Uma epidemia de atropelamentos
Movidas pela lucratividade fácil, marketing adolescente e consumidores ideologizados, as montadoras americanas só fazem SUVs cada vez maiores. Quem anda a pé paga a conta, muitas vezes com a própria vida.
Por Ryan Cooper, na The Week.
Tradução de Renato Pincelli.
ENQUANTO EU CRESCIA no Colorado rural, minha família tinha um clássico veículo de trabalho: uma F-150 1980, com o famoso motor seis-em-linha de 300 polegadas cúbicas [4,9 Litros]. Minha tarefa habitual era levar uma carga de areia para bater concreto ou terra para paisagismo ou madeira para algum projeto. Era uma ótima picape, com apenas um problema: a válvula de alívio da pressão do óleo era meio temperamental e se você ligasse o motor sem esquentar, o filtro de óleo poderia explodir de vez em quando. Você tinha que pisar fundo imediatamente até soltar a válvula e depois tudo ia bem. Era só uma daquelas peculiaridades a que você se acostuma ao lidar com um equipamento de uso pesado.
[Nota do Tradutor: a partir daqui acrescentamos imagens para facilitar a compreensão do assunto. Complementamos o texto com um comentário final]

Hoje em dia, é difícil encontrar esse tipo de caminhonete no mercado consumidor. Elas ficaram maiores, mais altas, com maiores pontos cegos e tornaram-se muito mais potentes, luxuosas e caras. Quase ninguém mais faz picapes pequenas, como a Toyota Hilux 1986 que eu usava na faculdade. A Toyota Tacoma, que costumava estar no mesmo segmento, é atualmente quase tão grande quanto a minha velha F-150.

Essa tendência de design agigantado — particularmente a frente altíssima e quadrada vista em muitos SUVs e caminhonetes atuais [como a Silverado abaixo] — é tão inútil quanto perigosa. Faz tempo que os fabricantes sabem que esse estilo de carro é muito mais perigoso para os pedestres e ciclistas, mas mesmo assim eles continuam tornando-os cada vez maiores, mais altos e mais pesados. Hoje as caminhonetes e SUVs formam 70% de todos os carros novos vendidos nos EUA. Seu design inchado está matando pessoas, especialmente as que vão a pé.

Quando fiz essas observações no Twitter (de maneira meio exagerada), os conservadores entraram em fúria. O senador Ted Cruz (Republicano do Texas) me acusou de estar “com medo” das picapes. No resto do dia, pude apreciar o bom e velho debate arrazoado e factual dos conservadores: xingamentos sexistas e homofóbicos, fantasias lúgubres sobre homicídios veiculares e a insistência em dizer que eu dirijo um Prius — o que parece ser o equivalente automotivo da soja [i.e, do vegetarianismo] na mentalidade conservadora. Para constar, eu não possuo nenhum tipo de carro no momento.
Parece meio absurdo pensar que as montadoras estariam conscientemente criando picapes cada vez maiores e mais perigosas para os pedestres, mas isso é um fato. Para entender o porquê, vejamos alguns dados. Segundo a Governors Highway Safety Association [Associação dos Supervisores de Segurança Rodoviária], houve 6283 fatalidades entre pedestres em 2018, um aumento de 53% comparado a 2009 e o maior índice desde 1990. Isso dá aos EUA uma taxa de 19 pedestres mortos por milhão de habitantes.
Para comparação, a França e a Dinamarca tiveram, respectivamente, taxas de 7,0 e 5,2 [mortes de pedestres por milhão] no mesmo ano — o que é especialmente notável, dado que caminhar em Paris e Copenhague é bem mais comum do que na maioria das cidades americanas. Aliás, não faz muito tempo que a União Europeia tinha um índice de fatalidades pedestres muito maior do que os Estados Unidos, provavelmente porque é mais comum andar a pé por lá. Mas a UE reduziu a mortalidade de pedestres em quase 40% entre 2007 e 2018 (de mais de 8000 para cerca de 4900) — enquanto isso, os EUA foram na direção oposta. Oslo e Helsinque, por exemplo, não tiveram nenhum pedestre morto por atropelamento em 2019.
Por quê? Um dos fatores na morte de pedestres é que as cidades americanas são, via de regra, projetadas para acomodar os carros às custas de qualquer outro meio de transporte. Qualquer um que escolha caminhar ou pedalar em nossas cidades extensas e atulhadas de carros está colocando sua própria vida em risco. Mas isso não explica o aumento recente. As cidades americanas não foram drasticamente reformadas para ser ainda mais carrocêntricas desde 2009 — ao contrário, houve alguns passos tímidos na direção oposta.
Assim, o principal motivo para o salto na mortalidade é a crescente proporção de SUVs e picapes nas ruas. Como revela uma grande reportagem investigativa feita por Eric D. Lawrence, Nathan Bomey e Kristi Tanner (numa parceria Detroit Free Press e USA Today), tanto os fabricantes quanto os reguladores federais sabem há anos que veículos grandes e mais altos são mais perigosos para pedestres e ciclistas — têm, por exemplo, uma chance 2 a 3 vezes maior de matar quando batem em alguém.
A razão é óbvia: enquanto um sedã vai acertar uma pessoa na perna, normalmente jogando-a por cima do capô, uma picape alta, de cara achatada vai pegá-la pelo tronco, derrubando-a e passando por cima dela, causando lesões muito mais graves. Um estudo do Insurance Institute of Highway Safety [Instituto de Seguros e Segurança Rodoviária] descobriu que, entre 2009 e 2016, “acidentes fatais com um só veículo, envolvendo SUVs, aumentaram 81%, mais do que qualquer outro tipo de veículo”. Entretanto, como escreveram Lawrence, Bomey e Tanner, “uma proposta federal para levar os pedestres em conta na classificação de segurança veicular está travada, com oposição por parte de algumas montadoras.”
Não é difícil perceber porque os fabricantes de automóveis resistiriam a se preocupar com a segurança de pedestres. Caminhonetes e SUVs grandalhões têm uma grande margem de lucro e quanto mais frequente eles forem nas ruas, mais motoristas em busca de segurança vão ser incentivados a comprar um, porque você tem chances dramaticamente maiores de ser morto num sedã comum se for atingido por um SUV.
Picapes e SUVs não formam 70% das vendas automotivas de hoje porque 70% dos americanos são empreiteiros e encanadores. A picape média não ganhou 330 kg em peso desde o ano 2000 porque as pessoas estão transportando mais gado. A grande maioria dos motoristas de SUVs e picapes teria escolhido um sedã em épocas anteriores e essa gente se importa mais com visual, potência e segurança percebida para o motorista. Pensar nos pedestres poderia abalar esse arranjo confortável.
Além disso, a tendência específica de ter um capô enorme e alongado na frente do motorista, com uma grade abismal que obstrui a visibilidade de vários metros diante das rodas, é simplesmente um truque de marketing. O objetivo explícito é criar uma face agressiva, irada, que vai intimidar todo mundo, especialmente os pedestres. Não sou eu que digo isso, são palavras do cara que projetou a mais recente GMC Sierra HD: “A frente sempre foi o ponto focal… passamos muito tempo para garantir que quando você fica de pé diante dessa coisa, tenha a impressão de que ela vai vir pra cima de você. Ela tem esse ar de irritada”, contou ele à Muscle Cars & Trucks.
“A cara dessas caminhonetes é onde está a ação”, disse Mark Schirmer, especialista em marketing, ao Wall Street Journal. “Uma Ford tem que dizer Ford diretamente, uma Chevy tem que gritar Chevy. Cada picape se torna um outdoor ambulante da marca e os outdoors são bem grandes.” Como percebeu [o jornalista Dan] Neil [do Wall Street Journal] quando quase foi atropelado no estacionamento de um supermercado, aquelas grades gigantes criam um ponto cego enorme.

Os veículos realmente utilitários geralmente não prejudicam a praticidade dificultando de propósito ao motorista ver para onde vai. A Isuzu NPR-HD (que aliás tem mais do dobro da capacidade de carga da GMC 2500 Denali [a Denali é a versão cabine-dupla da Sierra]) tem uma frente achatada, mas como seu design é de cabine suspensa, o motorista fica sobre o motor. Isso abre mais espaço para a carga, dá um melhor raio de giro e um campo de visão excelente. De fato, a brochura desse veículo anuncia especificamente que sua visibilidade é muito melhor por não ter um capô longo.

Similarmente, veículos pesados de uso comercial, como o Ford F-650 ou o Freightliner M2106 até têm um motor à frente, mas seus capôs — em vez de criar um ponto-cego extra com uma barreira de metal e ar — descem para que o motorista possa enxergar melhor. É fácil perceber quando uma picape foi projetada para o trabalho e não para parecer bacana no seu fundo de tela.
Assim, não é exatamente como se os fabricantes americanos tivessem se reunido para perguntar: “como podemos matar tantos pedestres quanto possível?”. Eles só projetam, fabricam e vendem picapes e SUVs absurdamente enormes mesmo sabendo factualmente que eles são muito mais fatais para pedestres e ainda resistem às propostas de incorporar os pedestres em seus testes de segurança. Eles deixam essas máquinas beberronas ainda mais perigosas ao adicionar elementos de design intimidantes, que prejudicam sua utilidade. Como consequência óbvia e facilmente previsível, os EUA estão sofrendo uma epidemia de fatalidades entre pedestres. Da mesma forma que as fábrica de cigarro faziam antigamente, as montadoras valorizam mais a margem de lucro elevada e as campanhas de marketing adolescentes do que a vida das pessoas a pé.
No entanto, eu não condeno as pessoas que querem alguns elementos estéticos numa picape nem as que realmente precisam comprar uma hoje em dia — aliás, não duvido que muitos estejam tão frustrados quanto eu porque não se pode comprar uma picape de proporções razoáveis, que não pareça ter sido rabiscada por um moleque de 14 anos. Mas eu condeno os fabricantes pela responsabilidade que têm ao colocar pseudomachos inseguros acima da segurança dos pedestres, bem como os reguladores por fracassar em seu controle. Caminhonetes e SUVs podem ser projetados com mais segurança — a Ford, por exemplo, estaria trabalhando num pequeno SUV/picape com uma frente baixa e um capô voltado para baixo [pequeno em termos: esse veículo ainda seria tão grande quanto a Ranger vendida no Brasil].
Os conservadores correram a me informar que só os betamachos poderiam dirigir tal veículo. Parece que os milhares de pedestres mortos — 70% dos quais são homens — são só o preço a ser pago para que a direita possa mitar e ter outra revanche na guerra cultural pós-moderna.
Comentário Final do Tradutor
O GIGANTISMO automobilístico norte-americano não vem de hoje. Basta lembrar as “banheiras” espalhafatosas dos anos 1950, os “muscle car” beberrões dos anos 1960. Essa cultura de grandiosidade sobre rodas custou caro às fabricantes americanas a partir dos anos 1970, quando os choques do petróleo colocaram a economia e a praticidade como prioridade entre os consumidores.
Mesmo assim, as três grandes americanas — Ford, GM e Chrysler — resistiram o quanto puderam a desenvolver modelos realmente compactos e de uso urbano. O caso do Ford Pinto, infame não só pelo nome como pela tendência a explodir, é emblemático: o resultado foi tão desastroso que criou desconfiança sobre os carros pequenos em geral e os americanos em particular. Não surpreende que os anos 1980 e 1990 tenham sido marcados pela invasão japonesa do mercado americano.
A “SUVerização” dos carros made in USA mostra que essa cultura de teimosia e apego ao passado por parte da indústria americana continua bem viva. No entanto, isso não quer dizer que essa postura seja bem-sucedida: a GM quase faliu em 2008 (e só não quebrou porque foi resgatada pelo governo); a Chrysler virou subsidiária da Fiat (aqueles caras europeus que fazem carros pequenos, sabe?) e a Ford, que praticamente deixou de fabricar qualquer coisa como um carro urbano e popular nos EUA, vai tão mal que vendeu várias marcas internacionais do grupo nos últimos anos para salvar a pele no mercado interno.
Se as coisas não vão tão bem nos EUA, as exportações não são melhores. Com exceção do Canadá e, em menor grau, do México, os modelos criados pelos americanos raramente encontram sucesso no exterior. Suas picapes e SUVs são um trambolho para as ruas estreitas da Europa, ineficientes para os consumidores asiáticos e caras demais para o resto do mundo — inclusive para os padrões de um mercado relativamente grande, como o do Brasil.
Enquanto o resto do mundo caminha para uma hibridização ou eletrificação dos automóveis — ou até para sistemas autônomos — a indústria americana continua de freio puxado, presa nos anos 1950 tanto técnica quanto culturalmente.
No fim, ao prezar a forma sobre a função, a estética sobre a segurança, o gigantismo dos carros americanos não mata apenas gente: vai acabar matando sua indústria também.
RYAN COOPER é jornalista e escreve uma coluna quase diária sobre temas nacionais dos EUA no site da revista “The Week”. Seus textos também já apareceram na “The New Republic” e no “Washington Post”. Cooper também produz e apresenta um podcast, “The Left Anchor”. Este artigo sobre o inchaço veicular americano foi publicado originalmente na “Week” em 07/08/2020.