrigatório da língua russa nas escolas passa a ser introduzido e, após a “libertação” da Ucrânia ocidental pela União Soviética, as escolas Ucranianas tiveram que mudar completamente para o russo. Em 1961, foi publicado o programa do partido [comunista da URSS] sobre a “fusão de nações” em um único povo soviético, o que significava o apagamento da autoidentificação, da cultura e da história da Ucrânia e de muitos outros países da URSS. Moscou dita que língua falar, o que escrever, o que ouvir e o que pensar.

Ainda hoje os fantasmas de “povos fraternos”, de “um povo só” e outras narrativas impostas pela União Soviética pairam na mente da juventude russa, inclusive a progressista. A ideia de que o Ocidente nos dividiu fazendo a Ucrânia olhar para o outro lado ainda é um tema onipresente na propaganda russa. Como se a Ucrânia fosse uma mocinha que foi levada por um bicho-papão. Mas a verdade é que, se existiram relações entre os nossos países, elas foram extremamente abusivas e claramente unilaterais.

Ó lindas donzelas, se apaixonem,
Mas não pelos moscovitas,
Pois os moscovitas são estrangeiros,
Eles não te tratam bem.
Trecho do poema Katerina (1839) de Taras Shevchenko. Tradução de John Weir

Monumento a Taras Shevchenko, em Borodyanka, Região de Kiev, 4 de Abril de 2022. Os ocupantes russos abandonaram a cidade e, em meio a corpos mutilados, cadáveres, crianças estupradas e casas saqueadas, deixaram isto. Taras Shevchenko — poeta, escultor e pintor — é um símbolo da cultura ucraniana. Nascido sob a escravidão no Império Russo, ele tornou-se um homem livre. Para mim, esta foto revela o verdadeiro sentido desta guerra. [Foto de Sergei Supinsky]

Um olhar sobre a guerra russo-ucraniana através do prisma das relações seculares entre os nossos países deixa claro que não se trata da OTAN. Não se trata de “salvar os falantes de russo” (agora entendemos como essas mesmas pessoas de língua russa, como eu, apareceram nessas terras). Tampouco se trata de lutar contra neonazistas fictícios. A Rússia e o seu espírito imperial estão enojados com a própria ideia da existência de uma Ucrânia livre, em desenvolvimento, independente e com sua própria cultura. Sempre foi assim — a Rússia sempre tentou nos quebrar, nos destruir.

Faz um mês e meio [mais de seis meses, no momento destra tradução] que a Ucrânia está nas capas de revistas e jornais de todo o mundo. De repente, entramos no foco das lentes e nos lábios de todos. O interesse pela guerra da Rússia contra a Ucrânia está agora a receber uma atenção colossal. Mas, ao mesmo tempo, todos esquecem que esta guerra se arrasta desde 2014. As tentativas da Rússia (em qualquer uma das suas formas — imperiais, soviéticas ou neoimperiais modernas) de destruir a cultura e a língua ucranianas se desenvolvem há séculos. Durante séculos, a Rússia tem tentado, nas palavras de Putin, “resolver a questão ucraniana de uma vez por todas”. Agora, nosso vizinho imperial decidiu acabar conosco com milhares de bombas de fósforo e de fragmentação e mísseis de cruzeiro enviados para arrasar cidades pacíficas.

O que está a acontecer agora nos territórios ocupados pela Rússia é o genocídio da cultura e do povo ucranianos, em mais uma tentativa de apagar e esmagar a cultura e a história seculares de uma nação inteira. Bela e corajosa nação, que deseja apenas uma coisa — existir. Quem diz isto sou eu, uma ucraniana de língua russa. Perdi muito, menos o desejo de regressar à minha terra natal, lamentar os mortos e começar a reconstruir. Reconstruir uma Ucrânia Ucraniana — grande, livre, invencível.

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Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.