Um tipo diferente de Teoria de Tudo
Os físicos estão acostumados a buscar os menores componentes do Universo. E se não houver sentido nisso?

Por Natalie Wolchover, na New Yorker (fev./2019).
Tradução de Renato Pincelli.
DURANTE UMA PALESTRA na Universidade Cornell em 1964, o físico Richard Feynman expressou um mistério profundo sobre o mundo físico. Ele pediu que a audiência imaginasse dois objetos, cada qual gravitacionalmente atraído pelo outro. Em seguida, fez uma pergunta: como poderíamos prever seus movimentos? Feynman identificou três abordagens, cada qual invocando um crença distinta sobre o mundo. A primeira é usar a lei gravitacional de Newton, que diz que os objetos exercem uma atração mútua entre si. A segunda é imaginar um campo gravitacional que se estende espaço afora e que é distorcido pelos objetos. O terceiro é aplicar a Lei do Menor Esforço, de acordo com a qual cada objeto se movimenta seguindo o caminho que exige a menor energia e o menor tempo. Todas essas três abordagens produzem a mesma previsão correta — e todas são igualmente úteis na descrição do funcionamento da gravidade.
“Uma das características incríveis da natureza”, disse Feynman, “é essa variedade de esquemas interpretativos.” Além disso, essa multifariedade só se aplica às verdadeiras leis da natureza. Esse metamorfismo não funciona se as leis forem insuficientes. “Se você alterar as leis demais, só vai poder escrevê-las de menos maneiras”, explicou Feynman. “Eu sempre achei isso misterioso e não sei por que razão é que as leis corretas da Física podem ser expressas numa tremenda variedade de modos. Elas parecem passar por diversos pedágios ao mesmo tempo.”
Enquanto os físicos continuam trabalhando para entender o conteúdo material do Universo — as propriedades das partículas, a natureza do Big Bang, as origens da matéria-escura e da energia-escura — , seus esforços são ofuscados por esse Efeito Rashomon, que levanta questões metafísicas sobre o sentido da Física e a natureza da realidade. [N. do T.: Rashomon é referência ao filme de Akira Kurosawa (1950) que apresenta quatro narrativas em torno do mesmo acontecimento]. Nima Arkani-Hamed é físico do Institute for Advanced Study [EUA] e um dos principais teóricos da atualidade. “A miraculosa propriedade metamórfica das leis [físicas] é coisa mais incrível que conheço a respeito delas”, disse-me ele no outono passado. Isso seria “uma grande pista para a natureza da verdade última.”
Tradicionalmente, os físicos costumam ser reducionistas. Eles buscam por uma “Teoria de Tudo” que descreva a realidade em termos de seus componentes mais fundamentais. Nessa linha de pensamento, as Leis da Física que conhecemos são aproximações provisórias de uma descrição mais detalhada, mas ainda desconhecida. Uma mesa realmente é uma coleção de átomos; os átomos, vistos mais de perto, revelam-se um amontoado de prótons e nêutrons; cada um desses é, ainda mais microscopicamente, formado por um trio de quarks; e os quarks, por sua vez, seriam compostos de algo ainda mais fundamental.
Os reducionistas pensam que estão fazendo que nem a brincadeira do telefone-sem-fio: à medida que a mensagem da realidade vai subindo do nível microscópico para o macroscópico, ela torna-se embaralhada. Assim, eles precisam ir cada vez mais fundo para recuperar a verdade. Entretanto, os físicos de hoje sabem que a gravidade atropela esse esquema simplista ao moldar o universo tanto nas menores quanto nas maiores escalas. Ademais, o Efeito Rashomon também indica que a realidade não seria estruturada dessa forma debaixo-pra-cima e redutiva.
Seja como for, o exemplo de Feynman subestima o mistério do Efeito Rashomon, que é ainda maior do que parece. Como notou Feynman, é estranho que haja tantas maneiras válidas de descrever tantos fenômenos físicos. Mas o fato ainda mais estranho é que, quando há descrições concorrentes, uma geralmente torna-se mais verdadeira que as outras pois se trata de uma descrição mais profunda ou mais generalizada da realidade.
Dentre as três maneiras de descrever o movimento, por exemplo, a mais verdadeira é a menos lembrada: a Lei do Menor Esforço. No dia-a-dia, é estranho imaginar que os objetos se movem ao “escolher” o caminho mais fácil (como uma pedra rolante sabe que trajetória seguir antes de rolar?). Mas há um século, os físicos começaram a fazer observações experimentais sobre o estranho comportamento das partículas elementares — e na época, só a interpretação do menor esforço provou ser conceitualmente adequada. Foi necessário desenvolver um tipo inteiramente novo de linguagem matemática — a mecânica quântica — para descrever a capacidade probabilista que as partículas têm de considerar todas as possibilidades e tomar o caminho mais fácil com mair frequência. De todas as várias leis clássicas do movimento — todas funcionais e todas úteis — , somente a Lei do Menor Esforço consegue alcançar o mundo quântico.
O que acontece vez após vez é que, quando há muitas descrições possíveis de uma situação física — todas com previsões equivalentes, ainda que partam de premissas muito diferentes — , uma delas vai se tornar prevalente, porque se estende para uma realidade mais básica e parece abarcar uma fatia maior do universo. Ao mesmo tempo essa nova descrição pode, por sua vez, ter múltiplas formulações — e uma dessas alternativas pode ter uma aplicação ainda mais ampla. É como se o telefone-sem-fio dos físicos fosse um pouco diferente: a cada sussurro a mensagem é traduzida para uma língua totalmente diferente. As línguas descrevem escalas ou domínios distintos da mesma realidade, mas nem sempre têm relações etimológicas. Nesse jogo alterado, o objetivo não é buscar uma equação-alicerce que governa a realidade nos menores bits — ou, pelo menos, não é só isso. O que precisamos compreender é a existência dessa rede bifurcante e interconectada de linguagens matemáticas, cada qual associada a um ponto de vista sobre o mundo.
ESSA TEIA de leis cria armadilhas para os físicos. Suponha que você seja um pesquisador à procura de um entendimento mais profundo do universo. Você pode ficar preso se cair num beco-sem-saída descritivo — i.e, se você se apegar a um princípio que parece correto, mas na verdade é um dos inúmeros avatares da natureza. É por essa razão que Paul Dirac, pioneiro britânico da teoria quântica, ressaltou a importância de reformular as teorias existentes: é só encontrando novos meios de descrever um fenômeno conhecido que você pode escapar da armadilha da crença provisória ou limitada. Foi esse truque que, em 1928, levou Dirac a prever a antimatéria. “Acontece que nem sempre as teorias que são equivalentes são igualmente boas”, declarou ele, cinco décadas mais tarde. “Porque uma delas pode ser mais adequada a futuros desenvolvimentos.”
Atualmente, vários paradoxos e quebra-cabeças apontam para a necessidade de reformular as teorias da Física Moderna numa nova linguagem matemática. Muitos físicos sentem-se encurralados. Eles sabem, intuitivamente, que precisam transcender a noção de que os objetos movem-se e interagem no espaço e no tempo. A teoria geral da relatividade, de Einstein, faz maravilhas ao costurar o espaço e o tempo num tecido quadridimensional chamado espaço-tempo, igualando a gravidade às dobras nesse tecido. Mas tanto a teoria de Einstein quanto o conceito de espaço-tempo entram em colapso dentro de buracos-negros e no momento exato do Big Bang. Em outras palavras, o espaço-tempo seria apenas uma tradução de uma outra descrição da realidade, algo que, embora seja mais abstrato ou desconhecido, pode ter um poder maior de explicar o universo.
Alguns pesquisadores estão tentando tirar o espaço-tempo da Física para conseguir abrir caminho na direção desse teoria mais profunda. Hoje, para prever como as partículas se modificam e se disseminam quando colidem no espaço-tempo, os físicos usam um complicado sistema de diagrama criado por Richard Feynman. Os diagramas de Feynman indicam as probabilidades ou as “amplitudes de espalhamento” resultantes de diferentes colisões entre partículas. Em 2013, Nima Arkani-Hamed e Jaroslav Trnka descobriram um jeito de reformular as amplitudes de espalhamento sem fazer referências nem ao espaço nem ao tempo. Eles notaram que as amplitudes de certas colisões de partículas são codificadas no volume de um objeto geométrico semelhante a uma jóia, que eles apelidaram de amplituhedron. Desde então, eles e dezenas de outros pesquisadores estão explorando essa nova formulação geométrica das amplitudes de espalhamento, na esperança de que isso vai levá-los de nossa concepção espaço-temporal cotidiana para uma estrutura explanatória ainda maior.
Se essas pesquisas estão ou não no rumo certo, a teia de explicações da realidade continua existindo. Talvez o maior impressionante sobre essas explicações é que, mesmo que cada uma desenhe apenas um quadro parcial da realidade, elas são matematicamente perfeitas. Considere a Relatividade Geral. Os físicos sabem que a teoria einsteniana é incompleta — entretanto, ela ainda é um artifício espetacular, com uma estrutura matemática bem-organizada e limpa. Se você distorcer as equações só um pouquinho, elas perdem toda a sua beleza e simplicidade. Ou seja, se você quiser descobrir um jeito mais profundo de explicar o universo, não pode pegar as equações das descrições que já existem e modificá-las com sutileza. Em vez disso, você tem que pular para uma estrutura matemática totalmente diferente e igualmente perfeita. Então qual é o sentido — perguntam-se os teóricos — de ter perfeição em cada um dos níveis se ela está fadada a ser superada pelo próximo?
PARECE INCONCEBÍVEL que essa teia intricada de descrições matematicamente perfeitas seja algo aleatório ou acidental. Esse mistério deve ter uma explicação, mas como ela seria? Uma concepção comum da Física é que suas leis são como máquinas construídas pelos humanos para prever o que vai acontecer no futuro. A “Teoria de Tudo” seria como uma máquina de previsões definitiva — uma única equação da qual tudo se deriva. Mas essa perspectiva ignora a existência de muitas máquinas diferentes, todas construídas de maneiras engenhosas e que nos dão previsões equivalentes.
Para Arkani-Hamed, a multifariedade dessas leis sugere uma concepção diferente sobre o que é a própria Física. Não estamos construindo uma máquina que calcula respostas, diz ele. Em vez disso, estamos descobrindo perguntas. As leis metamórficas da natureza parecem ser a resposta a uma questão matemática desconhecida. É por isso que Arkani-Hamed e seus colegas consideram seus estudos sobre o amplituhedron tão promissores. Calcular o volume do amplituhedron é uma questão geométrica — uma que os matemáticos poderiam pensar, se tivesse descoberto o objeto primeiro. De algum modo, a resposta à questão sobre o volume do amplituhedron descreve o comportamento das partículas — e essa resposta, por sua vez, pode ser reescrita em termos de espaço e tempo.
Agora, Arkani-Hamed vê o objetivo último da Física como compreender qual é a questão matemática da qual tudo deriva. “A ascensão ao décimo céu intelectual”, disse-me ele, “seria se encontrarmos a pergunta para a qual o universo é a respostas e a natureza dessa questão em si e por si explique porque foi possível descrevê-la de tantas maneiras diferentes.” É como se a Física tivesse sido virada do avesso e agora estamos cercados por respostas — só nos falta descobrir a pergunta para todas elas.
Formada em Física pela Tufts University, NATALIE WOLCHOVER (@nattyover) é divulgadora científica especializada, claro, em Física. Fundadora, repórter e editora da “Quanta Magazine”, ela já teve matérias publicadas na “Popular Science”, “Live Science” e o artigo que aqui traduzimos é sua primeira contribuição para a revista “The New Yorker”. Em 2017, recebeu o Prêmio de Comunicação Científica do AIP, o Instituto Americano de Física.