Um mundo sem trabalho seria assim tão ruim?

Utópico ou apocalíptico, um mundo sem a obrigação de trabalhar costuma ser visto como uma imagem do futuro. Acontece que esse mundo já existiu em vários momentos da História.

Renato Pincelli
10 min readJul 6, 2020
Neste detalhe de um quadro de Peter Bruegel, o Velho [1567], as pessoas ficam largadas num mundo sem trabalho.

Por Ilana E. Strauss, na Atlantic. Tradução [e alguns complementos] de Renato Pincelli.

FAZ SÉCULOS QUE AS PESSOAS especulam sobre um futuro livre de trabalho e hoje não é diferente. Vez por outra, acadêmicos, escritores e ativistas nos alertam que a tecnologia vai substituir os trabalhadores humanos. Alguns imaginam que a chegada do mundo work-free vai ser definida pela desigualdade: pouca gente rica vai possuir todo o capital e as massas vão se debater numa terra de ninguém empobrecida.

Uma previsão diferente, menos paranoica e não mutuamente exclusiva da anterior, afirma que o futuro será uma terra de ninguém de outro tipo, um lugar caracterizado pela ausência de propósito. Sem empregos para dar sentido às suas vidas, as pessoas simplesmente ficariam preguiçosas e deprimidas. Aliás, a vida dos desempregados de hoje não parece muito boa. Uma pesquisa Gallup descobriu que 20% dos americanos que estão desempregados há pelo menos um ano relatam ter depressão, o dobro do índice entre os que estão trabalhando.

Além disso, outra pesquisa sugere que a explicação para as taxas crescentes de mortalidade e problemas de saúde mental (como vícios) entre as pessoas de meia-idade e baixa escolaridade seria uma falta de trabalhos bem-remunerados. Outro estudo mostra que as pessoas costumam estar mais contentes no trabalho do que em seu tempo livre. Talvez seja por isso que muitos se preocupam com o tédio agonizante de um futuro sem trabalho.

Mas essas descobertas não significam, necessariamente, que um mundo sem trabalho seria repleto de mal-estar. Tais visões se baseiam nos “contras” de estar desempregado numa sociedade criada em cima do conceito de emprego. Na ausência de trabalho, uma sociedade desenhada com outros objetivos em mente poderia levar a circunstâncias notavelmente distintas para o futuro do trabalho e do lazer. Hoje, a virtude do trabalho pode estar um pouco exagerada. “Muitos trabalhos são entediantes, degradantes, insalubres, um desperdício dos potenciais humanos”, diz John Danaher, que leciona na Universidade Nacional da Irlanda, em Galway. “Pesquisas globais mostram que a vasta maioria das pessoas é infeliz no trabalho”, completa Danaher, que escreve sobre um mundo sem trabalho.

Atualmente, como o lazer é relativamente escasso para a maioria dos trabalhadores, as pessoas usam seu tempo livre para contrabalançar as demandas intelectuais e emocionais de seus empregos. “Quando chego em casa de um dia duro no trabalho, geralmente me sinto cansado”, diz Danaher. “Num mundo em que eu não tenho que trabalhar”, prossegue, “eu poderia me sentir bem diferente.” Provavelmente tão diferente a ponto de se jogar num hobby ou projeto pessoal com a mesma intensidade que normalmente se reserva aos assuntos profissionais.

Ter um emprego pode dar algum grau de estabilidade financeira, mas além de ter que se estressar sobre como cobrir as necessidades da vida, o desempregado de hoje frequentemente se vê como um intocável social. “As pessoas que evitam trabalhar são vistas como parasitas e aproveitadores”, lembra Danaher. Como resultado dessa atitude cultural, muita gente cola sua autoestima com muita força ao emprego ou falta dele.

Adicionalmente, o desemprego em muitas sociedades modernas tende a ser plenamente entediante. As cidades americanas não são, de fato, feitas com o tempo livre em mente: os espaços públicos tendem a ser pequenas ilhas em mares de propriedades privadas. Não há muitos lugares com entrada franca onde os adultos possam encontrar gente nova ou descobrir novos meios de se entreter.

As raízes desse tédio todo podem ser ainda mais profundas. Peter Gray, professor de psicologia no Boston College, acredita que se o trabalho desaparecesse amanhã, as pessoas ficariam perdidas sem afazeres, tornando-se cada vez mais entediadas e deprimidas porque se esqueceram como se brinca [esse quadro hipotético se realizou para muita gente durante o isolamento social promovido para o controle da COVID-19].

“Ensinamos às crianças essa distinção entre trabalhar e brincar”, explica Gray, que estuda o conceito de brincadeira. “O trabalho é algo que você não quer fazer, mas precisa.” Ele afirma que esse treinamento, que começa na escola, acaba por “matar” a brincadeira de muitas crianças — que crescem e se tornam adultos desorientados diante do tempo livre.

“Às vezes as pessoas se aposentam e não sabem mais o que fazer”, diz Gray. “Elas perderam a capacidade de criar suas próprias atividades”. É um problema que parece nem chegar perto das crianças mais novas. “Não existem meninos de três anos que vão ficar preguiçosos e deprimidos por falta de atividade estruturada”, compara Gray.

MAS SERÁ que tem que ser assim? Sociedades atrabalhadas [cunhamos esse termo, que significa “sem trabalho”, para substituir a expressão work-free, que ocorre com frequência no original] são mais do que um experimento mental — elas existiram ao longo de toda a história humana. Considere como exemplo os caçadores-coletores, que não têm chefes, nem holerites ou jornadas de oito horas. Há dez mil anos, todos os humanos eram caçadores-coletores e alguns ainda são até hoje.

Daniel Everett é antropólogo da Universidade Bentley, em Massachussetts, e passou anos na Amazônia estudando um grupo de caçadores-coletores, os Pirahã. Segundo Everett, embora alguns deles vejam o caçar e o coletar como trabalho, os caçadores-coletores não pensam assim. “Eles pensam nisso como uma diversão”, conta. “Eles não têm o conceito de trabalho que nós temos”.

Para Everett, “é uma vida bem de boa na maior parte do tempo”. Ele descreve o dia típico de um Pirahã: o homem se levanta, passa algumas horas remando e pescando, faz um churrasco, sai pra nadar, leva os peixes para sua família e brinca até o anoitecer. Tal modo de subsistência, claro, não está livre do seu próprio conjunto de aborrecimentos. Mas o antropólogo Marshall Sahllins argumentou, num ensaio de 1968, que os caçadores-coletores pertenciam “à sociedade afluente original”, pois “trabalhavam” apenas poucas horas por dia.

Everett estima que os pirahã adultos trabalham uma média de 20 horas por semana (e isso sem nenhum chefe em cima de seus ombros). Enquanto isso, segundo o Departamento de Estatísticas Laborais [dos EUA], o americano empregado médio, com filhos, trabalha cerca de 9 horas diárias. [O que resulta numa carga semanal de 45 horas de trabalho, considerando uma semana de cinco dias úteis. É mais que o dobro do tempo trabalhado pelos pirahã.]

Essa vida mais solta leva à falta de propósito e depressão que se vê em tantos desempregados modernos? “Nunca vi nada remotamente parecido com a depressão lá”, explica Everett, que completa: “exceto em pessoas fisicamente doentes.” Embora muitos considerem que o trabalho é fundamental para a vida humana, o trabalho existente hoje é uma invenção relativamente nova diante dos milhares de anos de cultura humana. “Nós achamos ruim ficar de papo pro ar, sem nada pra fazer”, diz Everett. “Para os Pirahã, esse é um estado bastante desejável.”

Gray compara esses aspectos do estilo de vida caçador-coletor às aventuras livres de muitas crianças nos países desenvolvidos — que, depois de um certo ponto na vida, devem abandonar essas coisas infantis. Mas nem sempre foi assim. Segundo A Social History of Leisure Since 1600 [Uma História Social do Lazer, desde 1600], livro publicado por Gary Cross em 1990, o tempo livre nos EUA era bastante diferente antes dos séculos XVIII e XIX. Os fazendeiros — que é uma boa maneira de descrever uma larga parcela da população americana daquela época — misturavam trabalho e brincadeira em seu cotidiano.

Sem gerentes nem supervisores, eles podiam alternar de maneira mais fluida entre trabalhar, tirar folgas, jogar com os vizinhos, pregar peças e passar tempo com os familiares e amigos. E ainda não falamos dos festivais e outros eventos: na França, por exemplo, havia 84 feriados por ano em 1700. O mau tempo também inibia o trabalho agrícola durante um período similar.

Tudo isso mudou, conforme Cross, durante a Revolução Industrial, que transformou fazendas em fábricas e fazendeiros em funcionários. Os donos das fábricas criaram um ambiente com uma agenda mais rígida, dividindo claramente o tempo de trabalho e o de diversão. Ao mesmo tempo, os relógios — cada vez mais onipresentes — imprimiram um ritmo mais acelerado à vida e os líderes religiosos, tradicionais promotores de festividades, começaram a associar o ócio com o pecado e tentaram impor sermões no lugar dos festivais barulhentos.

À medida que as famílias foram se mudando para as cidades, seus membros não passavam mais os dias juntos como na fazenda. Em vez disso, os homens trabalhavam nas fábricas; as mulheres ficavam em casa ou trabalhavam nas fábricas e as crianças, ou iam à escola ou ficavam em casa ou também trabalhavam nas fábricas. Nos dias úteis, as famílias ficavam fisicamente separadas, o que afetou o modo como as pessoas se entretêm: os adultos deixaram de jogar as brincadeiras e esportes “infantis”. A diversão foi varrida das ruas e as famílias de classe média e alta passaram a ver com desgosto distrações operárias como jogos de dados e rinhas de galo. Em pouco tempo, muitas diversões desse tipo foram proibidas.

Com o desaparecimento das velhas válvulas de escape numa bruma de fumaça industrializada, os trabalhadores buscaram opções novas, mais urbanas. Os bares tornaram-se um refúgio onde os operários cansados bebiam e assistiam espetáculos ao vivo de canto e dança. É por isso que, para muitos americanos até hoje, o tempo livre equivale a cerveja e TV.

EM ALGUNS momentos, as sociedades desenvolvidas tiveram, para uns poucos privilegiados, estilos de vida quase tão brincalhões quanto o dos caçadores-coletores. Por toda a História os aristocratas, que ganhavam dinheiro só por possuir terras, passavam uma fração minúscula de seu tempo dedicados às exigências financeiras. Randolph Trumbach, professor de História no Baruch College, conta que os aristocratas ingleses do século XVIII passavam seus dias a visitar os amigos, a comer refeições elaboradas, a fazer bailes, a caçar, pescar, escrever cartas e ir à igreja.

Eles também passavam boa parte do tempo participando da política, sem pagamento. Seus filhos aprendiam a dançar, tocar instrumentos, falar línguas estrangeiras e ler em Latim. Os nobres russos frequentemente acabavam virando intelectuais, escritores e artistas. “Nos sentamos para comer e nos levantamos para brincar”, diz Trumbach, citando um nobre do século XVII. “O que seria de um gentil-homem sem seus prazeres?”

É improvável que um mundo atrabalhado seria tão abundante a ponto de permitir que todo mundo tivesse esse estilo de vida nababesco. Mas Gray insiste que a injeção de qualquer dose extra de brincadeira na vida das pessoas seria algo positivo. Ao contrário do aristocrata do século XVII, diz o professor de psicologia, brincar vai muito além do prazer.

Gray ressalta que é através das brincadeiras que as crianças (bem como muitos adultos) aprendem a lidar com estratégias, a criar novas conexões mentais, a expressar a criatividade, a cooperar e a conviver com outras pessoas, superando o narcisismo. “Os mamíferos machos costumam ter dificuldade para viver com proximidade entre si”, explica. Deve ser por sua natureza harmonizante que a brincadeira cumpre um papel central nas sociedades de caça e coleta. Embora muitos adultos de hoje tenham esquecido como se brinca, Gray não acredita que seja uma habilidade irrecuperável. Ele destaca que não é incomum que os avós reaprendam o conceito de brincadeira quando passam tempo com seus netinhos.

Quando as pessoas pensam num mundo atrabalhado, geralmente transpõem as suposições do presente sobre trabalho e lazer para um futuro onde elas não se encaixam mais. Se a automação realmente acabar por tornar desnecessário boa parte do trabalho humano, as sociedades futuras existiriam de uma forma completamente diferente das sociedades atuais.

Então qual seria a aparência dos EUA sem trabalho? Gary tem algumas ideias. A escola, para começar, seria bem diferente. “Acho que nosso sistema educacional ficaria totalmente obsoleto”, diz o professor de psicologia. “O principal objetivo do sistema educacional é ensinar as pessoas a trabalhar. Acho que ninguém gostaria de fazer nossas crianças passar pelos que as crianças já passam.” Ele sugere que os professores deveriam construir suas aulas em torno do que desperta a curiosidade dos alunos. Ou, talvez, o ensino formal acabaria por desaparecer completamente.

Trumbach, por sua vez, imagina que a escola passaria a ensinar as crianças a liderar em vez de trabalhar, com matérias como Filosofia e Retórica [não seria novidade: era assim entre a nobreza greco-romana]. Ele também considera que as pessoas participariam mais da vida pública e política, como os aristocratas de outrora. “Se uma parcela maior de pessoas usasse seu tempo livre para cuidar do país, isso poderia lhes dar um senso de propósito”, afirma Trumbach.

Socialmente, a vida também seria bastante diferente. Desde a Revolução Industrial, pais, mães e filhos passam a maior parte de seu tempo apartados. Num mundo atrabalhado, as pessoas de diferentes idades voltariam a se reunir. “Nos tornaríamos bem menos isolados uns dos outros”, imagina Gray, talvez de forma meio otimista. “Se uma mãe tivesse um bebê, todo mundo na vizinhança poderia querer ajudá-la.” Pesquisas demonstram que ter relacionamentos próximos é o indicador número 1 de felicidade. As conexões sociais de um mundo atrabalhado poderiam preencher a falta de rumo prevista por muitos futurologistas.

De modo geral, Gray pensa que, sem trabalho, as pessoas estariam mais inclinadas a buscar suas paixões, a se envolver com as artes e a visitar os amigos. Os momentos de lazer deixariam de ser um intervalo entre períodos de trabalho duro e passariam a ser algo mais colorido e diversificado. “Nós não teríamos que ser tão autocentrados quanto acreditamos precisar ser agora”, conclui o professor de psicologia. “Acredito que nos tornaríamos mais humanos.”◾

ILANA E. STRAUSS é jornalista e cobre temas como Ciências Sociais, Saúde e Biologia há 15 anos. Suas reportagens e artigos já apareceram nas páginas do “Huffington Post”, “The Washington Post”, “Reader’s Digest”, “Popular Science” e “The Atlantic” — onde esta matéria sobre um mundo work-free foi publicada originalmente em Junho de 2016.

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Written by Renato Pincelli

Bibliotecário, bibliófilo, jornalista, tradutor e divulgador científico que não tem twitter porque detesta limites de palavras. Não necessariamente nessa ordem.

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