Tradução: parte de nossa humanidade em comum

Renato Pincelli
5 min readMar 22, 2023

É um mundo pouco conhecido, mas dificilmente limitado à sua dimensão literária: a tradução é um instrumento de promoção das línguas, uma parte (discreta) da economia e um veículo de ideias. Mas é também um domínio em transformação, abalado pelos avanços da inteligência artificial. Acima de tudo, deve ser o meio de uma civilização entrar em contato com outra.

Por Nicolas Froeliger no Correio da UNESCO [Abril-Junho de 2022]
Tradução de Renato Pincelli

ELA É ONIPRESENTE e discreta. Todos nós temos uma ideia do que se trata, mas nunca é a mesma. Ela representa uma faculdade humana universal (“compreender é traduzir”, nas palavras de George Steiner, linguista e crítico franco-americano) e exige competências muito específicas — a tradução parece não passar de um monte de paradoxos. Não surpreende que, ao longo dos séculos, as pessoas tenham preferido usar metáforas, muitas vezes depreciativas, para tentar defini-la: a tradução como “uma bela infiel”, “um servo”, “o reverso do bordado”, etc. Tradutores passam como “intermediários”, “artesãos”, “copistas” e, às vezes, como “traidores” ou “investigadores”, e assim por diante.

Este ramo também é um prato cheio para ideias preconcebidas: “a tradução é impossível”; “com um dicionário, qualquer um pode traduzir”; “a tradução é uma questão de linguagem”; “é impossível ganhar a vida com ela”; “um texto traduzido é necessariamente inferior ao original”; “a tradução automática substituirá em breve os profissionais”, etc. Tudo isto é falso — ou pelo menos duvidoso — mas revelador.

Por conseguinte, a tradução merece alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, é bom lembrar que a tradução é simultaneamente uma operação e o resultado desta operação, sem que estes dois aspectos se sobreponham perfeitamente. Muitas traduções não são feitas por tradutores, e os tradutores profissionais muitas vezes fazem muito mais do que simplesmente traduzir. Além disso, os tradutores são, na maioria das vezes, as tradutoras — na verdade, três quartos dos profissionais são mulheres.

“Dizer quase a mesma coisa”

A tradução também exige múltiplas definições. De Dire Quasi la Stessa Cosa, dizer quase a mesma coisa (o título do livro sobre tradução do semiótico e romancista italiano Umberto Eco) a “dizer outra coisa de outra forma” (como expresso pelo linguista e antropólogo francês Jean Gagnepain). De uma atividade que pressupõe o conhecimento de línguas a um instrumento de ensino dessas mesmas línguas. Traduzimos uma emoção estética, uma mensagem, um significado, uma intenção…

O mundo da pesquisa não fica de fora. Alguns tomam a tradução como um objeto de estudo — eles são chamados de “translatologists [tradutólogos]”. Outros a utilizam como ferramenta a serviço da literatura — comparativa ou não — das Ciências da Linguagem, da Filosofia, da Psicanálise, dos Estudos Feministas ou Pós-coloniais, por exemplo. Seja como for, a palavra-chave é “interdisciplinaridade”.

Seria fácil se perder nas infinitas particularidades deste vasto universo. Portanto, é melhor delinear algumas das questões em jogo, numa altura em que esta atividade, esta prática, esta profissão está, como muitas outras, sendo abalada pelos avanços da inteligência artificial.

Antes de mais nada, a tradução é uma necessidade para a cultura. É através da tradução que cada civilização toma consciência de si mesma e obtém acesso ao “outro”. Este é o ramo mais antigo da tradução e ainda é o mais famoso. Com um arco histórico que parte da primeira tradução jurídica conhecida (um tratado de paz entre os Hititas e os Egípcios, em 1271 AEC); passa pelas sucessivas traduções da Bíblia e de outros grandes textos religiosos (desde a Septuaginta — a primeira tradução da Bíblia hebraica para o grego, em Alexandria, no século III AEC — até aos dias de hoje), antes de ser passada para o domínio literário.

A tradução permite que todos possam ter acesso a obras-primas, bem como a outras produções escritas (e agora audiovisuais) da humanidade, na sua própria língua, superando as diferenças que fazem suspeitar da existência de textos ou conceitos intraduzíveis. Com efeito, estas obras devem ser eternamente retraduzidas, como observou a filósofa e tradutóloga francesa Barbara Cassin.

Passagem para a viagem de ideias

Em termos de cidadania e de políticas públicas, a tradução é um instrumento indispensável para a mediação e para a promoção de línguas, nacionais ou não. Ela proporciona um contrapeso bem-vindo à ignorância, ao ódio e à violência, mesmo quando é colocada a serviço das Forças Armadas. É por meio da tradução que as ideias viajam. Com o desenvolvimento da migração, cada vez mais países consideram que é um direito fundamental do indivíduo ter acesso aos serviços públicos (saúde, justiça, legislação, etc.) numa língua compreensível.

A tradução é também uma parte essencial, ainda que discreta, da economia. Trata-se de uma profissão em plena transformação, unificando cada vez mais profissões que antes eram especializadas: a Tradução e a Interpretação no sentido tradicional do termo, é claro; mas também Localização, Terminologia, Revisão, Pós-Edição, Gestão de Projetos, Redação Técnica e Engenharia Linguística, por exemplo. Todas essas categorias estão reunidas sob o termo geral “Tradução Pragmática”, no sentido de ter, acima de tudo, um objetivo de comunicação (textos técnicos, científicos, jurídicos, de imprensa, econômicos, financeiros). Em escala global, é um negócio que envolve várias centenas de milhares de pessoas e que põe em circulação mais de 50 bilhões de dólares.

Uma reflexão superficial poderia levar alguém a negar estes diferentes aspectos, ou a favorecer um ou outro. Seria um erro metodológico: o social não contradiz o cultural, a automação não condena os profissionais. Na verdade, a tradução não pode prosperar sem eles.

No entanto, a evolução atual nos obriga a atualizar as nossas ideias sobre a tradução, sobre quem a pratica e o seu lugar na sociedade. A disponibilidade de ferramentas de tradução automática gratuitas para quase todos tende a torná-la um bem comum, embora com algumas imperfeições. Mas sem condenar os profissionais, uma vez que a tradução automática não integra a capacidade de comunicar da linguagem humana e a dimensão de criar o inédito a partir do que já existe. Do mesmo modo, as profissões de tradução e a chamada tradução pragmática constituem uma base para o campo digital e economicamente mais limitado da tradução literária.

Além dessas diversidades, temos de compreender que a tradução é uma parte essencial daquilo que está no fundamento da nossa humanidade comum. Todos estes elementos podem e devem ser pensados como partes do mesmo todo.

Sim, a tradução merece ser mais reconhecida e praticada. Em primeiro lugar, no nível individual. Porque, ao dominar uma segunda língua, o indivíduo ganha um instrumento excepcional de educação. Em segundo lugar, no nível das sociedades. Por permitir intercâmbios que respeitem a diversidade linguística e cultural — coisa que uma língua única ou predominante não é capaz de fazer.

De fato, podemos afirmar o mesmo que Claire Joubert, professora de Literatura Inglesa da Universidade de Vincennes (França): com a tradução, torna-se possível “pensar toda a cadeia, da linguagem à geopolítica”. Uma tradução, portanto, é um investimento, não um custo. Está claro que a tradução é discreta, mas é uma alavanca extraordinária. Cabe a cada um de nós aproveitá-la à nossa maneira — a tradução não conhece exclusões.

Ex-tradutor profissional, NICOLAS FROELIGER é agora professor na Universidade de Paris, especializado em Tradução Pragmática. O presente artigo faz parte de uma edição especial sobre tradução e tradutores do Correio da UNESCO, publicação oficial daquela organização.

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Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.